Elvira Eliza França, Amazônia Real, 29 de outubro de 2020
Ailton Krenak não é um xamã ou pajé; é um líder tradicional do povo indígena Krenak, da região de Minas Gerais. Desde a juventude, vem alertando a nação brasileira sob a forma capitalista predadora de pensar e de agir na relação com a natureza, colocando em risco a vida dos povos tradicionais do país e de outros seres que fazem parte da diversidade da vida vegetal e animal. Ao contestar a forma vida consumista e destruidora, que ele denomina de “necrocapitalista“, diz que o branco banaliza e brinca com a terra, de forma irresponsável, sem levar em conta o direito à própria vida, assim como a dos demais seres vivos e também do planeta como um todo. Cita como necrocapitalista a agricultura, que para uns é “pop” em tudo, mas que utiliza produtos químicos danosos à saúde, e outros elementos que poluem rios e mares. As quedas das barragens em Mariana e Brumadinho, também são exemplos da irracionalidade necrocapitalista, nas palavras de Krenak.
Em 2019, Ailton Krenak publicou, pela editora Companhia das Letras, o livro “Ideias para adiar o fim do mundo” e, em 2020, lançou “A vida não é útil”. Nesta última publicação, incluiu a reflexão “O amanhã não está à venda”, que ficou disponível para leitura no site da editora, no mês de junho deste ano, em meio à pandemia do novo coronavírus.
Utilizando evidências e ironia, o sábio indígena Krenak cria, com a sua linguagem, estratégias para estimular o pensamento crítico do leitor sobre como é viver em sociedade e a relação que as pessoas estabelecem com a natureza e com o planeta. Compartilha aspectos da cultura indígena, em especial os do povo Krenak, para ajudar os brancos a compreenderem como é o modo de viver e de pensar dos povos tradicionais indígenas de sua etnia. Suas palavras alimentam a percepção de como os Krenak se relacionam com as árvores, animais e a natureza de um modo geral, e também com o planeta Terra: a grande mãe de todos os seres vivos.
Durante a leitura do livro, chamou-me a atenção o texto “Sonhos para adiar o fim do mundo” (p. 33-47), no qual Krenak aborda como os sonhos possibilitam fazer a conexão entre a realidade cósmica e a vida cotidiana, estabelecendo e orientando a vida de caçadores e agricultores de seu grupo, numa relação harmoniosa com a natureza. Krenak lembra que os sonhos podem ser premonitórios e dão forma à vida em grupo, numa experiência de consciência coletiva, que orienta as escolhas das pessoas sobre o que devem fazer depois que acordam.
“Sonhar é uma prática que pode ser entendida como regime cultural, em que, de manhã cedo, as pessoas contam o sonho que tiveram. Não como uma atividade pública, mas de caráter íntimo. Você não conta o sonho em uma praça, mas para as pessoas com quem tem uma relação. O que sugere também que o sonho é um lugar de veiculação de afetos. […] Quando o sonho termina de ser contado, quem o escuta já pode pegar suas ferramentas e sair para as atividades do dia: o pescador pode ir pescar, o caçador pode ir caçar e quem não tem nada a fazer pode se recolher. Não há nenhum véu que o separa do cotidiano e o sonho emerge com maravilhosa clareza” (p. 36-7).
A relação estreita entre o mundo dos sonhos e as vivências do cotidiano, tem como foco a mãe terra e a criação, que é explicada pelo líder indígena, por meio de uma história antiga de seu grupo étnico. Segundo a tradição dos Krenak, depois que criou a humanidade, o Criador foi para bem longe. Então, um dia resolveu voltar disfarçado, com o objetivo de conferir como as pessoas estavam se comportando com tudo o que haviam recebido dele. Assim, transformou-se em um tamanduá, mas assim que foi visto, foi caçado por um grupo de caçadores e levado para o acampamento para ser comido. Quando estava próximo de ser levado ao fogo, dois meninos resgataram o animal, impedindo que fosse morto e assado. Foi então que o Criador se revelou às crianças e elas acobertaram a sua fuga.
