Angelita Matos Souza, A terra é redonda, 20 de setembro de 2021
O livro de Nancy Fraser & Rahel Jaeggi foi publicado no Brasil em 2020, porém não parece ter recebido a repercussão merecida. A seguir resumiremos a concepção alargada de capitalismo proposta pelas autoras.
A obra assemelha-se mais a uma entrevista com Fraser, conduzida por Jaeggi, que oferece um pouco da própria visão acerca dos temas em questão. O objetivo declarado é a formulação de uma teoria ampliada do capitalismo, capaz de articular ideias centrais do marxismo com as de paradigmas novos, dos estudos feministas, ecossocialistas, pós-coloniais.
As autoras partem do pressuposto de que, em que pese as variedades de capitalismos, há características nucleares que permitem distinguir as sociedades capitalistas das não capitalistas. Isto é, existiria um denominador comum a partir do qual apreender os capitalismos existentes, o desafio teórico seria delimitar esse núcleo. Tarefa que Fraser vai empreender a partir da conceituação do capitalismo em dois planos. O plano principal, que contempla a economia capitalista, reunindo seus elementos duradouros / estruturais; e o plano de fundo, que abarca as esferas da expropriação, da reprodução social, a esfera política e a da natureza não humana.
Neste esquema, a economia não seria uma esfera determinante nem em última instância, uma vez que só pode existir em articulação com as esferas do plano de fundo. E não se trata da dialética dentro e fora, os dois planos estariam dentro, entrelaçados. Além disso, Fraser adverte que seria inconcebível uma teoria ampliada do capitalismo em âmbito meramente nacional, do Estado territorial, a compreensão da geopolítica mundial (do imperialismo), das suas fases, seria indispensável, no entanto esse aspecto não foi muito explorado na conversa entre as autoras.
A exposição inicia pela definição do primeiro plano, à maneira que as autoras nomeiam de “ortodoxa”, para depois, por meio da abordagem das esferas do plano de fundo, “desortodoxizar” a definição de capitalismo. Os elementos do primeiro plano seriam: (1) a propriedade privada dos meios de produção e a divisão em classes (proprietários e não proprietários dos meios de produção); (2) trabalho livre como forma dominante; (3) dinâmica da acumulação orientada para a valorização do valor, e não à satisfação de necessidades sociais e de consumo; (4) alocação pelo mercado dos insumos produtivos e do excedente social.
Trata-se de uma definição genérica da economia capitalista, incrementada pelas considerações de Fraser (seguindo Marx) sobre os dois sentidos do trabalho livre, sobre o trabalho expropriado / não assalariado, o lugar dos mercados na definição de capitalismo, o papel da superestrutura na constituição da economia capitalista. Fraser ainda enfatiza a situação de suporte dos agentes sociais, capitalistas e produtores diretos à mercê do impulso do capital “para autovalorização sem fim”, em um movimento no qual: “(…) o próprio capital se torna o Sujeito. Os seres humanos são seus peões, reduzidos a descobrir como podem alcançar aquilo de que necessitam nos interstícios, alimentando a besta” (p. 32).
Com relação ao plano de fundo, a definição da esfera da expropriação segue Harvey (O novo imperialismo, Loyola), porém Fraser destaca as relações raciais e de gênero presentes nos expedientes de expropriação. A esfera da reprodução social, na linha dos estudos feministas marxistas, engloba as atividades destinadas à produção de pessoas (força de trabalho), executadas maiormente por mulheres e aqui Fraser também salienta as questões de gênero/raça, além da produção de subjetividades. A esfera política diz respeito, primeiramente, ao contrato social moderno, o qual define proprietários e produtores diretos como indivíduos juridicamente livres e iguais, princípio que vai orientar a organização do mercado de trabalho livre, sem o qual a economia capitalista não poderia existir. No tocante à esfera da natureza, Fraser discorre acerca do avanço capitalista sobre a natureza como condição para sua expansão, mas argumenta que a crítica desse movimento destrutivo não deve negar progressos científico-tecnológicos traduzidos em bem-estar social.
A autora ainda afirma a historicidade do modo de produção capitalista, na contramão das teses que o definem a partir da atividade mercantil ou do movimento de valorização do valor. Para Fraser, “a organização da produção por meio da exploração do trabalho como motor que gera mais-valia” seria muito mais crucial à definição do capitalismo do que o mercado (p. 33-34). Não se trata de negar o papel dos mercados, e sim de demarcar a historicidade do modo de produção capitalista, que, além do capital mercantil/comercial e do capital bancário-financeiro, requer o capital propriamente como relação social – o capital produtivo-industrial.
Convém insistir que, para Fraser, a economia (o plano principal) não seria a esfera determinante. Tampouco, adverte ela, deveríamos entender sua proposição a partir do par contradição principal e contradição secundária. Não, o primeiro plano reuniria os elementos sem os quais seria inconcebível falar em capitalismo, no entanto sua existência concreta e reprodução dependeria do plano de fundo.
Finalmente, é fundamental registrar que Fraser sustenta que a sociedade capitalista enfrenta “uma crise estrutural evidente”, situação marcada por largo descompasso entre a dimensão da crise e os conflitos sociais em todas as esferas da “ordem social institucionalizada”, como a autora denomina o capitalismo. Quer dizer, apesar da gravidade da crise, os conflitos sociais ainda não permitem vislumbrar “resolução emancipatória” (p. 25). Neste terreno, Fraser estende a visão ampliada do capitalismo às lutas de classes, buscando valorizar combates em torno de eixos que não os das classes, mas que teriam a mesma relevância ou mesmo poderiam ser entendidos como lutas de classes.
Como bússola, o esquema em dois planos parece-nos bastante produtivo à análise do capitalismo como totalidade social, com a vantagem de incorporar temáticas atuais relacionadas às esferas do plano de fundo. Entretanto, proporíamos um pequeno ajuste: a transposição da esfera política para o plano principal e o justificaríamos com base nas afirmações da própria Fraser, de que a propriedade privada dos meios de produção e a economia de mercado não existiriam sem a esfera política: “[…] Historicamente, podemos dizer que o Estado constitui a ‘economia’ capitalista” (p. 54-55).
Diríamos que constitui e mantém, sendo pertinente trazer a esfera política para o plano principal, escapando a qualquer identificação do econômico como determinante. Isto é, defendemos que o plano principal, perene e existencialmente articulado ao plano de fundo, seja apreendido como a relação de correspondência recíproca entre as esferas econômica e política.
Assim, teríamos os elementos constitutivos do plano principal, apresentados pelas autoras: propriedade privada/divisão em classes; predominância do trabalho livre; dinâmica da acumulação como movimento de valorização (“sem fim”) do valor; alocação via mercado dos insumos e do excedente social. Caracterização geral que não deixa de contemplar as relações de produção/forças produtivas, porém não é essa a problemática central na definição de capitalismo, uma vez que as autoras querem se afastar do “marxismo ortodoxo” por meio do foco na complementaridade entre os dois planos.
No que concerne à esfera política, por nossa conta, identificamos como elementos constitutivos, o direito capitalista e a correlata forma moderna de organização do corpo de funcionários do Estado (hierárquica-meritocrática), além do monopólio estatal do uso legítimo da violência. Assim definiríamos, no nível analítico, o plano principal: relação de dependência recíproca entre as esferas econômica e política em articulação com as esferas do plano de fundo.
No esquema de Fraser, não se avança na precisão das esferas do plano de fundo, apenas são indicados traços duradouros: modéstia na concretização do contrato liberal, expropriação de bens e direitos, relações desiguais entre centro e periferia, racismo e machismo estruturais, destruição do meio ambiente. Entendemos que isso ocorre porque as três esferas do plano de fundo (retirada a política) – da expropriação, reprodução e natureza –, embora indispensáveis ao capitalismo, não demandam conceitos desenvolvidos, e sim a análise das situações concretas, configuradas na articulação com o plano principal e umas com as outras.
Marx, no livro I de O capital, ao ir da exploração para a expropriação, dirigiu-se à história e assim devemos proceder na análise das esferas do plano de fundo, sempre a partir da articulação com o plano principal. Nos países periféricos, histórias de situações concretas fortemente perpassadas pelas problemáticas do colonialismo-imperialismo.
Angelita Matos Souza é cientista política e professora no Instituto de Geociências e Ciências Exatas da Unesp. Referência: Nancy Fraser & Rahel Jaeggi. Capitalismo em debate: uma conversa na teoria crítica. São Paulo, Boitempo, 2020, 256 págs.