Fake news envolvendo vacinas contra covid têm gerado muita confusão nos indígenas, por medo de serem "cobaias". A desinformação propagada pelo governo federal em relação à pandemia e à segurança das vacinas tem atingido em cheio as comunidades indígenas. “Nós indígenas estamos enfrentando muitos problemas. Porque antes das vacinas, chegaram as mentiras, por mensagem de Whatsapp, de muitas formas. Inclusive com menções ao próprio discurso do presidente”, conta Sônia Guajarara, coordenadora da Apib (Articulação dos Povos Indígenas).
O Panorama Geral da covid-19, organizado pela Articulação dos Povos Indígenas com base em dados coletados pela Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena, vinculada ao Ministério da Saúde), revelam que 51.041 indígenas foram infectados pela doença e 1.020 morreram. Ao todo, 163 povos foram afetados pela pandemia. A disseminação do vírus nos territórios, segundo a organização, tem como agente transmissor médicos da Sesai e militares que patrulham as áreas indígenas.
José Eduardo Bernardes entrevista Sônia Guajajara, por Brasil de Fato, 21 de março de 2021
Na Apib, vocês têm acompanhando de perto o avanço da covid-19 contra os povos indígenas. As vacinas estão sendo aplicadas? Como está o ritmo de imunização nas aldeias?
Todo mundo esperou, sonhou para chegar a vacina. A vacina chegou, mas não teve um preparo antes para a população, para as pessoas, para que pudessem receber a vacina. Nós indígenas estamos tendo muitos problemas. Porque antes das vacinas chegaram as mentiras, por mensagem de Whatsapp, de muitas formas. Inclusive com menções ao próprio discurso do presidente.
E estamos vendo um grande número de pessoas que estão rejeitando a vacina, que não querem ser vacinadas. Porque acham que: “ah, somos os primeiros a tomar a vacina, querem usar a gente como cobaia”. “Está dizendo que se tomar vai adquirir outras doenças, vai instalar um chip na pessoa, que vai ser monitorada”.
São várias as mentiras que estão chegando, gerando essa confusão na cabeça das pessoas, e por isso as pessoas não querem. As mensagens do presidente, tanto religiosas fundamentalistas, quanto brincadeiras que chegam nas aldeias, gera essa confusão. E é grande o número de pessoas rejeitando a vacina.
Nós estamos com um trabalho intenso, com uma campanha em curso, que chama “Vacina Parente!”. Essa campanha tem como objetivo pressionar o governo a disponibilizar vacina para todo mundo, porque o plano de vacinação apresentado pelo governo federal, deixa de fora metade da população.
Estão trabalhando com o número de 410 mil indígenas. Então 42% da população indígena está fora do plano de vacinação (segundo o Censo do IBGE, são 817.963 indígenas no Brasil). E quem está fora? Os indígenas que estão vivendo na cidade, os indígenas que não estão cadastrados no Sistema de Atenção Indígena e os indígenas que estão fora de áreas demarcadas, em áreas não homologadas.
Indígenas que estão fora das aldeias, fazendo faculdade, estão voltando para casa e como não estão cadastrados, são impedidos de tomar a vacina.
[Quando a entrevista foi feita, o Supremo Tribunal Federal (STF) ainda não tinha determinado que o governo federal incluísse toda população indígena como grupo prioritário na Campanha Nacional de Imunização contra Covid-19. O novo entendimento só foi anunciado na terça-feira (16) pelo ministro Luís Roberto Barroso. Ou seja, os 42% que estavam fora devem ser imediatamente incluídos.]
E são diversas as áreas indígenas que aguardam demarcação. Como andam esses processos?
Nós temos muitos pedidos judicializados e o próprio governo federal, quando assumiu, a primeira coisa que fez foi devolver os pedidos de demarcação de terra indígena que estavam lá, na Casa Civil, já para assinatura.
