Tithi Bhattacharya, Svenja Bromberg, Angela Dimitrakaki, Sara Farris e Susan Ferguson (The Marxist Feminist Collective), Spectre, 3 de abril de 2020
Essa pandemia deve ser um momento para se propor uma agenda que defenda a vida acima do lucro, para que possamos deixar o capitalismo para trás, defende o Coletivo Feminista Marxista.
Tese 1: O capitalismo prioriza a geração de lucro sobre a geração de vidas. Queremos reverter esse princípio
Essa pandemia e a resposta que está sendo dada pela classe dominante ilustra claramente e tragicamente a ideia central da teoria da reprodução social: que a geração de vidas está sujeita às necessidades da geração de lucro.
A capacidade do capitalismo em produzir sua própria essência vital (lucro) depende inteiramente da “produção” diária dos trabalhadores. Isso significa que depende dos processos para gerar vida que não pode controlar e dominar de forma total ou imediata. Ao mesmo tempo, a lógica da acumulação necessita que os salários e impostos que sustentam a geração e a preservação da vida permaneçam o mais baixo possível.
Essa é a principal contradição dentro do capitalismo, que degrada e subvaloriza justamente aqueles que produzem uma riqueza social de verdade: enfermeiras e outros trabalhadores de hospitais e serviços de saúde, trabalhadores agrícolas, trabalhadores em fábricas de alimentos, funcionários de supermercados, entregadores, coletores, professores e cuidadores de crianças e idosos.
Estes são os trabalhadores racializados e feminizados que o capitalismo humilha e estigmatiza com baixos salários e, às vezes, com perigosas condições de trabalho. Ainda assim, a atual pandemia deixa muito claro que nossa sociedade simplesmente não pode sobreviver sem eles.
A sociedade também não pode sobreviver se as empresas farmacêuticas continuarem competindo pelo lucro e explorando nosso direito de permanecermos vivos. Da mesma forma, é evidente que a “mão invisível do mercado” não será capaz de implementar e gerenciar uma infraestrutura de saúde global como a que necessita humanidade, tal como está demonstrando a atual pandemia.
Consequentemente, a emergência sanitária está obrigando o capital a se concentrar em empregos vitais e geradores de vida, como, por exemplo, a assistência médica, a assistência social e a produção e distribuição de alimentos. Exigimos que essas prioridades sejam mantidas quando tenha passado a pandemia e que a educação e outras atividades de apoio à vida sigam um processo de desmercantilização e sejam acessíveis a todos.
Tese 2: Os trabalhadores no âmbito da reprodução social são trabalhadores essenciais. Exigimos que sejam reconhecidos como tal para sempre
Como a maioria das empresas fabricantes de produtos básicos, com falta de trabalhadores, viu como seus lucros e o valor de suas ações se precipitavam vertiginosamente, perceberam que dependem de organizações de pessoas, das comunidades, de famílias e dos indivíduos. Mas como o capitalismo precisa priorizar a geração de lucros em detrimento da geração de vidas, essas organizações, comunidades, famílias e indivíduos estão mal preparados para enfrentar o desafio.
Não foi apenas a Covid-19 que fez estragos em profissionais da saúde, do transporte público e dos restaurantes, em diversos voluntários comunitários e outros, mas, sim, anos e anos de desmantelamento de serviços sociais essenciais, em nome da austeridade, que fez com que as forças de trabalho no âmbito da reprodução social sejam muito menores do que costumavam ser, e também que existam menos organizações comunitárias e com menos recursos.
Para compensar décadas de desatenção, durante esta emergência, muitos Estados e multinacionais capitalistas estão alterando suas prioridades, embora apenas de maneira parcial e temporária. Estão enviando cheques para as casas, ampliando o seguro-desemprego para trabalhadores precários, ordenando que os fabricantes de automóveis produzam respiradores.
Na Espanha, o Estado assumiu o controle de hospitais privados de forma temporária. Nos Estados Unidos, as companhias de seguros estão dispensando o plano de saúde para os testes de Covid-19. Entre outras coisas, isso demostra como são imediatamente disponíveis e abundantes os recursos para realmente atender às necessidades das pessoas, quando existe vontade política.
Exigimos que os trabalhadores dos setores de reprodução social (enfermeiras, profissionais de limpeza de hospitais, professores, coletores de lixo, produtores de alimentos e funcionários de supermercados) sejam reconhecidos de forma permanente pelo serviço essencial que prestam e que seus salários, as prestações que recebem e sua posição social melhorem para refletir sua importância na subsistência da sociedade como um todo.
Tese 3: Resgatemos as pessoas, não os bancos
Nossos governantes estão destinando vastos recursos para resgatar as empresas, na esperança de evitar uma queda total do valor capitalista. Esses mesmos lucros, lembremos, são aqueles que foram produzidos pela força de trabalho que fornece trabalho social reprodutivo. Os diretores executivos das redes de hotéis e restaurantes, empresas de tecnologia, companhias aéreas e outros setores estão diminuindo sua força de trabalho, enquanto conservam seus exagerados salários e bonificações. Isso acontece porque o sistema capitalista precisa que a contradição entre vida e salário seja sempre resolvida em favor do capital, e não em favor da vida das pessoas.
Exigimos que todos os recursos financeiros e pacotes de estímulo sejam investidos em empregos que propiciam a vida e não em fazer com que as empresas capitalistas continuem funcionando.
