A pandemia da COVID-19 está ceifando muitas vidas com respostas negligentes de governos. Lições aprendidas com a crise da AIDS nos anos 1980 deveriam orientar nossa resposta hoje.
Colin Wilson, rs21.org.uk, 25 de março de 2020
Os últimos dias e semanas têm visto respostas conflitantes e que mudam rapidamente para a pandemia. Depois que a mídia noticiou que muitas pessoas foram para a beira-mar no sábado, na segunda-feira o governo apertou as restrições e pediu que as pessoas ficassem em casa. Como quando fecharam as escolas - na verdade, como têm feito em todas as fases da crise - eles fizeram um movimento reativo em resposta à preocupação pública quando precisavam ir muito mais longe. Não havia apoio, por exemplo, para os autônomos, que, portanto, continuavam a trabalhar. A maioria dos trabalhadores da construção civil foi forçada a se tornar autônoma para que seus verdadeiros empregadores não tivessem que pagar o salário de doença ou férias - e assim os canteiros de obras continuaram em funcionamento. Milhões de trabalhadores, que não podem trabalhar em casa como o governo sugere, continuam a arriscar sua saúde a cada dia no transporte público.
Por que o governo está agindo dessa forma? Por que as pessoas não estão mudando seu comportamento? Afinal, não é apenas uma questão de idas à praia - os vizinhos de um amigo fizeram uma festa durante toda a noite. E qual é a maneira mais eficaz de reduzir o impacto do vírus? A experiência com a AIDS desde os anos 80 sugere algumas respostas.
Embora não esteja mais nas manchetes, a AIDS continua sendo uma emergência de saúde global. No final de 2018, cerca de 32 milhões de pessoas haviam morrido de AIDS, com cerca de um milhão de mortes somente naquele ano. Dos 38 milhões de pessoas infectadas pelo HIV no mundo, cerca de 25 milhões estão recebendo tratamento - tratamento que pode lhes dar a mesma expectativa de vida de uma pessoa sem HIV. No entanto, cerca de 13 milhões de pessoas não estão. Uma das razões é o dinheiro. Os medicamentos mais baratos custam cerca de 75 dólares por ano em países de baixa renda, embora algumas pessoas precisem de medicamentos mais caros. Mas mesmo essa pequena soma está acima da média de gastos com saúde por pessoa por ano em países como Bangladesh ($32), Quênia ($70) ou Moçambique ($28).
O custo da saúde também é um problema para muitas pessoas nos Estados Unidos. Em Londres, 98% das pessoas diagnosticadas com HIV estão em tratamento - nos EUA, é 49%, menos da metade. Pessoas sem assistência médica - pessoas pobres - têm maior probabilidade de morrer. E a fatores econômicos, temos que acrescentar a experiência da opressão. Não brancos e hispânicos são 37% da população dos EUA - mas responderam por 74% dos novos diagnósticos de HIV em 2017, o dobro da sua parcela da população. As estimativas mais altas sugerem que 1 em cada 10 homens pode ser gay - mas três quartos dos diagnosticados eram homens infectados através de sexo com outro homem. O impacto da AIDS sobre os gays americanos é espantoso - algumas estimativas sugerem que 1 em cada 10 gays americanos morreu, uma proporção que aumenta ainda mais em cidades como Nova Iorque e São Francisco com grandes populações gays. Gays nova-iorquinos em seus quarenta e cinqüenta anos, como comenta a ativista Sarah Schulman, passaram por um nível de trauma típico dos tempos de guerra. Isso não é lembrado ou faz parte da consciência popular - embora o número total de mortes por AIDS nos EUA, de 675.000, seja quase doze vezes maior do que o número de americanos que morreram na guerra do Vietnã.
As doenças então, seja a AIDS ou a Covid-19, são sobre biologia - mas elas, e as respostas das populações e dos governos, são também sobre a estrutura da sociedade, sobre os medos das pessoas, sobre a maneira como elas pensam sobre si mesmas e sobre política. Um exemplo de como todos esses fatores se combinam é a adoção de sexo seguro por homens gays durante a epidemia da AIDS. Quando a AIDS foi identificada, no início dos anos 80, não ficou claro como as pessoas ficaram doentes, assim, ninguém sabia como se proteger, nem as pessoas próximas a elas. Os gays em cidades como Nova York viram seus amigos adoecendo e ficaram aterrorizados. A questão do que causava a AIDS não foi completamente resolvida até 1983 - mas, naquele ano, inventou-se o sexo seguro. Richard Berkowitz e Michael Callen, com conselhos médicos de Joseph Sonnabend, escreveram um manual chamado How to Have Sex in an Epidemic (Como fazer sexo numa epidemia: Uma Abordagem). (Eles salvaram inúmeras vidas, mas ninguém ouviu falar neles: veja a página da Wikipédia). Defendeu o uso do preservativo e práticas sexuais agrupadas em alto risco (como sexo anal passivo), risco médio (sexo oral) e baixo risco (masturbação mútua, brinquedos sexuais e assim por diante).