Por essa falta de sensibilidade para perceber o que é sagrado, o povo Krenak sempre desconfia dos humanos e Ailton diz: “a gente se afilia ao rio, à pedra, às plantas e a outros seres com quem temos afinidade. É importante saber com quem podemos nos associar, em uma perspectiva existencial mesmo, em vez de ficarmos convencidos de que estamos com a bola toda” (p. 42). Nesse sentido, a caça que é realizada em sintonia com o que é sagrado na natureza, é caracterizada como sendo uma oferta que o animal faz de si ao caçador, para que possa se servir dele como alimento. Mas tudo isso faz parte de um ritual sagrado, que prima pelo respeito à mãe natureza, na qual todos são considerados seres irmãos.
Krenak explica que não há uma confiança plena de que existe uma qualidade humana especial, já que as pessoas se sentem indiferentes em relação à “morte e destruição da base da vida no planeta” (p. 42). É justamente essa indiferença em relação à morte que leva ao questionamento acerca do que seja a humanidade. Segundo o líder indígena, a pandemia, foi uma possibilidade de reconfigurar o mundo, e de possibilitar às pessoas compreenderem que a “biosfera é exatamente o nosso corpo”, e que nela estão contempladas outras formas de vida, que precisam ser respeitadas no seu direito de viver.
Quando menciona a pandemia, Krenak ironiza o fato de as pessoas estarem resistindo a fazer uso de máscara, ao mesmo tempo em que outros se propõe ao desafio de explorar e viver em outros planetas. Ele critica e repudia a desatenção com a poluição dos lagos, rios e mares, onde é jogada grande quantidade de lixo nas águas, comprometendo a vida de outros seres, sendo que muitos também servem de alimento para o homem. Demonstra indignação em relação ao tratamento que é dado à terra e ao planeta, sem que as pessoas façam qualquer coisa para mudar essa situação, porque o que desejam é consumir cada vez mais, não importando o dano que causem ao meio ambiente.
Krenak explica como seu povo observa o movimento do céu e a relação dele com a terra, percebendo quando o povo está dissociado dos demais seres. Quando sentem a pressão de que o céu está muito perto da terra, sentem que é o momento de realizarem o ritual de canto e dança, com a finalidade de suspender o céu. Esse ritual é realizado na entrada da primavera.
“Então, é preciso dançar e cantar para suspendê-lo [o céu], para que as mudanças referentes à saúde da Terra e de todos os seres aconteçam nessa passagem. Quando fazemos o taru andé, esse ritual, é a comunhão com a teia da vida que nos dá potência” (p. 46).
Dando mais detalhes sobre o ritual de suspender o céu diz: “Suspender o céu é ampliar os horizontes de todos, não só dos humanos. Trata-se de uma memória, uma herança cultural do tempo em que nossos ancestrais estavam tão harmonizados com o ritmo da natureza que só precisavam trabalhar algumas horas do dia para proverem tudo que era preciso para viver. Em todo o resto do tempo você podia cantar, dançar, sonhar: o cotidiano era uma extensão do sonho. E as relações, os contatos tecidos no mundo dos sonhos continuavam tendo sentido depois de acordar” (46-7).
Sobre essa aproximação entre o céu e a terra, como possibilidade de causar o fim da humanidade, outro líder indígena da etnia yanomami, Davi Kopenawa, juntamente com o antropólogo Bruce Albert, publicaram, em 2015, pela mesma editora: “A queda do céu: palavras de um xamã yanomami”. Eles também dão o alerta sobre os desastres ambientais que estão ocorrendo no planeta, tomando como referência a devastação da floresta amazônica pelos garimpeiros, fazendeiros, madeireiros, grileiros etc. Lembram sobre a importância do respeito à natureza e aos povos tradicionais, como detentores de um saber que orienta para a manutenção da vida na Terra, respeitando a diversidade das formas vivas, presentes nos reinos vegetal e animal.
Referência: KRENAK, Ailton. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.