Entrevista com Wolfgang Streeck, IHU-Unisinos, 12 de maio de 2020
O declínio da Itália é uma bomba-relógio, seguida por uma queda da França. Faça o que faça a União Europeia - sob os desígnios de Maastricht -, nada será suficiente para recuperar a economia italiana.
Existe uma possibilidade real de que a classe política favorável à União Europeia seja varrida nas próximas eleições. Isso estava prestes a ocorrer antes da crise do coronavírus, avalia o sociólogo alemão Wolfgang Streeck, diretor emérito do Instituto Max Planck. A entrevista a seguir, realizada pelo jornal alemão Frankfurter Algemeine Zeitung, foi pelo Observatorio de la crisis e pelo IHU-Unisinos. A tradução é do Cepat.
As crises dos últimos anos têm sido um fenômeno mundial em rápida expansão. Os estados têm sido capazes de solucionar as crises?
Os estados estão na intempérie. Não têm meios para enfrentar com eficácia o rápido processo de globalização. A globalização pode ter trazido benefícios, mas também teve custos muito altos. Pelo menos para enfrentar a globalização, os países deveriam ter fortalecido seus sistemas de saúde, previdência social e educação. Mas a maioria dos governos diminuiu esses serviços públicos ou simplesmente os adiou.
Na Europa, nos últimos trinta anos, o custo da globalização foi financiado com mais dívida e não mais impostos. Foram acumuladas enormes montanhas de dívida e a dívida cresce de crise em crise. A chamada “governança global” tinha como objetivo dispensar os parlamentos nacionais, o termo técnico é “diplomacia multinível em uma ordem multilateral”. Desde os anos 1990, os processos de liberalização econômica na União Europeia têm sido de tal ordem que um governo nacional, com um sistema político democrático, nunca seria capaz de executar.
Pode-se dizer que a União Europeia pressionou, por exemplo, para cortar os sistemas de saúde?
Sim e não. A zona do euro pressionou com políticas de consolidação fiscal, também chamadas de “austeridade”. De fato, criou ferramentas de monitoramento específicas para controlar orçamentos.
A economista irlandesa Emma Clancy denunciou 63 casos em que a União Europeia pediu oficialmente aos Estados membros que cortassem os gastos em saúde pública. A União Europeia também fez permanentes interpelações para privar benefícios sociais e os direitos dos trabalhadores. Na Itália e na Espanha, o sistema de saúde pública equivale a 6,5% do produto social, na Alemanha, é três pontos percentuais mais alto, chegando a quase 10%.
Acredita que essa tendência vai continuar?
Agora se diz que, após a pandemia, nada será o mesmo de antes. No entanto, eu tendo a ver uma continuidade. Não observo nenhuma mudança nas políticas de empréstimos, segue o crescimento da oferta monetária e, lamentavelmente, também continua o aumento da desigualdade social. Soma-se a isso a queda nos gastos públicos, que ainda são financiados com impostos.
A Alemanha foi durante muito tempo uma grande exceção, beneficiando-se da assimetria estrutural da união monetária. Essa política, representada pelo euro, favoreceu a economia alemã, que se baseia solidamente nas exportações para obter prosperidade.
Na atual crise, o estado-nação provou ser um fator estabilizador. Isso significará alguma mudança ou se trata apenas de medidas de emergência?
Quando as coisas ficam sérias, o estado-nação é o único “que atua pela cidade”, dizem os estadunidenses... a retórica da redução do estado-nação sempre foi uma técnica de legitimação que os governos utilizam para justificar o “livre comércio” e, logo, para acobertar sua impotência nas crises que causaram essas políticas.
É possível que a união monetária fortaleça a independência dos estados nacionais contra o poder dos mercados financeiros?
Pelo contrário. A França e a Itália decidiram aderir à união monetária porque seus governos acreditavam que seus países necessitavam de uma “modernização estrutural” nas áreas econômica e social. Essa “modernização” não poderia ter sido realizada dentro das estruturas democráticas do Estado-nação.
Por esse motivo, as elites políticas aceitaram o euro como restrição externa. Esta é realmente uma moeda “alemã” dura. O plano B procurou suavizar este euro duro. Tratava-se de salvar a união monetária por meio de reformas estruturais “internas”, em substituição a uma desvalorização “externa” do euro. Essas reformas falharam - especialmente na França - devido à forte resistência popular.
Na atual crise, o Banco Central Europeu fornecerá 750 bilhões de euros e mais de dois trilhões de euros comprando títulos emitidos por governos nacionais. O que significam essas medidas?
Todas as ações importantes do BCE têm consequências distributivas assimétricas entre os países que participam da união monetária e também são bastante ofuscas e sombrias. Não existe um parlamento ao qual o Banco Central Europeu preste contas. Os estados nacionais não podem atenuar a crise criando seu próprio dinheiro e devem angariar dinheiro nos mercados financeiros privados.
O financiamento governamental - mesmo através do BCE - está descartado pelo Tratado de Maastricht. No entanto, o BCE compra títulos de credores privados. Esses credores são bancos privados que criam euros livremente, obtendo um prêmio por essa função. Basicamente, o Banco Central Europeu não faz nada para substituir esse dinheiro criado por bancos privados.
Isso significa que o BCE estaria assumindo tarefas políticas sem controle democrático e contrárias à lei da própria União Europeia. Por que os governos aceitam essa política monetária?
Existem muitas ferramentas obscuras para manter viva a união monetária. O governo alemão as aceita porque o valor real do euro é desvalorizado devido à participação dos países mais fracos. Na prática, isso favorece a exportação de produtos alemães.
Essa política monetária impede que os países do sul da Europa superem crises. Enquanto a classe política permanecer “pró-europeia”, o custo dessas crises continuará sendo pago pelos setores populares. O que o BCE faz é desempenhar o papel de uma farmácia de emergência que fornece apenas analgésicos.
O que acontecerá se a União Europeia continuar com essas políticas?
A bomba-relógio é o declínio da Itália, que provavelmente será seguida por uma queda da França. Faça o que faça a União Europeia - sob os desígnios de Maastricht -, nada será suficiente para recuperar a economia italiana. Portanto, existe uma possibilidade real de que a classe política favorável à União Europeia seja varrida nas próximas eleições. Isso estava prestes a ocorrer antes da crise do coronavírus.
A estabilização só poderia ser o resultado de uma reestruturação da união monetária. Existe um modelo para isso?
O problema com o euro é que não permite que os Estados membros façam desvalorizações. Uma alternativa seria que cada país tivesse uma moeda nacional atualizada ou depreciada em relação ao euro, sob certas condições previamente acordadas. Outra opção seria um certo intervalo de flutuação automática entre o euro e as moedas nacionais. Aliás, isso existe entre a área do euro e a Dinamarca. Para os europeus do sul, isso poderia ao menos oferecer uma oportunidade de respirar. Isso também lhes permitiria permanecer integrados ao sistema, enquanto preservam sua soberania nacional e sua paz política interna.
As instituições políticas dentro da União Europeia não deveriam ser fortalecidas para corrigir seu déficit democrático?
Ninguém realmente quer uma união política. Quando se trata dessa espinhosa questão, a soberania política sempre vem em primeiro lugar. Como vimos, o mesmo não acontece com a soberania econômica.
Emmanuel Macron também pensa assim?
Especialmente, ele defende a soberania política. Nenhum presidente francês vai querer renunciar à soberania da França. Politicamente, estaria morto. A fórmula de Macron é: “Uma França soberana em uma Europa soberana”. Esta não é exatamente uma união política. A proposta alemã de compartilhar o assento francês no Conselho de Segurança da ONU foi rejeitada por uma França horrorizada. Os franceses nunca estarão dispostos a colocar a Alemanha sob o guarda-chuva atômico francês.
Sob essas condições, que perspectivas de futuro a União Europeia possui?
Parece-me interessante a proposta de uma União Europeia limitada. Trata-se de uma União Europeia organizada de acordo com campos de atividades selecionados em conjunto. Uma Europa que seria uma plataforma para a cooperação horizontal voluntária, sem uma diretiva hierárquica.
O modelo atual, que está em declínio há muito tempo, é um projeto tecnocrático de globalização e centralização típico dos anos 1990. Agora, acabou seu tempo. Hoje, vivemos em outro mundo.
Mas o mundo precisa de uma Europa politicamente forte. A União Europeia que você descreve teria atrativo político e peso internacional?
Não é sério e nem realista acreditar que podemos competir militarmente com os Estados Unidos ou com a China. Nem sequer poderíamos competir em termos militares com a Grã-Bretanha. A Europa poderia usar com êxito a emergente dualidade na política internacional. Desse modo, poderíamos construir um nicho para que a civilização europeia preserve sua diversidade e viva pacificamente, sem ambições imperiais (internas e externas). Neste ponto, gostaria de me dar ao luxo de sonhar pela primeira vez.