Cientificamente, o manual contém algumas imprecisões, tendo em vista o que sabemos agora. Mas o ponto-chave foi que ele tomou uma atitude positiva em relação ao sexo, ao mesmo tempo em que levava a epidemia a sério. Isso foi crucial. O sexo - muitas vezes, com muita gente - tinha se tornado importante para as identidades dos gays desde Stonewall. Era visto como um marcador de liberdade e auto-valorização. As pessoas criticaram as práticas sexuais dos gays como parte de um ataque aos gays como um todo. Como fazer sexo enfatizava que você poderia fazer muito sexo intenso sem ficar doente ou infectar os outros. E, embora a maioria dos materiais anteriores sobre saúde sexual tivesse sido produzida por governos e médicos, os materiais de sexo seguro que se seguiram a How to Have Sex vieram da comunidade e falavam sua linguagem. As referências polidas ao "pênis" e ao "sêmen" foram substituídas por materiais que se referiam a paus e porra.
Os preservativos agora apareciam em todos os lugares. Potes deles apareceram em bares gays de Nova York. O autor David France lembra-se de ter visto uma carreta passando pela Rua Christopher, no bairro gay de Nova York, de onde, da carroceria, lésbicas jogavam preservativos como pétalas de rosa. Uma amiga minha que trabalhava como enfermeira tinha uma vasilha deles em seu banheiro para que suas amigas pudessem se ajudar discretamente. E isso funcionou - um rápido declínio na gonorréia e sífilis entre homens gays mostrou que as práticas sexuais tinham mudado para reduzir infecções de todos os tipos.
Mas, é claro, as coisas eram mais complicadas do que isso. Pessoas que estavam excitadas ou bêbadas poderiam não usar preservativo. Às vezes, as pessoas não conseguiam encontrar um preservativo ou usavam um que rasgava. Algumas pessoas reclamavam da falta de sensibilidade. Não ficou claro se era aconselhável usá-los para sexo oral, muito menos para sexo prazeroso. Alguns homens viam como um sinal do seu amor pelo parceiro que estavam dispostos a compartilhar tudo o que ele tinha, inclusive a AIDS. Assim, ainda que o sexo seguro tenha se espalhado rapidamente entre homens gays, levando a psicologia humana em consideração, sabe-se que isso não aconteceu da noite para o dia ou com absoluta consistência. O uso do preservativo aumentou de 1% para 70%, mas isso significava que ainda acontecia algum sexo desprotegido. Muitas pessoas já estavam infectadas antes que o sexo seguro se tornasse a norma. No total, as mortes por AIDS continuaram aumentando até meados da década de 90, quando tratamentos eficazes se tornaram disponíveis.
A pandemia atual. Como isso se compara com a situação atual? Uma das razões porque o sexo seguro teve um efeito foi que os gays começaram a responder a um chamado levantado em How to Have Sex - para agir como parte de uma comunidade onde as pessoas assumiam a responsabilidade de se protegerem a si mesmas e umas às outras. Como Callen e Berkowitz escreveram, 'Se você ama a pessoa com quem está transando - mesmo por uma noite - você não vai querer deixá-la doente'. ‘Talvez o afeto seja a nossa melhor proteção’. Essa abordagem, argumentaram, era diferente da que prevalecia entre os gays, que viam libertação em termos de liberdade individual e até como competição.
A tarefa que enfrentamos, agora, é a de criar comunidades, onde as pessoas assumam responsabilidade por si e umas pelas outras, com base não só no sexo, mas em toda a sociedade. Devemos agir não apenas para nos proteger - devemos agir como se estivéssemos infectados e precisássemos proteger os outros, que podem ser mais vulneráveis do que nós. Fazer isso efetivamente, para reduzir o nível de infecção, envolve rejeitar o que se tornou o senso comum da nossa sociedade desde que Margaret Thatcher expressou a ideia, em 1987, de que "a sociedade não existe". “Há homens e mulheres individuais e há famílias”. Precisamos nos organizar de qualquer forma que faça sentido para nós - em nossas ruas, em sindicatos, online, em comunidades de fé, em comunidades linguísticas - para nos mantermos alegres, para buscar alimentos e medicamentos para pessoas que não podem sair, para responder a gritos de ajuda. Assim como os gays nos anos 80 sentiram que o sexo era central para seu senso de si mesmos, e assim as mudanças de comportamento eram complexas e parciais, construir comunidades agora envolve pessoas revisando profundamente noções de privacidade, interdependência e família.
É claro que existem diferenças entre a atual pandemia e a epidemia de AIDS. Algumas são causadas pela natureza diferente dos vírus envolvidos. Muitas pessoas se recuperam do coronavírus, enquanto ninguém se recupera do HIV. Por outro lado, o HIV foi disseminado através de atos específicos como sexo e compartilhamento de agulhas - assim foi possível que as pessoas formassem organizações para cuidar dos doentes, e que os infectados e seus apoiadores fizessem campanha política sem infectar outros, de uma forma que agora não é possível. Mas também há semelhanças - em ambos os casos, uma lição chave é que não podemos contar com os governos nacionais. O governo Reagan nos EUA, apoiado como era pela direita religiosa, respondeu com inatividade assassina a uma doença associada a homens gays - Reagan só fez um discurso sobre AIDS em 1987, quando mais de 20.000 americanos já estavam mortos.
Mas o problema com os governos não é nem mesmo, necessariamente, a sua tonalidade política em particular ou atitude em relação a certas comunidades. O problema é que, por sua natureza, são máquinas burocráticas, chefiadas por pessoas de uma classe diferente da maioria da população. Essa divisão de classe entre governantes e governados significa que as pessoas não confiam nos políticos, e que a falta de confiança vem crescendo há décadas juntamente com a divisão entre uma minoria rica e o resto de nós. A classe política foi unânime em afirmar que havia armas de destruição em massa no Iraque. Boris Johnson afirmou que Brexit significaria milhões para o NHS. Então, se uma figura tão distante da maioria das pessoas como Johnson diz que eles não deveriam ir para a praia em um dia quente de primavera, por que eles deveriam acreditar nele? É fácil para Johnson dizer, eles podem pensar, quando ele teve um feriado livre no Caribe no Natal.
Um segundo problema com os governos, ou mais precisamente com o Estado, é que ele afirma representar toda a sociedade de forma imparcial, mas é claro que não representa - é controlado pelos negócios e pelos poderosos e age no interesse deles. É por isso que temos visto constantemente tentativas por parte dos governos de todo o mundo de equilibrar os interesses econômicos com a necessidade de preservar a vida humana. Os idosos, que são menos propensos a trabalhar, podem ser sacrificados - mesmo na Itália, onde médicos sobrecarregados economizam tratamento para os jovens e permitem que os idosos morram, os locais de trabalho desde a indústria química até todos os centros de atendimento telefônico permanecem em funcionamento.
Precisamos de uma ação mais efetiva do governo local e nacional - o artigo da rs21, "Atuando na Covid 19" apresenta muitas demandas concretas. Os governos nacional e local afirmam que representam toda a população - então vamos vê-los fazendo isso. Mas uma lição chave da AIDS nos anos 80 é que precisamos construir comunidades de pessoas que confiem umas nas outras, que possam cuidar umas das outras agora e que possam desempenhar seu papel na reconstrução da sociedade no futuro. É uma tarefa enorme - mas Berkowitz e Callen, por exemplo, achavam que How to Have Sex in an Epidemic ia desaparecer sem deixar vestígios. Em vez disso, mudou a vida de milhões de pessoas e evitou a morte de outros milhões. A rápida disseminação dos grupos de ajuda mútua na última semana, incluindo agora quase 150 só em Londres, mostra quantas pessoas estão prontas para se envolver na organização. Por exemplo, existe um grupo na nossa rua, onde cerca de 1 em cada 4 lares até agora são membros do nosso grupo WhatsApp. Nós demos os primeiros pequenos passos. Algumas pessoas já se envolveram em conversas de Zoom. Meu colega de casa deixou o paracetamol do lado de fora da porta de alguém que estava com falta. Um vizinho distribuiu algum brilho que eles tinham de sobra - crianças fizeram pinturas de arco-íris e as colocaram nas janelas. A partir dessas pequenas ações pode se desenvolver um sentimento de confiança e comunidade - e a ação coletiva que precisaremos tanto quando esta crise imediata terminar.
Tradução de Luccas Cechetto