Silvio Luiz de Almeida, Prefácio da Edição Brasileira de Asad Haider, Armadilha da Identidade: raça e classe nos dias de hoje. São Paulo: Veneta, 2019.
No início de 2018, período em que redigia meu livro Racismo Estrutural (Pólen, 2019), deparei-me com a entrevista de um intelectual estadunidense de origem paquistanesa chamado Asad Haider. Nesta entrevista, Haider falava sobre as ideias contidas em seu recém-lançado livro, Mistaken Identities: Race and Class in the Age of Trump, que agora ganha sua versão brasileira sob o título Armadilha da identidade: raça e classe nos dias de hoje, publicado pela editora Veneta. Quero fazer algumas considerações sobre minha experiência; primeiro, com a entrevista de Haider, e, depois, com seu livro, agora com a tradução para o português de Leo Vinicius Liberato.
Ao ler a entrevista, impactou-me a radicalidade e o destemor com que o espinhoso tema das políticas identitárias (ou “identitarismo”, como se diz aqui no Brasil) foi tratado. Haider não se furtou a abordar o tema de modo crítico, sem cair nos simplismos que geralmente marcam este debate. Desde logo vi que sua contundência não era fruto apenas de um posicionamento firme contra os efeitos deletérios da atual versão das “políticas de identidade”, mas, principalmente, de um pensamento erigido a partir de um arcabouço teórico sólido, que não abria espaços para concessões circunstanciais ou para o mero comodismo ideológico.
Terminada a leitura da entrevista, apressei-me em comprar o livro em sua versão original. O livro confirmou as impressões iniciais que tive sobre o autor e a importância de seu trabalho para o momento pelo qual passa nossa sociedade.
Logo na introdução, Haider relata o modo com que sua vida intelectual foi forjada por uma experiência marcada pela constante luta contra as determinações de sua identidade racializada de homem de origem paquistanesa, um “não branco”, nos Estados Unidos da América. Mas a questão central retirada do relato de Haider é que, mesmo recusando-se a pensar o mundo dentro das fronteiras reservadas às pessoas não brancas, a identidade sempre estava lá. A identidade o atravessava em cada escolha, em cada passo; não bastava tentar a “ressignificação” de sua subjetividade ou a recusa existencialista de qualquer sentido prévio que se pudesse atribuir à sua vida. O fato é que pensar a si mesmo e ao mundo implicava no enfrentamento da questão da identidade. Não pude deixar de me reconhecer nas palavras de Haider: sou um advogado e professor de Filosofia do Direito que não tratou da questão racial diretamente em seus trabalhos de mestrado e doutorado. Mas, independentemente de minhas escolhas, sempre esteve além da minha vontade ser reconhecido, medido e avaliado como um homem negro. Percebi que até a decisão de ter ou não uma vida intelectual alheia a reflexões sobre o racismo não poderia ser feita sem um confronto com a minha identidade racial. Se resolvesse não estudar a questão racial, e apenas me dedicar à Filosofia, ao Direito ou à Economia Política eu precisaria passar a vida toda me explicando por tal decisão, uma vez que sou negro. A identidade é, portanto, algo objetivo, vinculado à materialidade do mundo, e pessoas não brancas como Haider e eu somos pensados através da identidade, ainda que nela não pensemos.
Mas, nesse sentido, como a identidade pode ser uma “armadilha” se dentro dela já inevitavelmente estamos? E é esse o ponto mais importante do livro: a identidade se torna uma armadilha quando se converte em uma política, ou, mais precisamente, em “política de identidade” ou “identitarismo”. O cerne do livro é a distinção entre identidade e política de Identidade, com foco na identidade racial. O que Haider nos propõe aqui é que “devemos rejeitar a identidade como base para se pensar a política identitária”. Ou em outras palavras: que não se pode compreender uma ideologia por meio de concepções igualmente ideológicas. A identidade é fruto de uma história, que só pode ser alcançada caso mergulhemos nas relações sociais concretas. Se a identidade é uma ideologia, ela o é no sentido althusseriano de prática material: a identidade como ideologia “existe” nas relações concretas e se manifesta na prática de indivíduos “assujeitados” (tornados negros, brancos, homens, mulheres, trabalhadores, trabalhadoras etc.) pelo funcionamento das instituições políticas e econômicas, orientadas pela e para a sociabilidade do capitalismo.
A “armadilha” de que fala Haider não está em se levar em conta a identidade nas análises sobre a sociedade, mas em analisá-la como se fosse algo exterior às determinações materiais da vida social. Afastada de sua dimensão social, a identidade passa a ser, simultaneamente, ponto de partida e ponto de chegada, colocando o pensamento em um loop infinito de pura contradição. Desse modo, o debate intelectual sobre a identidade jamais ultrapassa a si mesmo, incapaz que é de projetar-se nas relações concretas que sustentam as identidades sociais. À sombra do identitarismo, o mundo é uma fantasmagoria em que ser negro, mulher, LGBT, trabalhador e todo sofrimento real projeta-se em narrativas fragmentadas, relatos de experiências pessoais (storytelling) e outros subjetivismos travestidos de método. Ainda que se refiram a experiências comuns de muitos indivíduos, as narrativas e relatos subjetivos não nos oferecem mais do que um caleidoscópio sociológico. O identitarismo, como forma de pensar a realidade, tem o seu limite máximo nas manifestações da ideologia identitária.
O que faz Haider é desvendar a historicidade do que chama de “categoria contemporânea de identidade”. O adjetivo “contemporânea” utilizado pelo autor serve para dizer que a identidade como um elemento a ser levado em conta na organização das lutas políticas emancipatórias e revolucionárias, não nasceu como uma armadilha antirrevolucionária, mas, pelo contrário, já integrava as reivindicações de pessoas genuinamente comprometidas com a transformação social, como Malcom X, Huey P. Newton e Kathleen Cleaver. Como nos conta Haider, o problema político da identidade foi colocado pela primeira vez de forma direta pelo Coletivo Combahee River – formado por militantes socialistas negras e lésbicas –, que denunciaram no texto “A Black Feminist Statement” como o socialismo revolucionário tinha no racismo e no sexismo presentes na própria esquerda um obstáculo a ser superado. O que as militantes do Coletivo Combahee River fizeram foi chamar as esquerdas para assumirem uma postura coerente com o materialismo histórico. O Coletivo Combahee River fez o que Sartre chamaria de “apelo ao concreto” ao criticar um certo marxismo mágico que se move do “abstrato para o abstrato”, subvertendo o método dialético que, como ensinou Marx, consiste em “elevar-se do abstrato em direção ao concreto”. É uma espécie de marxismo sem história e sem dialética, que trata categorias como classe, mercadoria e valor como absolutos autorreferenciais e que, no fim das contas, nada tem a dizer sobre a realidade. Sua serventia é tão somente criar palavras de ordem e frases de efeito que irão estampar bandeiras e bótons em manifestações. É desse marxismo exótico que nasce um tipo de “marxista” portador de uma subjetividade que atua como um “grilo falante” (ou bobo da corte, como preferirem) do sistema, ou como uma espécie de ombudsman do capitalismo; um crítico autorizado que jamais tem que lidar com as próprias contradições e que tem como função aplicar um programa revolucionário imaginário e delirante, que pouco ou nada tem a ver com marxismo. Enfim, ao colocar a identidade racial e sexual no tabuleiro, o Coletivo Combahee River jamais pretendeu fazer da identidade o único foco da política. Seu objetivo era demonstrar a complexidade da vida social e das lutas que se desenrolam no cotidiano. Assim, uma transformação radical da sociedade exigiria que um certo “reducionismo de classe vazio” pudesse ser desafiado, abrindo-se espaço para possibilidades de organização oriundas da práxis de trabalhadores e trabalhadoras, brancos, negros, mulheres, LGBT e imigrantes. Como afirma Haider, movimentos como Combahee River “não deveriam ser considerados como desvios de um universal, mas, sim, como a base para desestabilizar a categoria de identidade e criticar as formas contemporâneas de política identitária – fenômeno cuja forma histórica específica a luta revolucionária negra não poderia ter previsto ou antecipado, mas cujos precursores ela identificou e a eles se opôs” (pag. 37). O Coletivo Combahee River nos ensinou a todos que em um movimento anticapitalista “o mais importante é saber se ele é capaz de atrair um amplo espectro de massas e de possibilitar sua auto-organização, buscando construir uma sociedade na qual as pessoas se governam e controlam suas próprias vidas” (pag. 41).
A identidade, demonstra-nos Haider com os exemplos de revolucionários como as feministas negras do Combahee River, Malcolm X e os Panteras Negras, não é a armadilha em si. A armadilha antirrevolucionária apresenta-se quando a política se reduz à afirmação de identidades especificas. E parte expressiva da esquerda caiu nessa armadilha epistemológica de graves consequências políticas. Em termos políticos, a política identitária acaba tendo como efeito a reafirmação da subjetividade colonial e não uma mudança estrutural efetiva. Ora, um negro é um negro por causa do racismo, e não porque sua negritude não é valorizada ou reconhecida; da mesma forma, um branco também é um branco por causa do racismo, e não devido à sua “brancura”. E não há racismo sem estruturas políticas e econômicas que sustentem um processo contínuo de transformação de indivíduos em “negros” e “brancos”. Da mesma forma que não existem “negros essenciais” que sejam legítimos herdeiros de realezas africanas perdidas no tempo, não existem brancos – mesmo entre os que se acham risivelmente nobres ou genuínos – que não sejam resultantes de uma construção muito paciente e cuidadosa da modernidade, como ensina Achille Mbembe. De tal sorte que tratar o racismo como resultado de uma vaga e abstrata ideia de “supremacia branca” sem explicar os termos com que isso é viabilizado política e economicamente apenas comprova o quanto de confusão a versão contemporânea das políticas de identidade pode causar.
É, portanto, contra o próprio processo político e econômico de constituição de subjetividades que se deve lutar, e por isso é fundamental que as identidades sejam consideradas como um dado analítico e como um elemento concreto de organização estratégica e/ou tática da política, sem o que não há revolução, e mesmo reforma, possível. Lênin, cuja veia revolucionária não se há de negar, já sabia da importância da identidade na política quando escreveu seus famosos textos sobre a questão nacional e sobre os pogroms contra os judeus.
Por isso, tomar a identidade como o centro da política é o mesmo que tentar acabar com o capitalismo comprando todas as mercadorias existentes até que não sobre mais nenhuma. A política identitária sem um horizonte de transformação do próprio “maquinário social” que produz as identidades sociais gera uma camisa de força que faz com que o “sujeito” negro, mulher, LGBT possa ser, no máximo, uma versão melhorada e menos sofrida daquilo que o mundo historicamente lhe reserva.
A eficiência da armadilha identitária está no seu duplo funcionamento, que serve tanto à direita” quanto à “esquerda antirrevolucionária”. Em relação à direita, o uso da política identitária e da insistência subjetivista é algo tradicional e faz parte do individualismo metodológico que é a marca do liberalismo e do neoliberalismo. Clamar por uma “identidade branca” ou ostentar uma identidade nacional contra não brancos e imigrantes é um clássico da direita, especialmente em tempos de crise do capitalismo, que, de liberal e universalista, rapidamente pode virar a chave para o fascismo. Mas uma “identidade negra” desconectada das estruturas sociais também pode ser conservadora ou reacionária e servir aos propósitos de reprodução do capitalismo, que historicamente tem se mostrado capaz de metabolizar o racismo e transformá-lo em aspirações de consumo e de poder. Ao fim e ao cabo, a política identitária, especialmente em tempos neoliberais, é um fator importante para que a divisão social e a atomização que marcam o capitalismo continuem a acontecer.
E como o identitarismo paralisa a “esquerda”? Tornando-a refém da política identitária, o que pode acontecer de dois modos: 1) quando a esquerda só fala de identidade; 2) quando a esquerda se recusa a falar de identidade.
