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Sergio Ramírez: Nicarágua - O cheiro de um cadáver decomposto

29 de junho de 2021

A escolha na Nicarágua não é entre esquerda e direita, mas entre ditadura e democracia. É o que os governos do hemisfério devem entender. E que a democracia não é assunto de tom local, mas diz respeito a todos.

Sergio Ramírez, Letras Libres / IHU-Unisinos, 22 de junho de 2021. A tradução é do Cepat.

Na história da Nicarágua, os governantes livremente eleitos são a exceção, e os caudilhos que pretendem se tornar eternos no poder são a regra. A revolução liberal do general José Santos Zelaya, em 1893, deu lugar à Constituição mais ambiciosa que o país já teve em sua história, tanto é assim que foi chamada “a libérrima”, mas durou apenas uma semana. Zelaya mandou suspender sua vigência, porque um de seus artigos proibia a reeleição. Após 10 anos, foi derrubado por uma revolta apoiada pelos Estados Unidos, e o presidente Porfirio Díaz enviou uma corveta de guerra para o conduzir em segurança ao porto de Salina Cruz.

Anastasio Somoza, que conferiu a si o grau de general, sem ter travado uma só batalha, em 1936, deu um golpe de estado contra o seu próprio tio, o presidente Juan Bautista Sacasa, e modelou sua própria Constituição para ficar no poder por duas décadas. Até que, em 1956, quando celebrava sua proclamação como candidato, disposto a se reeleger mais uma vez, cruzou em seu caminho um poeta, Rigoberto López Pérez, e o matou a tiros. Seus dois filhos, Luis e Anastasio, o sucederam no comando, mas o último deles foi derrubado pela revolução triunfante de 1979 e, assim como o seu pai, morreu vítima de um atentado, em seu exílio no Paraguai.

Paradoxalmente, o poder então conquistado pelas armas foi entregue, em 1990, pela Frente Sandinista, a Violeta Barrios de Chamorro, que derrotou em eleições livres o então presidente Daniel Ortega, candidato à reeleição. Mas daquela decisão da direção revolucionária, que poderia ter mudado o rumo do país e dado lugar à alternância democrática, Ortega não demorou a abjurar.

Perdeu mais duas eleições, mas graças a um pacto com o caudilho liberal Arnoldo Alemán, condenado por lavagem de dinheiro e fatos de corrupção, durante sua presidência, Ortega voltou a vencer em 2006. Por meio daquele pacto, a quantidade de votos necessários foi confortavelmente reduzida, o que lhe permitiu vencer no primeiro turno. E desta vez fez o juramento de não voltar a cometer o erro de aceitar outra derrota eleitoral. E aí estamos.

Conto essa história de caudilhos inimigos até a morte da democracia, porque ajuda a explicar a onda repressiva sofrida pela Nicarágua, com praticamente todos os possíveis aspirantes a vencer uma eleição de Ortega e outros destacados dirigentes políticos, jornalistas e empresários presos em celas de isolamento, e com as regras do jogo eleitoral pervertidas até o total descrédito. As eleições estabelecidas para novembro serão apenas uma grande palhaçada trágica, porque se houver alguém na disputa, será de mentira, um candidato arranjado, desses que na linguagem popular são chamados na Nicarágua de “candidatos de zacate”.

O modelo ditatorial é o mesmo do passado que não para de se repetir. Ortega é, mais uma vez, o caudilho que se considera ungido e, portanto, eterno, e por isso persegue e prende oponentes, mesmo que sejam seus próprios velhos companheiros de armas, como é o caso da comandante Dora María Téllez, a heroína da tomada do Palácio Nacional, em 1978, ou do comandante Hugo Torres, que tirou Ortega da prisão por meio de uma ação guerrilheira.

Em 2018, as pessoas saíram para exigir, sem armas, com os jovens na liderança, o fim desse ciclo trágico, e os policiais fiéis a Ortega, com as forças paramilitares, provocaram uma mortandade. Hoje, está proibido, sob pena de prisão, sair à rua e agitar uma bandeira da Nicarágua. Em uma campanha eleitoral, assim como em qualquer outra parte do mundo, as pessoas voltariam a marchar com suas bandeiras, e isso é intolerável para um regime cujas regras são o terror, a imobilidade e o silêncio.

Em uma campanha eleitoral normal, nenhum meio de comunicação deve ser confiscado, nem silenciado, como agora na Nicarágua, onde metade dos jornalistas independentes foram forçados ao exílio e outros estão presos, enquanto o que se exerce nas redes sociais é um jornalismo das catacumbas.

Na América Latina e na Espanha, existe uma esquerda estagnada na guerra fria, que acredita que Ortega representa valores revolucionários daqueles que no passado correspondiam aos ideais. Não há mais causa idealista na Nicarágua. As leis repressivas que servem para o estado perseguir e prender como traidores da pátria todos aqueles que se opõem à reeleição de Ortega, poderiam muito bem ter sido promulgadas pelo doutor Francia, ou pelo Generalíssimo Franco. Daquela revolução, só permanece o cheiro de um cadáver decomposto.

A escolha na Nicarágua não é entre esquerda e direita, mas entre ditadura e democracia. É o que os governos do hemisfério devem entender. E que a democracia não é assunto de tom local, mas diz respeito a todos.

Sergio Ramírez é um escritor premiado e protagonista da revolução nicaraguense, quando encabeçou o Grupo dos Doze, formado por intelectuais, empresários, sacerdotes e dirigentes que apoiaram a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN).