Este texto é um dos capítulos de Colonialismo de dados: como opera a trincheira algorítmica na guerra neoliberal, organizado por João Francisco Cassino, Joyce Souza e Sérgio Amadeu da Silveira, livro recém-lançado pela Editora Autonomia Literária, parceira editorial de Outras Palavras.
Sergio Amadeu da Silveira, Outras Palavras, 25 de novembro de 2021
Um importante anúncio do Poder Judiciário paulista apareceu no noticiário especializado, em fevereiro de 2019. Indicava que os processos judiciais do estado de São Paulo, o mais populoso e mais rico do Brasil, seriam entregues à chamada nuvem da Microsoft. O objetivo seria hospedar na empresa estadunidense uma plataforma digital que agregaria serviços de inteligência artificial e permitiria o registro, o arquivamento e a tramitação de todos os processos do maior tribunal do país. A matéria de um relevante jornal econômico brasileiro destacava a importância dos aspectos positivos do armazenamento em nuvem. O presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo afirmou ao jornal: “será o primeiro [Tribunal] do país a tomar esse caminho – e um dos poucos no mundo”. (18)
Sites e especialistas destacavam a ação inovadora do Judiciário paulista e o valor do projeto da chamada Plataforma de Justiça Digital, que seria de 1,32 bilhão de reais,(19) com dispensa de licitação. (20) A comunicação social do tribunal divulgou, no dia 20 de fevereiro de 2019, que “ao final de cinco anos, o custo fixo anual do TJ com o sistema judicial terá redução de 40%, além de eliminar a necessidade de alto investimento na renovação de Data Center”.(21) A dimensão do contrato e suas implicações eram gigantescas, o que levou o presidente mundial da Microsoft, Satya Nadella, a vir ao Brasil dias antes da assinatura do contrato para se reunir com o presidente do tribunal paulista. Segundo a assessoria de comunicação do Judiciário, o executivo da corporação fundada por Bill Gates afirmou que “a tecnologia é o meio, não é atividade fim. O fim é o que se faz com a tecnologia. E o sonho do TJSP de transformar essa plataforma de serviços aos cidadãos é revolucionário”. Nadella se comprometeu a colocar as melhores cabeças da Microsoft para atuar no projeto do tribunal.
Nenhum veículo, colunista, parlamentar questionou a entrega dos dados dos processos civis, criminais, empresariais, de crianças e adolescentes, de contenciosos judiciais de milhões de pessoas e milhares de empresas para a nuvem de uma das maiores plataformas estadunidenses, com interesses econômicos, financeiros, comerciais e geopolíticos no Brasil. Essa era uma não-questão. Também não foi perguntado se esses recursos, caso fossem empregados em empresas e centros de pesquisa brasileiros, não gerariam ganhos importantes não somente para a sociedade, para o desenvolvimento de inteligência local, como também para o próprio tribunal.
Apesar da inexistência de questionamentos na opinião pública, o Conselho Nacional de Justiça (22) proibiu a execução do contrato com o argumento principal de que o acordo com a Microsoft iria na “contramão de privilegiar um sistema único para tramitação processual”,(23) uma vez que os tribunais brasileiros estariam buscando um desenvolvimento integrado para a digitalização e tramitação de processos. Curiosamente, o destaque não foi a proteção de dados sensíveis da população, nem mesmo a necessidade de avançar a inteligência nacional na área de inteligência artificial.
Este capítulo começou pelo relato desse caso inconcluso por ser exemplar na caracterização de uma série de não-questões para boa parte dos pesquisadores acadêmicos, formadores de opinião, influencers, lideranças políticas e movimentos sociais que envolvem a colonialidade ampliada pelas tecnologias. Aqui pretendo trazer a hipótese de que essas não-questões ou críticas ofuscadas escondem um epistemicídio, tal qual Sueli Carneiro, inspirada em Boaventura de Sousa Santos, tratou dos mecanismos constituídos para negar a existência do racismo no país e as reflexões e saberes dos negros. O epistemicídio não recai somente à racialidade, também integra o regime de verdade da colonialidade que está justaposto com práticas acríticas e normalizadas pelas infraestruturas de submissão que se baseiam na alienação técnica e são fundamentais para o ordenamento neoliberal em uma sociedade fortemente dataficada.