No primeiro caso, a esquerda restringe-se a movimentos dentro dos estreitos limites do sistema, esperando que ele se “irrite” e atenda às suas reivindicações na forma de “direitos”. No fim das contas, a política identitária limita as organizações de esquerda ao figurino jurídico da luta por “mais direitos” e não há nada mais antirrevolucionário do que o “neoliberalismo de esquerda”, como já nos alertou Nancy Fraser. Na maior parte dos casos, ainda que possa gerar conflitos e trazer mudanças significativas na vida das pessoas, “mais direitos” não constitui um problema sério para o capitalismo: conceder direitos evidencia a plasticidade de um sistema que precisa ser reformável para continuar se reproduzindo. Quando o único objetivo das esquerdas é o reforço da subjetividade – especialmente de sua forma mais bem-acabada, a subjetividade jurídica – as formas sociais do capitalismo (mercadoria, dinheiro, Estado) que estão conectadas com a forma jurídica serão preservadas. Asad Haider trata da questão ao falar de como o movimento pelos direitos civis não era inicialmente um pleito somente por mais direitos, por “ação afirmativa” ou por inserção no capitalismo. O movimento pelos direitos civis foi em sua origem um movimento anticapitalista e contou com uma participação decisiva de pessoas negras, algumas ligadas ao Partido Comunista dos EUA. Só posteriormente o movimento pelos direitos civis, quando passou a ser liderado por advogados, ganhou uma face, digamos, “liberal”, como nos conta Michelle Alexander em A nova segregação (Boitempo, 2017). O movimento pelos direitos civis, pela própria constituição histórica do capitalismo estadunidense, foi, nas palavras do autor, “o equivalente mais próximo nos Estados Unidos dos movimentos operários de massa na Europa pós-guerra” que ajudaram a estruturar o projeto revolucionário e o desenvolvimento da teoria marxista. (pag. 40).
Por outro lado, se o identitarismo é um problema para quaisquer pleitos emancipatórios, a recusa apriorística da identidade também o é. Há uma esquerda “anti-identitária” que pode ser tão ou mais benéfica ao neoliberalismo como os mais convictos identitaristas. O anti-identitarismo está no discurso de uma esquerda que se diz “tradicional”, “raiz”, e considera que a identidade e as questões a ela relacionadas são desviantes “do plano puramente econômico”. Tratar de identidade só serve para dividir a “classe trabalhadora”, costumam afirmar. Uma classe trabalhadora coesa, indivisa e sem contradições só existe em abstrações mentais originadas de leituras quase evangélicas dos textos de Marx e Engels (cujos escritos partem da observação da classe trabalhadora real). Daí podemos ver que ser “anti” qualquer coisa é pautar-se, ainda que na chave da recusa, por aquilo que se quer negar. Em outros termos: a esquerda “tradicional” e “classista” é igualmente identitarista e, portanto, antirrevolucionária. Sua marca é a incapacidade de se conectar com o cotidiano de sofrimento, humilhação e privação de trabalhadores e trabalhadoras que não estão na universidade, que não participam de rodas de conversa, que sequer sabem falar direito a língua de seus patrões. Paradoxalmente, a identidade dessa esquerda não identitária é assumir uma identidade “de classe”, uma classe totalmente apartada da realidade.
Nesse ponto, a esquerda dita tradicional e pretensamente revolucionária trabalha nos mesmos moldes que o reformismo social-democrata e suas críticas às divisões que o identitarismo promove rumo ao “projeto nacional” e ao “desenvolvimento”. Essas esquerdas podem dar as mãos porque uma, em seu ímpeto revolucionário abstrato, e a segunda, em seu reformismo calcado na construção de uma identidade conservadora, têm em comum a falta de compromisso político com a transformação da sociedade e a emancipação humana.
É interessante notar como o livro de Haider nos leva a pensar em diversas “armadilhas” dentre as quais a fixação na raça é apenas uma delas. O capitalismo não é plenamente compreensível dentro do binômio esquerda-direita, que é ideológico. Há uma esquerda “identitária” e uma esquerda “anti-identitária”, como falamos. Há também uma direita “identitária” (“pelo direito de ser branco”, “América para os americanos”, “Brasil acima de todos, Deus acima de tudo”), mas há uma direita “anti-identitária”, liberal, iluminista e universalista. O que isso nos revela? Em primeiro lugar, que tanto parte da esquerda como da direita têm em comum o fato de tratarem a identidade fora das relações sociais concretas, com base em seus respectivos substratos ideológicos; e em segundo lugar, que a etapa neoliberal do capitalismo mantém a direita e a esquerda sob controle, já que os termos das disputas e dos projetos políticos não comprometem a reprodução das formas sociais do capitalismo.