Tese 4: Abramos as fronteiras e fechemos as prisões
Essa pandemia está golpeando os imigrantes e os presos: alguns estão em prisões ou centros de detenção com condições higiênicas indecentes e sem qualquer recurso sanitário, alguns estão sem documentos e sofrem em silêncio por medo de procurar ajuda e serem deportados, alguns trabalham em ocupações que geram vida (assistência de saúde e social, agricultura, etc.) e correm maior risco de infecção porque não têm outra opção a não ser continuar trabalhando (e carecem de equipamentos de proteção adequados ou nem sequer contam com eles), alguns estão a caminho de outros países em busca de suas famílias e outros não podem abandonar seus países devido às restrições de viagem ou por sanções.
Com pandemia ou sem ela, Trump manterá sanções contra o Irã (onde a taxa de infecções e falecimentos está subindo nas nuvens). Nem Trump e nem a União Europeia pressionarão Israel a suspender as sanções que retiram dos dois milhões de pessoas presas em Gaza os suprimentos médicos tão necessários. Essa diferença na resposta à pandemia faz uso e reforça a opressão racista e colonialista que constitui o submundo do capitalismo.
Exigimos que as necessidades de assistência médica prevaleçam sobre qualquer legislação de imigração, que sejam libertados imediatamente os que estão encarcerados pela maioria dos crimes e que sejam propostas sanções alternativas compassivas aos doentes, e que também sejam fechados os centros de detenção e outras instituições prisionais cujo objetivo é disciplinar e não alimentar a vida.
Tese 5: A solidariedade é a nossa arma: vamos usá-la contra o capital
A pandemia revelou ao mundo inteiro como os trabalhadores sempre saem à frente em situações de crise, graças a uma série ampla e criativa de estratégias de sobrevivência. Para a maioria, isso significa apoiar-se na família e nos amigos mais próximos. Outros, no entanto, estão aguentando graças a iniciativas de ajuda mútua. Para os sem-teto e para aqueles que a sociedade capitalista repudiou como se fossem um fardo, a ajuda veio de heroicas iniciativas voluntárias no âmbito da reprodução social que estão dando aos outros nada menos que o direito de viver.
Muitos bairros do Reino Unido criaram grupos de WhatsApp para manter contato com as pessoas mais vulneráveis e ajudá-las a obter comida e remédios. Os colégios estão enviando vale-refeição para famílias pobres com crianças que reúnem as condições para receber comida de graça. Os bancos de comida e as organizações de caridade estão vendo voluntários aumentarem. Os espaços comuns de reprodução social estão surgindo como uma necessidade urgente, embora também tenhamos aprendido as lições do passado: não permitiremos que os governos capitalistas os utilizem como desculpa para se esquivar de suas responsabilidades.
Como feministas socialistas, temos que continuar pressionando, temos que continuar trabalhando juntos para exigir um suprimento público de tudo o que é necessário para a vida humana prosperar. Isso significa desenvolver solidariedade entre as comunidades que foram afetadas de maneira diferente e que contam com recursos de forma desigual. Isso significa ajudar os mais marginalizados e defender que os que contam com recursos sociais (sindicatos, ONGs e organizações comunitárias) compartilhem e ajudem aqueles que não têm. Isso significa exigir que o Estado reconheça o trabalho de reprodução social como uma pedra angular da existência social.
Exigimos que os governos aprendam com o povo e reproduzam com medidas políticas o que as pessoas comuns estão fazendo para se ajudarem entre si.
Tese 6: Solidariedade feminista contra a violência doméstica
As medidas de confinamento adotadas pela maioria dos países para conter a disseminação da Covid-19, embora completamente necessárias, tiveram sérias consequências para milhões de pessoas que vivem com pessoas violentas. Durante a pandemia, multiplicaram-se as informações sobre violência contra mulheres e pessoas LGBTQ, já que as vítimas são forçadas a permanecer trancadas com parceiros e familiares violentos. As campanhas ‘fiquem em casa’ não levam em consideração a situação de maltrato doméstico, especialmente preocupante em um contexto em que anos de desenfreado neoliberalismo significaram que os fundos para abrigos e serviços contra a violência desapareceram.
Exigimos que os governos revertam anos de ausência de financiamento dos serviços contra a violência e proporcionem os recursos que as agências para operar e publicitar suas linhas de assistência necessitam.
Tese 7: Os trabalhadores no âmbito da reprodução social têm poder social. Podemos usá-lo para reorganizar a sociedade
Essa pandemia pode e deve ser um momento para a esquerda propor uma agenda concreta que se concentre em como defender a vida acima do lucro, para que possamos deixar o capitalismo para trás. Essa pandemia já nos mostrou o quanto o capitalismo precisa de trabalhadores no âmbito da reprodução social, com ou sem remuneração, em hospitais, em obras de infraestrutura, nas casas e nas comunidades. Não devemos esquecer isso e o poder social que esses trabalhadores possuem. Este é o momento de nós, os trabalhadores no âmbito da reprodução social, tomarmos consciência do poder social que temos em nossos contextos nacionais, nas fronteiras que nos separam e em todo o mundo.
Se nós pararmos, o mundo para. Essa nova percepção pode assentar as bases de algumas políticas que respeitem o nosso trabalho e também as bases de ações políticas que desenvolvam a infraestrutura de uma renovada agenda anticapitalista, em que o motor de nossa sociedade seja gerar vidas e não gerar lucros.
Reproduzido de IHU-Unisinos, 8 de maio de 2020. A tradução é do Cepat.