Gustavo Belisário*
BRASÍLIA – As eleições municipais de 2020 vieram com um boom das chamadas “candidaturas coletivas” por todo o país. Esse modelo de candidatura – em que vários ativistas se apresentam em conjunto – surge como um tensionamento importante sobre as formas tradicionais de fazer política. Afinal, no Brasil, como em quase todas as democracias burguesas liberais, a praxe é que indivíduos se candidatem sós. A apresentação como coletivo, e não indivíduo (ainda que o CPF, pela imposição da legislação eleitoral do regime, tenha que ser o de uma única pessoa), representa importante oposição ao individualismo que permeia a representação na democracia liberal.
Na mesma medida que o modelo tem a potência de questionar e dar passos à frente da democracia representativa que nós temos, as candidaturas coletivas também têm limites como proposta. Em alguns casos, podem ser somente uma roupagem descolada para a perpetuação de velhas práticas nas eleições. Esse texto pretende discutir o fenômeno das candidaturas coletivas em sua base altamente questionadora dos pressupostos da democracia liberal representativa, bem como apresentar alguns de seus limites e práticas não tão interessantes que têm surgido com esse formato.
A democracia liberal tem como pressuposto a formação da consciência individual na esfera privada. Ou seja, para que a democracia funcione, é preciso garantir um espaço público de transparência de informações e que a consciência, de âmbito privado, se manifeste livremente. Para traduzir esse princípio, a maioria das democracias liberais se fundamentam na fórmula “uma pessoa, um voto” – voto em geral, como no Brasil, destinado mais a indivíduos do que a partidos, programas. A manifestação das consciências individuais por meio do voto garante que um desejo coletivo se expresse, uma vez que todas as pessoas teriam as mesmas possibilidades de tomar as decisões com base nas informações presentes na esfera pública.
Essa fórmula democrática liberal já foi questionada a partir de diversos enfoques. A teoria política feminista questiona a esfera privada como espaço de liberdade para a formação da consciência, uma vez que é essa mesma divisão entre público e privado que estabelece a política como espaço masculino e a casa como espaço feminino. É também na divisão da política entre público e privado que a força insidiosa do poder econômico é camuflada, em sua influência política. De forma geral, o problema da democracia liberal é de pegar o homem, branco, heterossexual e burguês como sujeito universal e pressupô-lo como base das decisões coletivas.
Não é a toa que vemos um boom de candidaturas coletivas. Vivemos uma crise da democracia representativa e dessa política que se descola das bases. As candidaturas coletivas possuem um potencial enorme de crítica aos limites de uma “política de indivíduos” para indivíduos. Ao colocar que não é no âmbito individual, mas sim no coletivo que se produz a consciência política, esses modelos de candidatura ressaltam a importância da conjugação da participação com a representação, e da importância de não destacar o ou a único/a representante de seu grupo político de apoio.
O parlamento é um espaço perigoso: assim que são eleitos, formalmente, os parlamentares passam a falar por si. Esse terreno escorregadio torna muito fácil que os representantes se desvencilhem-se de toda e qualquer construção coletiva. Afinal, é muito mais fácil que o parlamentar construa um novo grupo do que para o grupo construir um novo parlamentar. Evidente que não é todo parlamentar que se desvencilha das posições coletivas, mas é um campo de forças que entra em jogo. As candidaturas coletivas, com bons métodos de construção, podem ajudar a reforçar esse vínculo com os coletivos.
Ao mesmo tempo em que vivemos um florescimento das candidaturas coletivas, vivemos também uma ofensiva de setores do judiciário contra elas. Mais uma prova que elas têm potencial de mexer com as bases do sistema político. No dia 1º de outubro, porexemplo, o Ministério Público do Ceará entrou com um pedido de impugnação da candidatura Nossa cara (PSOL), composta por três ativistas periféricas, que buscam uma vaga pela vereança em Fortaleza. Na mesma semana, o Tribunal Regional Eleitoral de Pernambuco intimou a co-candidata Dricka Andrade a mudar o nome da candidatura que constaria em urna como “Bancada Igaraçuara” para seu nome pessoal. Ações parecidas têm acontecido no país inteiro e com o único sentido de individualizar as candidaturas coletivas e retirar delas a sua essência questionadora da “política de indivíduos”.
Essa ofensiva da Justiça Eleitoral vai no sentido contrário da necessidade de renovação política e de experimentação de novas e coletivas práticas, que desafiem representatividade liberal. É preciso que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) reverta todas essas impugnações e estabeleça uma resolução capaz de regulamentar as previsões legais sobre as candidaturas coletivas, sem que elas percam a sua essência. Existem mandatos coletivos que fazem um excelente trabalho, como é o caso das Juntas em Pernambuco (PSOL), formada pelas co-deputadas Robeyonce Lima, Carol Vergulino, Jô Cavalcanti, Joelma Carla e Kátia Cunha. A Bancada Ativista de São Paulo (PSOL), das co-deputadas Mônica Seixas e Érica Hilton, também é referência interessante de novos métodos de construção e de inovação política.
Mas é preciso ter atenção. Construções individuais podem facilmente ganhar uma fachada de
construções coletivas. Mesmo liberando as candidaturas coletivas, a legislação eleitoral exige que um CPF seja escolhido e que somente essa “pessoa física” possa fazer uso da tribuna depois de eleito/a. Tem sido comum que candidatos, sem qualquer abertura para uma construção contestadora, se valham da aparência de coletivismo para ganhar e exercer o mandato individualmente.
Há ocasiões em que homens brancos heterossexuais encontram nesse formato uma maneira de adentrar em um eleitorado que busca de perfis mais arejados, mais diversos, e fazem um uso oportunista de um modelo com tanto potencial crítico. Infelizmente, em alguns casos pontuais, candidaturas coletivas têm sido uma maneira de dar essa roupagem renovada a um perfil defasado frente ao eleitorado de esquerda – o do homem branco heterossexual. Isso é ainda mais crítico quando tempo de televisão e recursos do fundo eleitoral para candidaturas femininas e negras estão em jogo, de acordo com as resoluções do TSE.
Quem é o CPF? Como foi essa construção? Que ideias foram acumuladas pelo coletivo para evitar que o mandato se personalize com o tempo? Essas são questões cruciais para identificar se a candidatura coletiva é de fato uma construção conjunta ou se é somente uma repaginação mercadológica de uma candidatura individual. Ás vezes, a depender do método de construção, candidaturas “individuais” são muito mais coletivas e inovadoras do que o formato da candidatura coletiva. Podemos citar a gabinetona municipal do PSOL de Belo Horizonre (MG), por exemplo, que é uma experiência inovadora de construção de gabinete parlamentar unitário, feita a partir dos mandatos “individuais” de Áurea Carolina e Cida Falabella, com Andréia de Jesus e Bella Gonçalves. No Rio de Janeiro, em 2016, tivemos também a experiência do Comitê conjunto de campanha entre as candidaturas de Tarcísio Motta (PSOL) e Marielle Franco (PSOL).
Criar ambientes coletivos entre as candidaturas ou mandatos de um mesmo campo político, em que elas se potencializam e buscam reforçar o que cada uma tem de particular, para fazer com que todas cheguem mais longe, é uma forma também de pensar a construção em outros marcos.
Não se trata de uma aversão às candidaturas coletivas. Também não se trata de um fetichismo identitário e uma interdição à construção de figuras públicas brancas masculinas heterossexuais, que sempre tiveram o monopólio do lugar de porta-vozes políticos e seguem sendo maioria nos espaços de representação a despeito do movimento crescente de figuras públicas negras, femininas e LGBTIs. Trata-se de chamar atenção para o método das construções e averiguar, enquanto eleitor, se os métodos de construção das candidaturas são de fato coletivos.
É preciso acompanhar as experiências caso a caso, levando em conta todo seu potencial questionador, mas também sem fetichizá-las enquanto formato. Somente assim, teremos um acúmulo sobre as boas práticas de candidaturas coletivas que são de fato inovadoras e tensionam o sistema político e àquelas que simplesmente dão roupagem descolada às velhas práticas.
Gustavo Belisário é antropológo e militante do PSOL no DF