Quais seriam as questões importantes encobertas e ofuscadas, tornadas não-questões, pela colonialidade em um cenário de capitalismo informacional, organizado em uma economia de dados neoliberal? Primeiro, a dúvida sobre a crença de que as empresas e plataformas digitais são neutras e que não interferem em nosso cotidiano, exceto para nos servir. Segundo, a interrogação sobre a inexistência de consequências negativas locais e nacionais na utilização das estruturas tecnológicas das plataformas, uma vez que elas respeitariam os contratos. Terceiro, a avaliação de que as implicações sobre a coleta massiva de dados nos países centrais da plataformização tecnológica possuem os mesmos efeitos econômicos, políticos e socialmente moduladores que nos países periféricos. Quarto, a indagação sobre se seria possível apostar no avanço de uma inteligência computacional local, na soberania algorítmica e no conhecimento tecnológico como um bem comum livre.
Colonialidade e neoliberalismo
Para muitos pensadores críticos, o colonialismo histórico acabou, mas a colonialidade se mantém e pode ser empiricamente mapeada e constatada. O sociólogo peruano Anibal Quijano definiu a colonialidade como um dos principais elementos do padrão mundial de poder capitalista. A colonialidade foi construída sobre classificações raciais e étnicas das populações e está associada à expansão da modernidade e de sua racionalidade, a partir da Europa. Ela se mantém por meios materiais, por mentalidades e por relações de subordinação, sujeição e de inferiorização de modos de vida, de saberes e de conhecimentos. (24)
A colonialidade se apresenta como a imposição de modelos de pensamento, de agenciamentos, de comportamentos que negam ou desvalorizam epistemes, modos de aprender e conhecer das comunidades e das sociedades não ricas, também expulsa do que deve ser considerado normal à ideia de autonomia, de busca por caminhos diferentes, de toda tentativa daqueles que fogem aos interesses da economia e das suas principais corporações. Como aponta Paola Ricaurte, (25) em uma sociedade baseada em dados, a colonialidade de poder é realizada e amplificada também por meio de dados e das suas tecnologias de tratamento.
A partir dessa perspectiva, é possível notar que o avanço do ordenamento neoliberal ampliou e aprofundou a colonialidade. Sem dúvida, existem diversas definições de neoliberalismo que extrapolam sua dimensão tão somente econômica ou sua categorização como mera atualização do velho liberalismo. O neoliberalismo é uma conduta e um modo de pensar que coloca o mercado acima de todas as demais dimensões da vida. Mais do que isso, a doutrina neoliberal se empenha em definir as empresas como elemento crucial da existência e a concorrência como o objetivo maior de qualquer agregado humano.
Michel Foucault, ao analisar a constituição do neoliberalismo, com base nas vertentes alemã (ordoliberal) e estadunidense, em O nascimento da biopolítica, percebeu sua implicação na disciplina das condutas e em uma visão de mundo, indo além da reformatação dos governos para atuar em função das empresas. Laval e Dardot, inspirados em Foucault, detectaram que o neoliberalismo é a forma atual de nossa existência e que se impõe como o ordenamento do capitalismo contemporâneo. Alicerçados no marxismo, David Harvey, Gérard Duménil e Dominique Lévy consideraram a neoliberalização como a dinâmica geral do capital que opera em benefício das camadas mais altas de renda, resultante do compromisso entre as classes capitalistas e a camada superior da classe gerencial, sob a hegemonia financeira. Wendy Brown observou que o neoliberalismo coloca a legitimidade do Estado subordinada à capacidade de servir a racionalidade econômica, solapando o vínculo entre capitalismo e democracia, subordinando tudo, principalmente a lógica do Estado, às empresas e à sua rentabilidade. Pesquisadores de inspirações tanto marxista quanto foucaultiana identificam que o neoliberal desloca a empresa para o centro de gravidade da existência e faz do Estado seu maior serviçal. Nesse sentido, as relações contratuais entre capital e trabalho se tornam relações entre empresas de variados tamanhos, inclusive, empresas de um único funcionário, que é o seu próprio dono.
A dinâmica neoliberal reforça a colonialidade. Primeiro, a boa cartilha neoliberal manda que as empresas privadas assumam todas as atividades econômicas. Assim, cabe ao Estado assegurar que essas empresas assumam a criação, execução e manutenção do máximo de ações possíveis. Segundo, o ethos da concorrência manda apostar no menor preço com a melhor qualidade – esta nem sempre exigida. Terceiro, o desenvolvimento virá da escolha e do consumo dos melhores produtos e serviços, independentemente de outros valores ou princípios, como local de produção e benefícios sociais. Assim, para o neoliberal não seria sustentável a opção de criar e manter serviços executados pelo Estado, nem gastar recursos que deveriam ser investidos em empresas privadas, muito menos tentar soluções custosas de desenvolver localmente o que pode ser obtido globalmente. O neoliberalismo utiliza com anabolizantes a teoria das vantagens comparativas de David Ricardo.
Assim, países periféricos devem se empenhar em comprar os melhores produtos e serviços pelo menor preço. O uso é subentendido como o passaporte para o avanço econômico. A invenção, o domínio da técnica, deve se concentrar nas grandes empresas que possuem capital para essa atividade. Seria demasiadamente irracional e custoso criar outros produtos e soluções próprias, pois isso iria se confrontar com a ideia de obter o melhor pelo mais econômico. Quase todo documento de uso de tecnologia digital, da nomeada transformação digital dos Estados, enaltece a redução de custos. Essa lógica reforça a colonialidade, uma vez que a margem de manobra e as opções para encontrar outras saídas longe da compra de produtos e serviços das grandes corporações dos países ricos seriam muito pequenas ou inexistentes.
No cenário das tecnologias da informação e no capitalismo digital, Dan Schiller, já no fim do século XX, havia detectado que, embaladas pelo neoliberalismo, as infraestruturas do ciberespaço, os sistemas de telecomunicações, foram completamente orientadas para o mercado e o fortalecimento de corporações transnacionais. Schiller via, entre outras consequências, que a expansão da internet nos levaria ao aprofundamento do consumismo em escala transnacional e ao domínio até das estruturas e processos educacionais dos países pobres. O que ocorreu no início de 2020 com o Sistema de Seleção Unificada, SiSU, do Ministério da Educação (MEC), é um exemplo cabal do reforço mútuo da relação entre o neoliberalismo e a colonialidade, bem como das tendências apontadas por Schiller.
O SiSU é um sistema informatizado, criado em 2010, pelo qual as instituições públicas de ensino superior ofertam suas vagas conforme as notas obtidas pelas pessoas que participaram do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). A direção do MEC decidiu entregar os dados do SiSU para serem processados na nuvem da Microsoft, chamada Azure. Ou seja, hospedou os dados do desempenho escolar de milhões de estudantes brasileiros para serem tratados na plataforma estadunidense.(26) O principal argumento foi o do alto custo em manter esses dados em um data center do próprio. Além disso, segundo a Rede Nacional de Pesquisa, a solução da Microsoft atendeu 1,8 milhão de estudantes, que realizaram 3,5 milhões de inscrições, com 210 mil usuários conectados ao mesmo tempo, perfazendo 7 mil inscrições por minuto e a média de 1,5 milhão de acessos diários. Outro importante argumento é de que, além de aumentar a segurança do processo, espera-se uma economia de aproximadamente 22 milhões de reais em cinco anos de projeto.
Dados dos estudantes que cursaram o ensino médio, como a renda familiar bruta mensal de cada um, os valores recebidos em diversos programas sociais, a nota no Enem, as médias populacionais relacionadas à cor declarada e a deficiências, entre outras informações sensíveis, foram entregues à plataforma Microsoft Azure. Não consta dos debates públicos ou entre gestores do governo a constatação de que a corporação estadunidense de tecnologia possui interesses econômicos no país e na própria área educacional brasileira, nem que, provavelmente, hospedou os dados em servidores localizados nos Estados Unidos, em sua denominada nuvem pública. O acesso e a manipulação desses dados não aparecem como problema. As notas das autoridades não destacam nem mesmo a importância das normas contratuais específicas de proteção de dados de adolescentes.
No contexto da governamentalidade neoliberal, a construção de uma solução infraestrutural para a hospedagem de dados e a implementação de frameworks de inteligência artificial do próprio MEC e das universidades brasileiras não é considerada razoável. A economia imediata, a entrega de atividades antes executadas pelo Estado a empresas privadas, a crença em contratos e em um padrão moral isento de interesses geoestratégicos e negociais conformam um regime de verdade da gestão pública neoliberal. Assim, os primados da boa conduta neoliberal inundam as cartilhas de boas práticas da gestão pública e reforçam a dependência das práticas econômicas das grandes plataformas, das big techs. Os princípios neoliberais reforçam a colonialidade, esse padrão de poder mundial que surgiu há mais de quinhentos anos.
A colonialidade trabalha preferencialmente o tempo imediato. As soluções sempre devem estar prontas, a dromoaptidão (27), a velocidade acelerada das soluções ofertadas pelas plataformas é enaltecida. As corporações sempre estão prontas a nos servir, serão mais rápidas do que construir um caminho de aprendizado e de fortalecimento das inteligências locais. No contexto da colonialidade, o colonizado, a inteligência coletiva local, nunca está pronto, apto, capacitado para enfrentar um problema sem recorrer a uma corporação da matriz. O neoliberalismo se aconchega na colonialidade.
Economia Digital e Mercado de Dados
A colonialidade é um padrão mundial assimétrico de poder e de subjetivação. O neoliberalismo é o atual ordenamento capitalista que envolve um estilo de governar e de ver o mundo como um arranjo de empresas que competem em função de um progresso infinito. O desenvolvimento do capitalismo ainda em transição para a supremacia neoliberal, no último quarto do século XX, viu surgir uma revolução tecnológica em que os produtos de maior valor agregado eram originados das tecnologias informacionais. Manuel Castells descreveu esse processo como a superação do mundo industrial e a constituição de uma era informacional, sem fazer uma relação de causa e efeito entre o sistema socioeconômico e a emergência das tecnologias da informação. (28) Nesta era informacional, o capitalismo promoveu a digitalização de toda a produção simbólica e ampliou as redes digitais que recobriram o planeta. O capitalismo informacional se digitalizou e na primeira década do século XXI assentou bases para o surgimento de um mercado de dados pessoais, que não nasceu de um devir das tecnologias digitais.
Anteriormente, o mercado de dados era relativamente pequeno, servindo principalmente ao capitalismo financeiro. Entretanto, com o sucesso de um modelo de negócios baseado na oferta em rede de interfaces e serviços gratuitos, a coleta e o tratamento de dados pessoais foram crescendo e gerando um fenômeno dominante na economia digital. Assim, o capitalismo neoliberal do século XXI tem na dataficação um segmento de destaque e de alta lucratividade. Esse capitalismo baseado em dados é chamado pela pesquisadora Shoshana Zuboff de capitalismo de vigilância. (29)
Enquanto o capitalismo digital indica um conjunto específico de tecnologias, o capitalismo de vigilância enfatiza um processo socioeconômico baseado na coleta generalizada de dados. Outra expressão – capitalismo de plataforma – destaca a instituição superior e típica da economia baseada em dados. Nick Srnicek define plataforma como uma estrutura digital que se coloca como intermediária da relação entre elementos de um mercado ou segmento de mercado.(30) A plataforma permite que a oferta encontre a demanda e vice-versa. Ela coleta dados de todos os agentes de um mercado e assim fica em posição estratégica. A Uber é um exemplo de plataforma. Seu negócio consiste na colocação de interfaces que permitam àquele que tem um veículo para o transporte individual urbano encontrar aquele que precisa realizar um deslocamento na cidade e está disposto a pagar por isso. Com a operação em curso, as plataformas que utilizam sistemas algorítmicos em sua gestão vão obtendo dados estratégicos de cada elemento do mercado.
O mercado de dados se tornou um dos principais mercados do capitalismo contemporâneo. É altamente lucrativo e tem gerado plataformas gigantescas que não param de coletar dados e colonizar o planeta, o que Couldry e Mejias qualificaram como a conversão dos fluxos da vida em dados.(31) No início de 2020, das cinco empresas que ultrapassaram o valor de 1 trilhão de dólares na Bolsa de Valores de Nova York,32 quatro eram empresas de tecnologia da informação (Apple, Microsoft, Alphabet, Amazon) e apenas uma era de outro segmento, a petrolífera estatal saudita Aramco. Das quatro empresas de tecnologia, uma tem mais de 90% do seu faturamento originado em operações com dados pessoais, o grupo Alphabet, controlador do Google. Duas são plataformas, conforme definição de Nick Srnicek: Amazon e Alphabet. A Microsoft e a Apple estão se convertendo igualmente em plataformas gigantescas, tendo os dados como fonte importante de seus rendimentos.
Em 2019, os faturamentos das cinco grandes big techs – Google / Alphabet, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft – atingiram a estratosférica quantia de 899 bilhões de dólares. Um número que, comparado ao PIB de diversos países no mesmo período, demonstra o poder dessas empresas: 48,8% do PIB do Brasil (1,8 trilhão de dólares), 70% do PIB do México (1,2 trilhão de dólares), 64% do PIB da Espanha (1,3 trilhão de dólares), duas vezes o PIB da Argentina (445 bilhões de dólares).
Apenas os faturamentos do grupo Google/Alphabet e das empresas do Facebook perfizeram 232,5 bilhões de dólares em 2019. Essas duas corporações são plataformas que sustentam suas operações fundamentalmente no armazenamento, no tratamento e na análise de dados pessoais. A comparação dos faturamentos das empresas com o PIB dos países, naquele mesmo ano, reforça o sucesso do modelo dos negócios da dataficação. Ilustra a enorme força da combinação jamais vista da concentração de poder econômico, poder comunicacional e poder de análise. Google/Alphabet e Facebook faturaram um valor igual aproximadamente a 71% do PIB da Colômbia, a 82% do PIB do Chile, a 102% o PIB do Peru, a duas vezes o PIB do Equador, a quatro vezes o PIB do Uruguai e a 5,6 vezes o PIB da Bolívia.
Alienação técnica, redes de sujeição e ofuscamentos
A alienação técnica é uma condição que contribui muito com a colonialidade, em um cenário em que as tecnologias são cada vez mais elementos fundamentais da constituição do poder econômico, cultural e político. A alienação técnica alavanca a alienação do trabalho e se dissemina com a ideia de que as tecnologias são apenas meios, nada mais que instrumentos a nosso serviço. A alienação técnica, termo originariamente forjado pelo filósofo Gilbert Simondon,(33) aqui é definida como a ignorância ativa sobre como funcionam as redes de criação, desenvolvimento e uso de tecnologias, na fé da completa ausência de importância de se conhecer e dominar localmente os processos tecnológicos. A alienação tecnológica em uma sociedade dataficada é reforçada pelo dataísmo. Segundo Jose Van Dijck, o dataísmo é a crença na quantificação e no rastreamento de todos os tipos de comportamento humanos e sociabilidades pelas tecnologias das mídias online. (34)Também é a confiança extrema na imparcialidade e na neutralidade dos agentes que coletam, interpretam e compartilham os dados coletados.
A alienação técnica apoia a ofuscação promovida pelas redes de submissão, encontradas no processo de colonialidade. O primeiro desse obscurecimento aqui tratado é a crença de que as empresas e plataformas digitais seriam neutras e apenas existem para melhorar a nossa experiência. Bruno Latour (35) nos mostrou que o papel de intermediário quase sempre é o de mediador, ou seja, aquele que interfere nas interações e nas relações com seus valores e sentidos de urgência, entre outros elementos. Todavia, vamos a um ponto mais prosaico. A operação de um mero mecanismo de busca aloca o resultado em um ordenamento de links conforme critérios que envolvem decisões humanas, portanto, carregadas de valores, noções, saberes e decisões políticas de qual seria a melhor solução para uma escolha algorítmica ou o melhor modo de aprendizado com os dados que receberá. Os conteúdos distribuídos pelos algoritmos do Facebook seguem parâmetros definidos pelos seus formuladores e visam ampliar a monetização da plataforma. A Uber escolhe motoristas conforme seus critérios de pontuação que envolvem penalizações e incentivos aos que estão adequados ao perfil definido pelos gestores da empresa.
No período eleitoral de 2020, tanto o Facebook quanto o YouTube realizaram bloqueios de conteúdo ou proibiram impulsionamentos com óbvia conotação política e moral. Além disso, Edward Snowden, em 2013, mostrou com evidências incontestadas e assumidas pelo governo estadunidense que as empresas de tecnologia colaboraram com a espionagem global realizada pela National Security Agency, NSA, agência de inteligência das redes informacionais dos Estados Unidos.
A segunda grande ofuscação ocorre pela confiança e pela fé no cumprimento dos contratos pelo conjunto das plataformas, mesmo quando a decisão está fora da jurisdição nacional. Como se o Poder Judiciário de um país rico e poderoso não tivesse a tendência de proteger suas corporações. Como se os contratos de guarda de dados não fossem extremamente complexos. Além disso, as minúcias das declarações e das políticas de armazenamento e de tratamento de dados deixam, em geral, cláusulas que permitem uma série de ações não imaginadas e não previstas pelos clientes. Até porque tais clientes estão pouco preocupados com essas plataformas, pois estão submetidos à crença em sua completa neutralidade e ausência de usos não declarados. O caso da fraude dos algoritmos embarcados nos sistemas eletrônicos dos veículos da Volkswagen pode ilustrar bem que pessoas jurídicas praticam ações ilícitas tanto quanto as pessoas físicas. (36)
Outro caso que desencoraja a convicção cega na correção e na legalidade permanente das ações corporativas vem da plataforma Google, flagrada armazenando ilegalmente os endereços de redes Wi-Fi por meio de seus veículos do Google Street View. Primeiro negou, mas posteriormente a Google assumiu que, a partir de receptores ocultados em seus veículos, coletou os endereços das placas de rede dos roteadores (MAC addresses), o SSIDs de rede (o nome de ID de rede atribuído pelo usuário) e que interceptou e armazenou dados de transmissão de Wi-Fi, o que inclui senhas e conteúdos de e-mail. (37)
O terceiro elemento da ofuscação é a convicção de que a coleta massiva de dados das populações tem o mesmo efeito nos países ricos e centrais e nos pobres e periféricos. Não haveria diferença na extração de dados nos Estados Unidos, na França e no Brasil. Sem dúvida, o modelo implementado pelas plataformas é o de extração, processamento e análise de dados em todo o planeta. Todavia, os efeitos não são os mesmos. O fluxo transfronteiriço de dados não é do Norte para o Sul, mas da periferia para o centro. Os dados dos estudantes estadunidenses e franceses dificilmente seriam armazenados e tratados fora de seus países, dificilmente poderiam ser levados para um data center na Rússia, China ou Brasil, que não fosse de propriedade de suas empresas nacionais. Basta observar o argumento apresentado pelo governo inglês para, em um primeiro momento, proibir o uso de equipamentos 5G da Huawei em seu território. A empresa chinesa é acusada de praticar espionagem cibernética para o governo chinês, sendo uma ameaça à segurança nacional do Reino Unido. As razões para restrições e bloqueios tecnológicos podem ser outras, mas é perceptível que os países centrais resistem em perder seu poder tecnológico, mesmo para um gigante como a China.
As volumosas verbas de publicidade de um mercado como o brasileiro, que antes ficavam dentro do próprio país, com o crescimento do poder das plataformas na mediação das principais relações do cotidiano dos países periféricos, são transferidas aos grupos que controlam as tecnologias. As plataformas detêm os serviços digitais mais utilizados e, a partir deles, os serviços mais lucrativos. A perda de recursos econômicos se dá ao lado de uma maior sujeição cultural e demasiado bloqueio à criatividade local que não seja definida dentro da controlada arquitetura de informações e dentro dos limites do desenho dessas plataformas. O resultado econômico é a maior retirada de capital da balança de serviços e consequentemente maior dependência de superávits na balança comercial.
Além disso, as redes de submissão organizadas pelas consultorias, pelos lobistas das grandes corporações, serviços diplomáticos e organizações como o World Economic Forum visam disseminar uma cultura de subordinação aos produtos e serviços tecnológicos das plataformas, impedindo a formulação e implementação de políticas públicas que utilizem o potencial e a inteligência criativa local. Na economia de dados, isso se manifesta na impossibilidade de até mesmo tratar os dados das empresas e da sociedade nos próprios territórios e em instituições e empresas locais. A fusão do ordenamento neoliberal com as teias de colonialidade sustentam a posição de eterno dependente das tecnologias criadas na matriz. Para adquiri-las, deve buscar aplicar os produtos de tecnologias avançadas e utilizar os serviços de dados e de aprendizado de máquina das plataformas nos produtos de exportação que sustentarão uma entrada de divisas positiva. Essa é uma das razões pelas quais na Estratégia Brasileira de Transformação Digital, lançada em 2018, não se indicam como vantagens competitivas brasileiras para superar desafios e avançar na digitalização da economia nem as nossas universidades nem a nossa criatividade técnica, muito menos a pesquisa local sobre inteligência artificial, mas um “agronegócio desenvolvido” e “um mercado consumidor atraente”.(38) Exportam-se dados em estado bruto para se obterem informações e soluções algorítmicas das plataformas.