Eram processos completamente prontos, com todos os estudos concluídos, só mesmo para assinatura. Eles devolveram para o Ministério da Justiça, que devolveu para a Funai, para que fossem refeitos os estudos.
E ele está cumprindo a sua promessa de campanha. Até agora nenhuma terra indígena foi demarcada e todas as semanas têm uma instrução normativa, um decreto, uma portaria com essa tentativa de suprimir direito territorial. Que tenta restringir esse direito da ocupação tradicional do território.
Nós temos 13% do território do brasileiro demarcado como terra indígena. Desse total, nós temos 97,3% desses territórios demarcados na Amazônia brasileira. Isso significa que nós temos somente 2,7% de áreas demarcadas para as demais regiões do Brasil.
Imagina só quanto que dá de terra indígena com processo concluído nas demais regiões? Nós temos regiões com um passivo muito grande, com tudo em processo que precisa ser concluído. Temos situações de terras que já têm o processo concluído e temos terras que não têm providência nenhuma. Estão lá os indígenas morando.
E esses 97,3% que estão na Amazônia não significa que o problema está resolvido. Porque praticamente todas elas têm um processo violento de invasão. Seja de grileiros, seja de madeireiros, seja de garimpeiros ilegais e seja de caçadores das mais diversas formas. E chegamos nessa situação de muitas mortes, de muitos conflitos.
No Mato Grosso do Sul, que é um dos estados onde tem menos terras demarcadas, é uma área de conflito permanente, porque há uma disputa direta com fazendeiros, ou com o agronegócio. Então, além de os indígenas estarem em uma constante disputa para terem seu território tradicional de volta, é uma luta pela sobrevivência.
E são essas áreas, com presença indígena, aquelas com maiores Índices de preservação ambiental também, não?
Não é possível falar de meio ambiente sem falar diretamente da questão indígena, porque elas estão muito juntas, é a mesma coisa. Quando a gente fala do meio ambiente, para nós, é falar do nosso corpo, do nosso território, do nosso espírito. É o nosso modo de vida, a nossa existência que está ali em um só.
E isso não é aceito por parte da sociedade, não é compreendido por parte das estruturas legais, acham que é uma luta por privilégio: “ah, esses indígenas têm muita terra. Pra quê tanta terra para pouco índio?”.
É uma frase que todo mundo já escutou. E o que a gente questiona, de verdade, é que são poucas as pessoas para lutar pela vida de todo mundo, porque o que a gente faz, trazendo toda essa luta ambiental para dentro da luta indígena, é uma luta que beneficia não só a gente, mas todas as pessoas.
Se você vai fazer uma luta climática, desconsiderando todos os direitos indígenas, todos os direitos culturais dos povos indígenas, não vai dar em nada. Porque já está mais do que comprovado que os territórios indígenas, mesmo sem ter uma política efetiva de proteção, são os mais preservados. São exatamente esses territórios que ainda têm água limpa, floresta em pé, um alimento saudável, sem veneno. É exatamente essa floresta em pé que faz o equilíbrio do clima. Se perder isso, não adianta, não vai ter clima.
Por isso é importante a pauta das demarcações de terras indígenas. Se os territórios indígenas são os que garantem esse equilíbrio, se perde esses territórios é desequilíbrio certo. Mais do que o que já está.
Fazer essa luta nos coloca também na linha de frente de um perigo gigante. Porque, quando a gente faz a luta pelo território, nós estamos enfrentando o agronegócio, a indústria madeireira, as empresas de mineração, o poder Legislativo, essa bancada poderosa, que é a maior do Congresso, que é a bancada ruralista.
E o poder Executivo não está de forma nenhuma fora disso. Temos hoje um governo que é totalmente inimigo dos povos indígenas, que quer praticar de forma acelerada e ilegal esse entreguismo dos territórios indígenas. Um governo que desde a sua campanha já anunciava que na sua gestão não haveria nenhum centímetro demarcado para povos indígenas.
E quando questionado sobre isso, ele corrigiu: “não é centímetro, é nenhum milímetro”. Então não se pode esperar muito de um governo como esse, que já tem essa decisão política de não demarcar terra indígena.
O mês de março marca a luta das mulheres e no movimento indígena, as mulheres têm ganhado protagonismo. São diversas vereadoras e até prefeitas eleitas. Como você tem visto esse avanço?
É sempre uma dupla face, porque muitas mulheres já conseguiram assumir as coordenações das organizações indígenas, os espaços nos conselhos, muitas mulheres na Universidade, formadas e ocupando o campo mais profissional. E mulheres que estão buscando também a participação na política.
Na última eleição municipal foram 44 mulheres indígenas eleitas, desde vereadoras a prefeitas. Isso para nós em avanço, é muito importante.
Então tem esse lado de que é bom você assumir, porque está com autonomia, incentivando outras mulheres a lutarem por isso, para chegar nesses lugares. Mas por outro lado, não deixa de ter esse questionamento e essa tentativa de intimidação por parte dos homens.
Eles acham que as mulheres ocuparem esses espaços, estarem no movimento, está fazendo uma luta contra os homens, assim muitos enxergam. Não é. A gente não está brigando, não está disputando, nós só queremos conquistar esse direito de igualdade na participação e no protagonismo.
Quando a gente entra para assumir alguma coisa, a gente não vai só pelo desejo de fazer carreira, a gente vai por querer ter uma incidência e fazer diferença. Quando a gente vai, é porque já tomamos a decisão e nada mais pára.
Temos hoje a primeira mulher indígena a coordenar a Organização Indígena da Amazônia Brasileira (Coiab), a Nara Baré. A Coiab já tem 32 anos e essa é a primeira vez que estamos em uma gestão paritária, que tem dois homens e duas mulheres, sendo que temos a coordenadora geral mulher e a coordenadora tesoureira mulher. Isso, para nós, é uma conquista gigante.
Temos a primeira indígena deputada federal, a Joênia Wapichana (Rede), que também é fruto da luta indígena, a Shirley Pankara (PSOL), em São Paulo, como co-vereadora pela Bancada Ativista, eu pude participar, pela primeira vez, de uma chapa presidencial em 2018 e também à frente da coordenação executiva da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), a primeira mulher a ocupar esse lugar. Isso para nós é romper barreiras e que vai deixando legado e servindo de espelho para outras mulheres.
No teu caso, como você tem avaliado a decisão de disputar mais uma eleição, após a campanha de 2018, ao lado de Guilherme Boulos, no PSOL?
Tenho muitas dúvidas sobre qual é o espaço mais estratégico para a gente estar. Eu cheguei na disputa eleitoral dentro de um partido (PSOL), por conta de já estar fazendo esse enfrentamento dentro do movimento indígena.
Às vezes muita gente fala: “ah, você é hoje reconhecida porque você foi a primeira candidata indígena à vice Presidência da República”. E eu falo: “não, é ao contrário. Eu cheguei lá porque já era reconhecida e fui aceita a entrar nessa disputa, a ser essa candidata do partido.
E nessa campanha, a gente [Sonia e Guilherme Boulos, candidato à Presidência pelo PSOL, em 2018], não estava com um projeto só de campanha, nós tínhamos um projeto de vida, que é um projeto permanente. Enquanto essas pautas não forem resolvidas, nós seguimos com as candidaturas abertas. Independente de estar em uma disputa eleitoral.
O que nós fazemos aqui no movimento é isso: é a luta pela igualdade social, essa concentração de renda que tem que acabar, a concentração de terra que tem que acabar.
Então, eu não consigo saber direito se é melhor estar ocupando um espaço na institucionalidade, ou se de permanecer aqui, na linha de frente fazendo à resistência, de estar cobrando, pressionando, de estar articulando o povo, de estar propondo as pautas populares. Tem que ter liderança lá e tem que ter liderança aqui.