As Forças Armadas brasileiras foram construídas para atuar em prol das classes dominantes, combatendo todos os esforços para democratizar o poder e distribuir a riqueza no país. Aqui estão algumas propostas para converter esta força ideológica armada caríssima e incompetente, que ameaça nossa democracia, em uma instituição que defenda de fato a soberania nacional e popular.
Sergio Amadeu da Silveira, Jacobin Brasil, 18 de dezembro de 2021
O pensador francês Alexis de Tocqueville detinha uma intuição impressionante. No livro Da Democracia na América, lançado em 1835, Tocqueville especulou sobre o que ocorreria se “em consequência do espírito inquieto do Exército” surgisse um governo militar? Entre suas conclusões, afirmou que “o povo se tornaria uma imagem do Exército, e a sociedade seria gerida como uma caserna”. Considerava extremamente perigoso “o amor excessivo de todos os cidadãos pela tranquilidade” o que levaria a sociedade e a Constituição a ficar “à mercê dos soldados”. Como um conjunto permanente de homens armados sempre seria um grande perigo para as democracias, Tocqueville aconselhava que “o meio mais eficaz de diminuir esse perigo” seria “reduzir o Exército: mas este é um remédio que não pode ser utilizado por todos os povos”.
Tocqueville nos trouxe uma grande questão. O Brasil tem como enfrentar esse perigo? O Exército brasileiro tem sido instrumento de intervenções antidemocráticas a serviço de interesses de segmentos das classes dominantes desde o Império. Essa subordinação continuou com a instalação da República por meio de um golpe militar. O tenentismo não alterou esse espírito serviçal dos generais e aprofundou a ideologia do Exército como um poder moderador, ou seja, interventor.
Talvez a sociedade brasileira não tenha força política suficiente para “reduzir o Exército” ou mesmo para dissolvê-lo com o objetivo de criar forças especiais de defesa nacional, como aconteceu na Alemanha e Japão após a desintegração do eixo nazista, altamente profissionais e proibidas de atuar no cenário político. Os estrategistas do golpe militar de 1964 perceberam que além da “abertura lenta, gradual e segura” para uma democracia controlada, seria fundamental criar raízes profundas do militarismo em nossas instituições. Já haviam militarizado as polícias estaduais para que o controle cotidiano das ruas não fosse feito pelas tropas de um Exército. Esse legado nunca preocupou profundamente os grandes líderes da Assembleia Nacional Constituinte de 1988, muito menos dos governos seguintes, democraticamente eleitos. A questão militar sempre foi deixada de lado.
Policiamento ostensivo
As polícias militares (PMs), criadas em 1969 pelo regime militar, tinham um efetivo de 428.495, em 2017. Hoje, o Exército tem 334.500 militares na ativa. O aparato militar no Brasil é gigantesco. Atualmente, o número de militares no Brasil deve se aproximar de 1 milhão de integrantes.
A nossa Constituição afirma que as polícias militares e os corpos de bombeiros militares são forças auxiliares e reserva do Exército. Um regulamento denominado R-200 instituído pelo Decreto 88.777, de 30 de setembro de 1983, assinado pelo então presidente, o general João Figueiredo, ainda está em vigor – isso mesmo: um decreto presidencial da ditadura nunca foi revogado. Nele existe a indiscutível subordinação das unidades da PM ao “Grande Comando Militar que tenha jurisdição sobre a área em que estejam localizadas”. Além disso, está lá definido que as PMs poderão ser convocadas pelo Exército para “prevenir ou reprimir grave perturbação da ordem ou ameaça de sua irrupção”.
Os tentáculos do Exército penetram nas estruturas de vigilância das polícias em cada Estado. No artigo 41 do R-200 é determinado que as “polícias militares integrarão o Sistema de Informações do Exército, conforme dispuserem os Comandantes de Exército ou Comandos Militares de Área, nas respectivas áreas de jurisdição”. A denominada 2ª Seção das polícias estaduais, cuja missão é a espionagem e a coleta de informações, ficam a mercê da Inteligência do Exército.
A partir do golpe que depôs a presidente Dilma Roussef, essas engrenagens que pareciam ter desaparecido, corroídas pelo tempo, voltaram a funcionar. Na realidade, nunca deixaram de existir. Em setembro de 2016, 21 jovens foram presos no Centro Cultural São Paulo quando se reuniam para participar de um ato contra o presidente golpista Michel Temer (PMDB), na Avenida Paulista, em São Paulo. Tinham no seu grupo, o Balta Nunes, que se aproximou dos jovens pelo aplicativo de paquera Tinder. Balta, na realidade era Willian Pina Botelho, capitão de inteligência do Exército. A operação de inteligência integrou a PM com o Exército. Na época, o então governador Geraldo Alckmin declarou que não fora consultado, ou seja, a ação foi realizada a revelia do governador.
O Exército alocou um oficial para vigiar um grupo de adolescentes e, mesmo depois que tudo isso foi revelado, nada aconteceu. Isso diz muito sobre a missão e os objetivos das nossas Forças Armadas. O inimigo da instituição voltou a ser interno. A doutrina de Segurança Nacional forjada na chamada “Guerra Fria”, que embalou os quartéis durante o regime militar instaurado em 1964, volta a dirigir as ações da força bélica brasileira. O Exército não tem mais o que fazer? Infiltrar agentes em movimentos estudantis, em organizações sociais e vigiar os ambientalistas e lideranças indígenas é o grande negócio do Exército.
Inimigo interno
Uma das piores heranças do intervencionismo militar não foi removida na Assembleia Nacional Constituinte de 1988. Os militares conseguiram manter na Constituição mais democrática que o país já teve a responsabilidade pela defesa interna. Conquistaram no artigo 142 a seguinte redação: “As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.”
Aqui está a senha para a “intervenção militar constitucional” tão aclamada pelos apoiadores do presidente Jair Bolsonaro. A democratização do Brasil não será viável se não retirarmos as Forças Armadas da missão de assegurar a lei e a ordem, bem como, se não desmilitarizarmos as polícias. Exército, Marinha e Aeronáutica servem apenas a defesa externa, a defesa da nação contra ameaças militares estrangeiras. Nunca poderiam ser empregadas como polícia e muito menos, como serviçais de banqueiros e ruralistas.
Não é por menos que para intimidar o STF, no dia 3 de abril de 2018, para evitar que Lula tivesse um julgamento justo, o então ministro do Exército, general Villas Boas, lançou o primeiro tuíte lido no Jornal Nacional que dizia: “Asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais.”
A postagem foi combinada entre a Rede Globo e o general. A farsa da Operação Lava Jato precisava dos fuzis do Exército para romper a Constituição e preparar o caminho para a eleição de Bolsonaro. No ano seguinte, em entrevista para a Folha de São Paulo, o general Villas Boas disse que o Exército entraria em ação caso Lula tivesse um julgamento favorável. É importante frisar que para muitos especialistas e líderes de esquerda esse era um general democrata. As esquerdas brasileiras desconsideram que a missão do Exército foi reconfigurada pelos generais ainda no interior do governo do PT, apesar do Livro Branco de Defesa ter alterado a doutrina de Segurança Nacional construída para transformar as Forças Armadas em polícia dos Estados Unidos no cenário da Guerra Fria.
O intervencionismo e o golpismo estão no DNA do Exército brasileiro. Uma das maiores lideranças militares do país foi o general Pedro Aurélio de Góes Monteiro, um dos grandes articuladores do Estado Novo. Ele foi um grande doutrinador e construiu um caminho consistente para que o poder fosse exercido pelo seleto grupo de generais. Em um livro denominado A Revolução de 30 e a finalidade política do Exército, Góes Monteiro escreveu na página 163: “Sendo o Exército um instrumento essencialmente político, a consciência coletiva deve-se criar no sentido de se fazer a política do Exército, e não a política no Exército.”
Sua doutrina foi extremamente bem sucedida, pois aplicou o que escreveu na frase seguinte a citada: “E este deve repelir, a coices d’armas, todo elemento que, sob quaisquer disfarces, queira induzi-lo a tomar outra direção, do que, como tem acontecido, só poderá resultar a sua divisão, fraqueza e impotência.”
A inutilidade da nossa força militar
Osociólogo Edmundo Campos Coelho, estudioso das organizações, escreveu que “o grande medo dentro de um Exército sem funções de defesa externa é o de sua inutilidade até mesmo como instrumento de política interna”. Qual deve ser a missão ou os maiores objetivos das Forças Armadas brasileiras? Ser um partido político armado como queriam alguns generais? A doutrina do general Góes Monteiro não tinha como missão servir a democracia e garantir a autonomia da nação. Era de reformar a sociedade conforme seus valores conservadores. Góes Monteiro não acreditava na formação de um “Exército disciplinado em uma nação indisciplinada” segundo Edmundo Campos Coelho. O general dizia: “(…) o meio mais racional de estabelecer, em bases sólidas, a segurança nacional, com o fim sobretudo de disciplinar o povo e obter o máximo de rendimento em todos os ramos de atividade pública, é justamente adotar os princípios de organização militar, contanto que seja isenta do espírito militarista.”
