A pandemia do novo coronavírus despertou a voracidade dos vendedores de dispositivos de vigilância. Tecnologias de rastreamento de pessoas estão em alta. O pressuposto é que a ciência de dados será fundamental para derrotar o inimigo invisível. Ao presumir o sucesso da China e da Coreia no combate ao novo coronavírus, líderes políticos das democracias liberais, da direita à esquerda, se encantaram com a capacidade de controle dos dispositivos digitais e da modelagem estatística dos algoritmos que extraem padrões e realizam predições. Câmeras, softwares, sensores, celulares, aplicativos, detectores são apresentados como as armas mais sofisticadas para o combate ao vírus.
Empresas de vigilância e espionagem digital vinculadas ao aparato de repressão dos Estados com extensos serviços prestados à perseguição de opositores, de ataques aos dissidentes, de combate ao terrorismo, se apresentam como salvadoras do corpo da espécie. Denunciada pela venda de dispositivos de intrusão em celulares para ditaduras e serviços de inteligência pelo mundo afora, o NSO Group percebeu a oportunidade de ampliar suas vendas e aderir às práticas humanitárias em tempos de guerra ao vírus.
A corporação NSO desenvolveu o spyware Pegasus, software de penetração nos celulares de pessoas-alvo, permitindo ler mensagens de texto, coletar senhas, acessar o microfone e coletar outras informações do aparelho. Agora a corporação de cyberwar está oferecendo aos governos de todo o mundo uma solução para acompanhar a evolução do novo coronavírus implantando um novo software nos telefones celulares.
Os representantes da corporação alegam que seu sistema permitirá aos governos ter um “mapa de calor” mostrando os trajetos dos celulares de quem foi infectado. Assim, as pessoas podem ser avisadas e os governos podem realizar previsões de contágio a partir dos cálculos que o próprio software de gestão do sistema oferece. No mapa, os celulares aparecem com um número identificador. Desse modo, a NSO afirmar garantir a anonimidade necessária.
Entretanto, é perceptível que o processo de conversão dos números de celulares em outros números que assegurariam a anonimidade pode ser facilmente revertido. Além disso, a localização do deslocamento no território pode ser realizada com bastante precisão, uma vez que os governos estão solicitando os dados dos telefones para as empresas operadoras de telecomunicações para alimentar o sistema da NSO ou de outras empresas.
A tecnologia utilizada nos aparelhos móveis e na Internet é cibernética, ou seja, simultaneamente de comunicação e de controle. A pandemia e a baixa clareza das condições essenciais da democracia estão fazendo as tecnologias cibernéticas penderem claramente para o controle exacerbado. O diagrama de poder que se instala é baseado em desenhos autoritários. As tecnologias cibernéticas acompanham todas, todos e cada indivíduo seja a céu aberto, seja no confinamento.
Elas já serviam para nos inserir em amostras baseadas em interesses, comportamentos, perfis psicométricos e dados geográficos, obtidos nas redes de relacionamento social para as empresas de marketing. Plataformas como Google, Facebook, Amazon, Apple, Microsoft se agigantaram vendendo amostras ou alvos que deveriam ser atingidas com precisão por mensagens de vendedores de produtos ou ideologias. Por que não utilizar as tecnologias do marketing no combate à pandemia?
Assim, o Sindicato Nacional das Empresas de Telefonia e Serviço Móvel Celular e Pessoal, o SindiTelebrasil informou que as aproximadamente 100 mil antenas de conexão dos aparelhos móveis que possibilitam detectar o deslocamento desses dispositivos no território permitem extrair dados que serão entregues aos governos.
Esses dados estariam anonimizados e mostrariam os aglomerados de telefones, uma vez que a legislação brasileira não permite a entrega dos dados pessoais que identifiquem os proprietários desses celulares. Não somente geógrafos e cientistas sociais sabem que nesse momento de isolamento social nas grandes cidades, os ônibus, metrôs e trens são os principias pontos de aglomeração, secundariamente, os mercados e os hospitais são outros locais que reúnem muitas pessoas. Além desse conhecimento, sanitaristas e urbanistas sabem que a moradia precária, as favelas, sem água, sem saneamento básico, terão muita dificuldade de aplicar as medidas sanitárias aconselháveis para evitar a proliferação do vírus.
Para que servirá a interface de visualização com o mapa dos celulares entregues aos governos, se aqui não será possível acionar o policiamento digital e os sistemas de machine learning para agir efetivamente sobre os indivíduos identificáveis e identificados como na China e na Coreia? Ou subterfúgios e exceções em nome de uma biopolítica, do salvamento da sociedade, permitirão que os governos daqui atuem como os governos que colocaram as tecnologias cibernéticas para visibilizar os portadores do invisível Covid-19? Mas isso seria necessário?
As prefeituras sabem onde estão as grandes aglomerações populacionais em habitações precárias. Nelas, a atividade de contenção do vírus exigirá medidas específicas, não realizadas em outros países, devido à singularidade da organização espacial de nossas cidades e dos desenhos urbanos de exclusão ou inserção precarizada dos segmentos mais pauperizados. No Brasil, provavelmente, os movimentos sociais podem colaborar mais efetivamente do que os aparatos de vigilância na prevenção do contágio. Mas, uma série de corporações que vivem de tecnologias de intrusão e do mercado de dados – que a pesquisadora Shoshana Zuboff nomeou de capitalismo de vigilância – estão seguindo o bordão “a crise traz desafios e oportunidades”.
O pesquisador Rafael Evangelista escreveu recentemente que existem três cenários para o mundo pós-pandemia. O primeiro seria o que prevê a volta à normalidade e a superação da crise em alguns meses. O segundo é o que supõe o acirramento da disputa entre o mundo autoritário e a defesa da democracia. O terceiro é o que crê na ampliação do ideal aceleracionista, proposto pelos “magos” do Vale do Silício, que aprofundará a dependência das sociedades em relação às plataformas, acriticamente utilizadas pelos diversos segmentos sociais.
Desses três cenários propostos, o primeiro é apenas retórico e não se baseia em evidências. O terceiro está fundado não apenas em discursos, mas nas diversas ações das corporações de tecnologia em busca das oportunidades abertas pela crise. Já o segundo está baseado na crença de que os movimentos democráticos e as forças de esquerda conseguirão enfrentar em grau elevado as vertentes autoritárias e totalitárias do neoliberalismo.
As medidas de exceção adotadas, a chamada “flexibilização” de direitos, os cortes de salários, o desrespeito aos princípios básicos da cidadania, as violações de privacidade, para o enfrentamento do vírus e da crise poderão permanecer e, até mesmo, se ampliar. Destruir a estabilidade necessária ao serviço público, o sonho neoliberal, já aparece como possível: basta alegar uma situação de extrema necessidade. A comunicação de guerra pode se tornar o padrão dos líderes neoliberais. Atualmente é somente adotada pela extrema direita. Técnicas militares conhecidas desde os tempos de Hernán Cortés na conquista do México podem ser aplicadas com sucesso. Por que não explorar mais as contradições e desavenças entre grupos sociais para destruir suas resistências? Nada como jogar o precariado e os que nunca tiveram direitos mínimos contra os segmentos sociais com poucos direitos. Nada como chamar de privilégios os direitos que deveriam ser universalizados. Enquanto isso, os endinheirados se locupletam com a ampliação da concentração de renda, riqueza e poder.
A defesa da democracia não pode esperar o fim da pandemia. Como bem alertou o filósofo Byung Chul Han, o vírus não destruirá o neoliberalismo. Tudo indica que o policiamento digital conseguirá se consolidar. A luta contra o totalitarismo neoliberal não poderá ser bem sucedida se não erguermos nossas resistências agora. O vírus do neoliberalismo precisa ser combatido, pois ele é tão ou mais mortal quanto o novo coronavírus. Suas expressões modernizantes e aceleracionistas não podem continuar enganando e entorpecendo tanto o pensamento democrático. Com o isolamento social, as plataformas que coletam dados pessoais e os vendem no mercado em amostras para a modulação do marketing avançam para se tornar não somente as grandes intermediárias do entretenimento, mas também da Educação. Isso não pode ser aceito como algo natural, nem como solução excepcional.
Não podemos deixar de denunciar os governos que manterão o ensino fundamental à distância em um país em que 78% dos indivíduos que ganham até um salário mínimo acessam à internet exclusivamente pelos aparelhos celulares. Destes, a maioria absoluta possuem planos pré-pagos. Também por isso, chega a ser cínica a proposta de concentrar o cadastramento do auxílio de R$ 600,00 pelo “app” da Caixa Econômica Federal.
Como no Brasil, o pré-pago não foi protegido contra o bloqueio e a desconexão durante a pandemia, os mais pobres terão dificuldade de utilizar o celular quando a sua franquia for gasta. Exatamente os mais pauperizados, os moradores em situação de rua, serão as maiores vítimas do preenchimento do cadastramento online. Além disso, já foram detectados mais de 20 aplicativos falsos de coleta de informações promovidos pelas milícias criminosas que atuam também no digital.
As universidades não deveriam considerar normal a entrega de seus sistemas de ensino e sua estrutura de comunicação para as plataformas norte-americanas ou chinesas cujo modelo de negócios é vender amostras dos perfis obtidos com base na extração de padrões de seus usuários. Com a grande adesão que está ocorrendo agora, as plataformas poderão coletar as informações das ações das educadoras e educadores com suas alunas e alunos. Também poderão capturar de modo nítido o desempenho escolar de cada estudante. Tais dados são valiosos para as políticas públicas, mais valiosos ainda para as plataformas melhorarem suas possibilidades de modulação dos comportamentos, convertidos em fluxos de dados.
Estamos em um momento de ampliação das assimetrias. Vivemos o que Mayer-Schoenberger e Cukier chamou de dataficação, ou seja, a transformação dos comportamentos e ações em dados que poderão ser criados e capturados de modo síncrono e assíncrono para que sejam realizadas análises preditivas. É preciso colocar limites no mercado de dados. Podemos organizar resistências à formatação das subjetividades pelas plataformas.
Precisamos pensar a reversão, a reconfiguração desse processo. Ele é central na comunicação e na articulação da sociedade contemporânea. Precisamos pensar as redes digitais para a construção de práticas do comum, para enfrentar o neoliberalismo. O neoliberalismo é uma pandemia que dura décadas e que infectou até mesmo forças de esquerda que deveriam combatê-lo. Agora é a hora de aumentar as resistências do corpo social ao vírus e ao neoliberalismo. Enfrentamos ao menos duas pandemias.
Sergio Amadeu da Silveira é professor da Universidade Federal do ABC. Doutor em Ciência Política, pesquisa redes digitais e tecnologias da informação.