O quarto polo de ofuscamento está na convicção da impossibilidade de desenvolvimento de pesquisas e soluções a partir da aposta na inteligência computacional local, na soberania algorítmica e no conhecimento tecnológico como um bem comum livre. A noção de soberania algorítmica vem na esteira da noção de soberania relacionada ao design de software apresentada no livro de Benjamin Bratton chamado The stack: On software and sovereignty. (39) Soberania algorítmica é o nome da tese de doutorado de Denis Roio, defendida em 2018, (40) em que acompanha projetos que buscam aumentar o controle das comunidades e localidades sobre o desenvolvimento dos algoritmos. O pesquisador considera crucial compreender o que está inscrito em tais algoritmos, quais são as consequências de sua execução e quais agenciamentos operam. Essa prática de governança de um algoritmo pelas comunidades é fundamental em tempos de machine learning e de uma inteligência artificial baseada em dados. A ideia de soberania pode ser ampliada para a estrutura de dados e para o controle democrático de dados pela sociedade.
Os movimentos de software livre e as possibilidades de tecnologias abertas são brechas na estrutura do neoliberalismo e permitem a apropriação de tecnologias para a sua reconfiguração e para receberem as influências das culturas e cosmovisões locais. No caso brasileiro, as universidades estão paralisadas em virtude da colonialidade e da dominação epistemológica que bloqueiam ações avançadas de inventividade para além do mercado de dados e das perspectivas das plataformas.
Conclusão
Apesar de a expressão colonialismo de dados ser empregada como um modo geral de as big techs colonizarem as sociedades com dispositivos de coleta de dados, como uma fase comparável a um processo de apropriação inicial e transitório para a consolidação de uma outra fase do capitalismo, a observação da dinâmica do capital indica que o colonialismo de dados também, e principalmente, deve ser compreendido como um processo de empobrecimento dos países periféricos diante das gigantescas plataformas de dados. Os fluxos dos dados estão ocorrendo em sentido único. Dados como ativos de grande valor econômico e insumos vitais para os sistemas algorítmicos de aprendizado de máquina são gerados por dispositivos criados pelas plataformas que os extraem e concentram em seu poder. Isso gera maior capacidade de análise e, por conseguinte, maior conhecimento codificado nas mãos das plataformas, novos leviatãs.
É urgente iniciar um conjunto de pesquisas que tracem as redes de subordinação da colonialidade nesse cenário de uma economia neoliberal dataficada. É igualmente necessário descortinar e decodificar a colonialidade nas práticas discursivas e ideológicas, as que consolidam e reproduzem barreiras paralisantes para a apropriação dos dados e para a criação de novos usos e novas finalidades. Que as tecnologias sirvam às localidades e aos interesses da inteligência coletiva, que rompam com as assimetrias e com as desigualdades do capital.
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Notas:
(18) Rosa, Arthur. “Processos do TJSP serão armazenados na nuvem”.Valor Econômico, 21 fev. 2019. Disponível em: https://www.valor.com. br/legislacao/6128767/processos-do-tj-sp-serao-armazenados-na-nuvem. Acesso em: 29 jul. 2021.
(19) “TJSP fecha contrato de R$ 1,3 bi com Microsoft para plataforma digital”. Computer World, 21 fev. 2019. Disponível em: https://compu- terworld.com.br/negocios/tjsp-fecha-contrato-de-r-13-bi-com-mi- crosoft-para-plataforma-digital/. Acesso em: 29 jul. 2021.
(20)“TJSP anuncia desenvolvimento da nova plataforma de Justiça Di- gital”. TS Inside, 20 fev. 2020. Disponível em: https://tiinside.com. br/20/02/2019/tjsp-anuncia-desenvolvimento-da-nova-plataforma-de-justica-digital/. Acesso em: 29 jul. 2021.
(21) “TJSP anuncia desenvolvimento da nova plataforma de justiça digi- tal”. Site do Tribunal de Justiça de São Paulo, 20 fev. 2019. Disponível em: https://www.tjsp.jus.br/Noticias/Noticia?codigoNoticia=55845. Acesso em: 21 fev. 2021.
(22) “Plenário ajusta liminar que regula contrato do TJSP com Micro- soft”. Site do Conselho Nacional de Justiça, 9 abr. 2019. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/plenario-ajusta-liminar-que-regula-con- trato-do-tjsp-com-microsoft/. Acesso em: 29 jul. 2021.
