A equipe da BBC World foi até o Bairro de Pirituba, na zona norte de São Paulo, para entrevistar Simone Nascimento, uma jovem negra de quebrada, feminista e anticapitalista, militante da Insurgência São Paulo, e que tem se tornado uma referência jovem do Movimento Negro Unificado (MNU) - há 42 anos na luta contra o racismo - e dos levantes antirracistas no Brasil.
Em entrevista para Katy Watson, correspondente da BBC na América do Sul, Simone denunciou ao mundo como a política de morte de Jair Bolsonaro encoraja a violência policial contra pessoas negras: "Os negros estão morrendo de tiros, de fome e agora de Covid", diz Nascimento.
"Enquanto houver racismo, não haverá democracia - e lutar pela democracia é lutar contra o governo Bolsonaro", diz ela à BBC. "Estes são tempos difíceis", finaliza.
Para Simone, poder falar com a BBC internacional e denunciar o racismo latente que o Brasil vive também na pandemia do coronavírus foi muito importante. “Foi necessário dizer ao mundo que vidas negras também importam aqui. Também foi uma grande oportunidade da gente afirmar aos outros países a importância de derrubar o governo Bolsonaro. É preciso que todos entendem a gravidade desse governo para a maioria da população brasileira”, afirma.
Confira a íntegra da reportagem da Katy Watson, publicada originalmente no Site da BBC
Acerto de contas racial no Brasil: 'A vida negra também importa aqui'
Uma semana antes da morte de George Floyd, na cidade americana de Minneapolis, em maio, os brasileiros estavam de luto por conta própria.
João Pedro Mattos Pinto, de quatorze anos, foi morto enquanto brincava com amigos durante uma operação policial mal feita em uma favela no Rio de Janeiro.
As duas mortes ocorreram a milhares de quilômetros de distância, mas milhões de pessoas se uniram em tristeza e raiva. "As vidas negras também são importantes aqui", cantaram os brasileiros nas semanas seguintes às mortes.
Mas a história continua se repetindo.
Somente na semana passada, um policial em São Paulo pisou no pescoço de uma mulher negra na casa dos cinquenta . O vídeo que apareceu mostrando o incidente causou indignação. Ela sobreviveu, mas muitos não.
Há muita coisa que liga o Brasil aos EUA - armas, violência e hoje em dia a política deles também. Mas na favela paulista de Americanópolis, as pessoas dificilmente estão vivendo o sonho americano.
Joyce da Silva dos Santos me mostra um vídeo de seu filho Guilherme comemorando seu aniversário com um grande bolo e velas. Ele tinha 15 anos e toda a sua vida pela frente. Ele sonhava em seguir o avô no ramo de alvenaria, de um dia comprar uma motocicleta também. Mas seus sonhos foram interrompidos.
Algumas semanas atrás, ele desapareceu do lado de fora da casa de sua família. Seu corpo foi encontrado jogado nos arredores da cidade. Um policial foi preso desde então. Outro, um ex-policial, ainda está fugindo.
"Guilherme era tão amoroso que se importava com todo mundo", diz a Sra. Dos Santos, quase incapaz de falar através das lágrimas. Ela teme pelos outros filhos agora. "Não sabemos se, quando sairmos de casa, voltaremos - não tenho mais vontade de viver".
Na rua, os vizinhos desfrutam de uma tarde ensolarada de sábado, bebendo cerveja e conversando. As pessoas aqui se reúnem desde a morte de Guilherme, mas muita coisa mudou.
"A polícia deveria estar nos protegendo", diz um vizinho, também chamado Joyce, cuja filha era amiga de Guilherme. "Eles não sabem, por causa da cor da nossa pele."
No ano passado, a polícia aqui matou quase seis vezes mais pessoas do que nos EUA e a maioria era negra.
"A violência policial remonta a essa maneira complexa de aceitar que algumas vidas são menos importantes que outras", diz Ilona Szabo, diretora executiva do Instituto Igarapé, um think tank de segurança com sede no Rio.
"O estereótipo dos criminosos, em geral, é que eles são homens negros. Então, quando você está em uma sociedade muito violenta como o Brasil, diante de um criminoso negro, isso pode levar ao uso excessivo da força pela polícia, porque esse é o retrato que aceitamos. Mas eu diria que há uma parte da sociedade que apóia isso abertamente ".
O Brasil tem um longo legado de racismo. Foi o último país nas Américas a abolir a escravidão em 1888. Mais de quatro milhões de pessoas foram trazidas da África, mais do que para qualquer outro país do mundo e que deixou cicatrizes profundas.
"O estado brasileiro não criou nenhum tipo de política pública para integrar os negros na sociedade", diz a autora e ativista Djamila Ribeiro. "Embora não tivéssemos um apartheid legal como os EUA ou a África do Sul, a sociedade é muito segregada - institucional e estruturalmente".
Por um longo tempo, porém, o racismo não foi realmente discutido aqui. Os brasileiros foram ensinados a acreditar que viviam em uma democracia racial - onde todos se davam bem sem serem discriminados por causa de sua cor. Mas, dizem ativistas, é um mito.
"Eles amam samba, amam a cultura negra e o carnaval, mas não participam de manifestações contra o genocídio dos negros", diz Ribeiro. "Eles dizem que não é uma questão racial, é uma questão de classe no Brasil".
É o que o presidente Jair Bolsonaro ainda acredita.
"Devido a esse mito de que todo mundo é misto, até os negros do Brasil às vezes têm dificuldade em se ver negros", explica Ribeiro. "Aqui, não se trata apenas de onde você veio, é a sua aparência - então, se você parecer branco, será tratado como branco, mesmo que seus pais sejam negros".
Consciência negraNo entanto, está mudando lentamente.
"Houve um aumento da conscientização nacionalmente", diz Milton Barbosa, que fundou o Movimento Negro Unificado (MNU) em 1978, durante o regime militar brasileiro. "Ainda temos que lutar, mas houve mudanças importantes".
Uma das novas gerações de ativistas do movimento é Simone Nascimento, 27 anos. Ela foi a primeira em sua família a ir para a universidade e admite que é um exemplo de progresso. Mas a luta continua e a pandemia complica o progresso.
"Os negros estão morrendo de tiros, de fome e agora de Covid", diz Nascimento. Ela diz que a polícia se sente encorajada, um sentimento que é reforçado pela conversa de Jair Bolsonaro sobre ficar duro com o crime e apoiar as políticas de atirar para matar.
"Enquanto houver racismo, não haverá democracia - e lutar pela democracia é lutar contra o governo Bolsonaro", diz ela. "Estes são tempos difíceis."