A formação dos oficiais brasileiros é completamente moldada por um conservadorismo reacionário, pelo desprezo a diversidade cultural, pela absurda ideia de que as comunidades indígenas querem entregar a Amazônia à ONGs estrangeiras, ao mesmo tempo, que cultuam um sujeito ignorante como Jair Bolsonaro que diz querer entregar a floresta para a exploração conjunta só com os Estados Unidos. Esses oficiais são formados para combater o fantasma do comunismo e tudo que seja voltado à igualdade socioeconômica. Se arvoram incorruptíveis e combatentes contra a corrupção que é o discurso padrão para envolver pessoas menos atentas às engrenagens do sistema político. Ocorre que onde não há transparência na sociedade capitalista, a corrupção corre solta. Vimos isso na gestão da Saúde durante o governo Bolsonaro.
A corrupção só pode ser reduzida com muita transparência e muita participação da sociedade civil. Do contrário, corruptos como Sérgio Moro se tornam paladinos do combate à corrupção. Moro corrompeu as funções do Judiciário para se beneficiar. Além da relação com o Departamento de Estado em 2009, conforme revelou o Wikileaks, ainda não sabemos exatamente qual é a relação de Moro com esquemas das agências estadunidenses que têm interesses comerciais e políticos no Brasil.
Qual deve ser a missão das Forças Armadas e qual é o seu maior inimigo?
No Brasil, para os atuais oficiais, o inimigo é interno. São os “comunistas”, não mais soviéticos, talvez chineses. Obviamente isso interessa aos grupos ideológicos da extrema direita, mas trata-se de uma missão desnecessária e cara para o Brasil. O único país que pode oferecer perigo direto aos nossos interesses nacionais, ocupar nosso território e atuar contra nossos empreendimentos são os Estados Unidos. O ex-agente da NSA, Edward Snowden, nos mostrou isso efetivamente. Todavia, o Centro de Defesa Cibernética do Exército foi montado com a participação de empresas norte-americanas e com a assessoria de um agente da ABIN que foi líder do movimento pela livre escolha do software, organizado pela então Business Software Aliance para barrar a implementação de softwares de código aberto na primeira gestão do presidente Lula.
O objetivo de nossas forças de defesa deve ser defender o país e sua infraestrutura. Nossa sociedade não pode ter o quarto orçamento do Poder Executivo para ameaçar constantemente a democracia. Homens armados não podem fazer política. Generais de terno são inúteis. Pior, militares na política se comportando como queria Góes Monteiro, são uma ameaça para a nação. O Exército se tornou um partido político armado.
O entreguismo e o nacionalismo da ordem
Juarez Távora, ex-líder tenentista, e um dos políticos conhecidos como entreguistas, foi um dos maiores inimigos da criação da Petrobras. Sua história política e militar é um exemplo das linhas borradas entre a atividade militar e a política no Brasil. Disse ele certa vez:
“As Força Armadas não juram fidelidade incondicional aos agentes do poder constituído. Jura, sim, obediência à Constituição. O seu papel no mecanismo interno da República é a garantia da lei. E só dentro dos limites dela que sua obediência, indispensável à própria disciplina deve exercer-se, sem discussão, sem controvérsias.”
O discurso intervencionista e a ideia de moderador dos poderes que os militares querem legitimar no país é um dos maiores entraves para o nosso desenvolvimento político e tecnológico. Bajulados por ruralistas e especuladores, querem assegurar o papel de polícia política a serviço dos interesses das grandes corporações internacionais. Juarez Távora era enfrentado por militares nacionalistas. Hoje, o nacionalismo que resta nas Forças Armadas é o que podemos chamar de nacionalismo da ordem interna. Os militares do regime de 1964 realizaram a modernização conservadora que gerou uma série de empreendimentos no país, como a Embraer. Os militares atuais querem apenas ser os guardas do quarteirão do sul que garantem a paz para o sucesso dos Estados Unidos na hegemonia global. Estão contentes com as camadas médias que passam férias em Miami. Acreditam na fórmula positivista e empiricamente desastrosa da ordem e progresso. Eles são adestrados para isso.
Em um cenário global em que o poder econômico, militar e político se dá com a utilização de tecnologias da inteligência, o governo do capitão Jair Bolsonaro se esforça em vender empresas estratégicas para o país. O pior, embalado pelo neoliberalismo mais primário, o governo federal está utilizando os dados das conversas do aplicativo SouGov para treinar os algoritmos do sistema de inteligência artificial Watson da IBM. Os dados são remetidos para os Estados Unidos. Assim, toda vez que um servidor civil ou militar do Brasil estiver utilizando o chat do aplicativo estará aperfeiçoando o Watson. Nenhuma preocupação em construir uma infraestrutura em nosso país para garantir a criatividade e a inventividade locais. No país dos militares brasileiros não existe soberania de dados.
A ilusão da esquerda
Carlos Prestes era militar. Boa parte do comitê central do Partido Comunista Brasileiro (PCB) era composto de ex-militares. Isso inspira o sonho de alguns militantes que existiriam militares que pudessem conduzir uma revolução contra as classes dominantes que mantém o Brasil no atraso e em um processo de concentração de renda alimentado e alimentando o racismo estrutural da nossa sociedade. Isso não é possível, pois a estrutura fundamental do Exército foi construída para combater qualquer possibilidade de socialismo no continente.
Um dos maiores geopolíticos do Exército brasileiro, General Meira Mattos, em um ensaio denominado “Estratégias Militares Dominantes”, lançado em 1986, já na fase de democratização do país, afirmou “que o efeito estratégico que devemos perseguir… é o de criar uma força de dissuasão que desencoraje qualquer atitude agressiva que os azares da política puderem a vir acalentar entre nossos vizinhos da América do Sul”. Em seguida, deixa claro o segundo objetivo estratégico: “Igualmente devemos fortalecer, em nossos quadros de oficiais e sargentos, e em nossa tropa em geral, um espírito democrático combativo, impenetrável à propaganda ideológica marxista-leninista… o Brasil que queremos… não passa pelos caminhos utópicos do marxismo.”
Deve ficar claro que as Forças Armadas brasileiras foram construídas para atuar efetivamente para as classes dominantes. Tudo que democratiza e distribui a riqueza é visto como um perigo para os militares. O inimigo interno sempre será o grande inimigo. A sociedade deve sustentar uma força ideológica armada e que sempre ameaça a democracia dizendo que quer defendê-la? Tal como Bolsonaro, que se pronuncia a favor da ditadura, fala que o faz em defesa da liberdade. Essa confusão não esconde a natureza antidemocrática das Forças Armadas brasileiras.
Generais são necessários?
Está na hora de reconfigurar as Forças Armadas. É hora de pensarmos em forças especiais que cuidem de áreas importantes da Defesa Nacional. Força de Fronteira. Força de Dissuasão. Força Cibernética. Força da Selva. Necessitamos de um comando militar que somente integra as Forças quando ocorrer uma ameaça de agressão de outra força militar. Um Estado Maior que se forma com comandantes profissionais e não com políticos. A Aeronáutica e a Marinha devem ser redesenhadas e modernizadas. Precisamos de Forças com maior capacidade tecnológica. Além disso, as polícias estaduais não podem continuar a ser forças militares. A atividade policial é estritamente civil. O infrator não faz parte de um exército inimigo. As polícias não podem ser uma estrutura de extermínio de negros e pobres. Mesmo o crime organizado se combate com forças civis, bem estruturadas e bem remuneradas.
Qual o problema de qualquer proposta de reconstituição das atuais forças militares? Eles irão resistir e ameaçar. Querem manter o poder moderador, a capacidade de impor pela violência sua vontade à nação. Junto a isso, a extrema direita neofascista conta com essa atual organização e doutrina para realizar seu sonho de golpear a democracia. Por isso, é vital uma derrota eleitoral acachapante de Bolsonaro, a barriga de aluguel do Partido Fardado. Com ela, teremos um breve tempo para tentar alterar essa organização golpista financiada com dinheiro público.
Sérgio Amadeu da Silveira é sociólogo, professor na UFABC e autor e organizador de diversos livros. O último, lançado recentemente, é "Colonialismo de dados: como opera a trincheira algorítmica na guerra neoliberal" (Autonomia Literária, 2021).