(23) Barbiéri, Luiz Felipe. “CNJ proíbe TJ-SP de executar contrato de R$ 1,32 bilhão com a Microsoft”. Site da Anajus, 26 jun. 2019. Disponível em: https://anajus.org.br/cnj-proibe-tj-sp-de-executar-contrato-de-r-132-bilhao-com-a-microsoft/. Acesso em: 29 jul. 2021.
(24) Quijano, Aníbal. “Colonialidad y modernidad / racionalidad”. Perú Indígena, v. 13, n. 29, p. 11-20, 1992. Ver também: Quijano, Aníbal. “Colonialidade do poder e classificação social”. In: Santos, Boaventura Sousa; Meneses, Maria Paula (Org.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010. p. 84-130.
(25) Ricaurte, Paola. “Data epistemologies, the coloniality of power, and resistance”. Television & New Media, v. 20, n. 4, p. 350-365, 2019.
(26) Menezes, Dyelle; Pera, Guilherme. “Microsoft destaca Sisu em nuvem comocasedesucesso”. Portaldo Ministérioda Educação(MEC), 23 mar. 2020.Disponívelem:https://www.gov.br/mec/pt-br/assuntos/noticias/microsoft-destaca-sisu-em-nuvem-como-case-de-sucesso. Acesso em: 29 jul. 2021.
(27) Trivinho, Eugênio. “Introdução à dromocracia cibercultural: contextualização sociodromológica da violência invisível da técnica e da civilização mediática avançada”. Revista FAMECOS: mídia, cultura e tecnologia, n. 28, p. 63-78, 2005.
(28) Castells, Manuel. A sociedade em rede. 21. ed. Rio de Janeiro: Paz s Terra, 2013. v. 1: A Era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura.
(29)Zuboff, Shoshana. The Age of Surveillance Capitalism: The Fight for a Human Future at the New Frontier of Power. Whashington: PublicAffairs, 2019.
(30) Srnicek, Nick. Platform Capitalism. Nova Jersey: John Wiley s Sons, 2017.
(31) Couldry, Nick; Mejias, Ulises A. The Costs of Connection: How Data Is Colonizing Human Life and Appropriating It for Capitalism. Stan- ford: Stanford University Press, 2019.
(32) As 4 empresas de tecnologia que já valem mais de US$ 1 trilhão”. Portal G1, 15 fev. 2020. Disponível: https://g1.globo.com/economia/ tecnologia/noticia/2020/02/15/as-4-empresas-de-tecnologia-que-ja-valem-mais-de-us-1-trilhao.ghtml. Acesso em: 29 jul. 2021.
(33) Simondon, Gilbert. El modo de existencia de los objetos técnicos. Buenos Aires: Prometeo Libros Editorial, 2007.
(34) Van Dijck, Jose. “Datafication, dataism and dataveillance: Big Data between scientific paradigm and ideology”.Surveillance & Society, v. 12, n. 2, p. 197-208, 2014.
(35) Latour, Bruno. Reagregando o social: uma introdução à teoria do Ator-Rede Salvador. Bauru: Edufba / Edusc, 2012.
(36) “Dieselgate: veja como escândalo da Volkswagen começou e as con- sequências”. Portal G1, 23 set. 2015. Disponível: http://g1.globo.com/ carros/noticia/2015/09/escandalo-da-volkswagen-veja-o-passo-pas- so-do-caso.html. Acesso em: 29 jul. 2021.
(37)“Investigations of Google Street View”. Epic.org Eletronic Privacy Information Center. Disponível em: https://epic.org/privacy/street- view/. Acesso em: 27 maio 2021.
(38) Brasil. Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações. Estratégia brasileira para a transformação digital. Brasília: MCTIC, 2018. Disponível em: https://antigo.mctic.gov.br/mctic/export/sites/ institucional/arquivos/estrategiadigital.pdf. Acesso em: 29 jul. 2021.
(39) Bratton, Benjamin H. The Stack: On Software and Sovereignty. Massachusetts: MIT Press, 2016.
(40) Roio, Denis. Algorithmic sovereignty. (Tese de Doutorado em Filosofia), University of Plymouth, 2018. Disponível: http://hdl.handle. net/10026.1/11101.