Ainda que o livro de Haider analise o debate contemporâneo sobre a identidade racial no contexto dos Estados Unidos da América, a importância da obra para a compreensão de nossos problemas aqui no Brasil e na América Latina não pode ser subestimada. Este livro abre um importante caminho para que possamos, a exemplo do que fez Haider tendo por base a realidade dos EUA, traçar uma história da construção social da identidade na periferia do capitalismo, em que o problema da identidade ganha contornos bastante distintos em virtude das práticas coloniais. É impossível contar a história da formação social dos países da América Latina, da África, da Ásia e da Oceania sem levar em conta o modo como as lutas políticas foram organizadas a partir de uma concepção revolucionária da identidade e como as lutas anticoloniais tiveram na afirmação de uma “identidade nacional” negra e/ou indígena o seu ponto de ebulição. Tal como Haider fez quando tomou o exemplo do Coletivo Combahee River, precisamos entender como a atividade de intelectuais e ativistas como Amílcar Cabral, Frantz Fanon, Eric Williams, Walter Rodney, Clóvis Moura, Lélia Gonzalez, Hamilton Cardoso, Carlos Mariátegui e tantas outras pessoas forneceu a possibilidade de uma visão não individualista, politicamente agregadora e revolucionária da questão da identidade.
Mas que as críticas de Haider às políticas de identidade e meu endosso a elas neste prefácio não sejam tomadas como se tratássemos de um problema ético. Nem de longe se trata disso. Como toda ideologia, o identitarismo tende a formatar nossos valores morais, mas sua origem não está em noções pessoais de certo e errado. As políticas de identidade em sua forma atual são sintomas da crise que levou a uma reorganização dos mecanismos de reprodução social do capitalismo. O identitarismo é uma das formas assumidas pela ideologia neoliberal, que cultua o hiperindividualismo, o empreendedorismo, as “metas” e que, ao mesmo tempo, justifica a destruição do valor da solidariedade e dos mecanismos estatais de proteção social. Com isso, fica aberto o espaço para o extermínio da população negra e indígena e para o encarceramento em massa como métodos de controle da pobreza.
Mas o livro de Haider nos oferece possibilidades de uma análise comparada entre Brasil e EUA que não se esgota nas coincidências entre as experiências de ambos os países com o neoliberalismo. Não são apenas as pegadas do passado que são iluminadas. O livro nos permite olhar para acontecimentos do presente, que relacionam Brasil e EUA. Com a ascensão da extrema-direita ao poder em 2019, as pautas identitárias ganharam um novo sentido já que o atual governo brasileiro se apoia em um discurso ideológico, de forte afirmação identitária (não universalista, branca, heterossexual, fundamentalista e virulentamente anticomunista). Tal qual nos EUA, a crise econômica de 2008 rompeu o aparente consenso multiculturalista, democrático e universalista da ideologia neoliberal que até então amparava as políticas identitárias.
O problema da identidade é um problema político urgente, ligado à lógica de reprodução social do capitalismo. Por isso, deve ser tratado de modo crítico, a fim de que possamos lidar com uma “realidade contraditória”. Essa realidade contraditória nos leva a pensar que, sim, a representatividade é importante para pessoas negras; ter o direito subjetivo de exigir o reconhecimento estatal de nossa identidade é muito relevante; ter garantido o direito de estudar, de trabalhar, de não ser morto pela polícia por ser um “suspeito padrão” é algo pelo que devemos lutar. E são coisas possíveis porque muitos de nossos ancestrais tiveram seu sangue derramado. Mas, ao mesmo tempo, é necessário assumir que as identidades, inclusive a raça, são socialmente construídas e é sobre isso que Haider nos leva a refletir com seu texto tão contundente. Em um sentido revolucionário, a afirmação da raça é feita apenas para que um dia seja possível superá-la.
São Paulo, 26 de maio de 2019
Silvio Luiz de Almeida é Presidente do Instituto Luiz Gama, Professor da Fundação Getúlio Vargas e da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP