Stuart Hall, Jacobin Brasil, 10 de fevereiro de 2022
Stuart Hall nasceu na Jamaica, em 3 de fevereiro de 1932. Em 1951, ganhou uma bolsa para estudar na Universidade de Oxford e se mudou para o Reino Unido, onde se tornou um ativista político, fez carreira acadêmica, e viveu o resto da vida, até seu falecimento em 10 de fevereiro de 2014.
Hall foi um destacado intelectual militante e um pioneiro dos chamados “estudos culturais”. Com E. P. Thompson, Raymond Williams e outros fundou a New Left Review, em 1960, e foi seu primeiro editor. Sua relação estreita com publicações da esquerda seguiu por toda a vida: nos anos 70 e 80 foi um contribuidor frequente da Marxism Today (onde o artigo abaixo originalmente apareceu, em 1987), então a revista teórica do Partido Comunista da Grã-Bretanha, e em 1995 foi o editor fundador, em parceria com a geógrafa marxista Doreen Massey, da Soundings. Juntamente com C.L.R. James uma das vozes mais influentes do marxismo negro, Hall elaborou um pensamento radical fino e sofisticado sobre a questão da identidade e uma crítica demolidora às essencializações do discurso racista. Leitor atento de Gramsci, sua seminal análise de conjuntura dos anos de ascenso do fenômeno thatcherista e da crise da esquerda britânica ainda guarda lições valiosas para a reflexão sobre os desafios do socialismo no nosso tempo.
A principal lição que nos ensina Hall é que o socialismo não cairá do céu de presente, graças a alguma lei da história ou ao desenvolvimento necessário da consciência de classe. A ação coletiva precisa ser articulada politicamente. Nada está assegurado: não há garantias que os trabalhadores atuarão segundo seus supostos interesses diretos, muito menos que a crise do capitalismo beneficiará os anticapitalistas. Nossos inimigos não jogam parados – a direita também muda, e precisamos compreender seus movimentos para melhor responder a eles. Política é produção, e tudo precisa ser construído. Toda a análise, ou estratégia política, é contingente e está fadada a uma hora se tornar obsoleta, o que nos força a reconstruí-las sempre que a situação se altera, uma tarefa inerentemente arriscada, precária, nunca inteiramente completa. Mas que precisa continuamente ser feita e refeita, se quisermos ter alguma chance de vitória.
Stuart Hall encarnou durante toda a vida a coragem da verdade, a disposição implacável de teorizar o mundo para melhor transformá-lo e a responsabilidade militante de falar para fora da academia, com rigor conceitual, mas com generosidade e com esforço de se fazer entender. Essa dedicação nos legou armas analíticas tremendamente úteis para a luta de massas, e por isso devemos ser eternamente gratos.
Gramsci e nós, de Stuart Hall
Essa não é uma exposição abrangente das ideias de Antonio Gramsci, nem um comentário sistemático da situação política na Grã-Bretanha hoje. É uma tentativa de ‘pensar em voz alta’ sobre alguns dos dilemas que mais perplexidade geram em toda a esquerda, à luz – sob o ponto de vista – do trabalho de Gramsci.
Não estou dizendo que, em qualquer sentido simples, Gramsci teria ‘as respostas’ ou ofereceria ‘a chave’ para ‘resolver’ nossas dificuldades correntes. O que acredito é que precisamos ‘pensar’ de modo Gramsciano os nossos problemas – o que é diferente. Não devemos usar Gramsci (como por tanto tempo abusamos de Marx) como um profeta do Velho Testamento que, no momento certo, nos presenteará com a citação mais apropriada para nosso máximo consolo. Não há como remover esse “Sardo” de sua formação política única e específica, teletransportá-lo para o final do século 20 e pedir-lhe que resolva para nós os nossos problemas: especialmente porque o cerne de seu pensamento sempre foi a recusa a esse tipo de ‘transplante’ leviano de generalizações a partir de uma conjuntura, nação ou época específicas, para outras.
O que em Gramsci realmente transformou meu modo de pensar sobre política é a questão que brota de seus Cadernos do Cárcere. Quem for ler os textos clássicos de Marx e Lênin, é levado a esperar um desenvolvimento revolucionário histórico de época, do final da 1ª Guerra Mundial em diante. E, de fato, vários eventos ofereceram provas consideráveis de que semelhante desenvolvimento estava em vias de acontecer. Gramsci pertence a esse “momento proletário”. Aconteceu em Turim nos anos 1920s, e em outros locais onde pessoas como Gramsci, em contato com a vanguarda da classe trabalhadora industrial – naquele momento, na linha de frente da produção moderna – acreditavam que bastaria que os gerentes e políticos saíssem da frente, e aquela classe de proletários poderia governar o mundo, tomar as fábricas, apropriar-se da maquinaria da sociedade, transformá-la materialmente e administrá-la economicamente, socialmente, culturalmente, tecnicamente.
A verdade sobre os anos da década 1920 é que o ‘momento proletário’ se desfez quase imediatamente. Pouco depois da 1ª Guerra Mundial parecia uma ameaça real que, sob a liderança dessa classe, o mundo seria transformado – como a Rússia fora transformada em 1917 pela Revolução Soviética. Esse foi o momento da perspectiva proletária sobre a história.
O que chamei de “a questão de Gramsci nos Cadernos” emerge na sequência desse momento, com o reconhecimento de que a história não estava indo naquela direção, sobretudo nas sociedades capitalistas avançadas da Europa Ocidental. Gramsci teve de enfrentar o refluxo, o fracasso, daquele momento: o fato de que tal momento, tendo passado, jamais voltaria sob aquela mesma velha forma. Gramsci, aqui, se viu cara a cara com o próprio caráter revolucionário da história. Quando uma conjuntura se desenrola, não há ‘volta atrás’. A história muda de marcha. O terreno se transforma. De repente, você está em um novo momento. E é preciso se submeter, ‘violentamente’, com todo o ‘pessimismo do intelecto’ a sua disposição, à ‘disciplina da conjuntura’.
Além disso (e aí está uma das principais razões pelas quais essa ideia é tão pertinente para nós hoje), Gramsci teve que encarar também a capacidade da direita – especificamente, do fascismo europeu – em hegemonizar aquela derrota.
Gramsci estava frente a um revés histórico do projeto revolucionário, uma nova conjuntura histórica, um momento que a direita, e não a esquerda, foi capaz de dominar. Um momento de crise total para a esquerda, quando todos os pontos de referência, todas as previsões, são reduzidos a cacos. Quando o universo político, tal como você o conhecia e no qual habitava, colapsa.
Não estou querendo dizer que a esquerda da Grã-Bretanha esteja em momento exatamente igual a esse; mas, sim, espero que todos reconheçam alguns traços impressionantemente similares, porque é a semelhança entre essas duas situações que torna a questão chave dos Cadernos do Cárcere tão seminalmente importante para nos ajudar a compreender qual é nossa condição hoje. Gramsci nos oferece, portanto, não as ferramentas para resolver o enigma, mas os meios por meio dos quais propor os tipos certos de perguntas sobre a política dos anos 1980s e 1990s. E o faz ao direcionar nossa atenção, implacavelmente, para o que é específico e distinto a respeito desse nosso momento. Gramsci sempre insiste nessa atenção à diferença. Aí está uma lição que a esquerda britânica ainda terá de aprender. Tendemos a pensar que a direita não só sempre está conosco, como é sempre a mesma: as mesmas pessoas, com os mesmos interesses, pensando os mesmos pensamentos. Mas estamos testemunhando uma transformação do conservadorismo britânico – sua adaptação parcial ao mundo moderno, por meio da “revolução” neoliberal e monetarista. O thatcherismo reconstruiu o conservadorismo e o Partido Conservador. Os empresários utilitários, austeros, pequeno-burgueses estão agora no poder; não as antigas classes do dinheiro velho, que passavam o tempo pescando e caçando. E, por mais que essas transformações estejam modificando o terreno da luta política bem diante de nossos olhos, mesmo assim pensamos que as diferenças não têm qualquer efeito sobre coisa alguma. Ainda soa muito ‘de esquerda’ dizer que a velha classe dominante continua dominando da mesma velha maneira.
Gramsci, por outro lado, sabia que diferença e especificidade importam, são decisivas. Assim, em vez de perguntar ‘o que Gramsci diria sobre o thatcherismo?’ temos apenas de prestar atenção de modo sério a essa fixação que Gramsci tinha pela noção de diferença, a questão da especificidade de uma dada conjuntura histórica: como forças diferentes se combinam, conjunturalmente, para criar um novo terreno, sobre o qual uma forma diferente de política precisa se formar. Essa é a intuição que Gramsci nos oferece sobre a natureza da vida política, a partir da qual podemos tirar um fio condutor.
Quero dizer o que penso que sejam “as lições de Gramsci”, em primeiro lugar em relação ao thatcherismo e ao projeto da Nova Direita; e, em segundo, em termos da crise da esquerda. Aqui, apresento só as linhas mais gerais do que entendo por “thatcherismo”. O que estou tentando discutir é a abertura, a partir de meados dos anos 70, de um novo projeto na Direita. Por “projeto”, não quero dizer (como nos alerta Gramsci) algum tipo de conspiração. Quando falo de “projeto”, estou falando da construção de uma nova agenda na política britânica. O objetivo da senhora Thatcher sempre foi não meramente algum tipo de reversão eleitoral de curta duração, mas um longo período histórico de exercício do poder. Essa ocupação do poder pela direita não tinha em vista apenas o comando do aparelho de Estado. Na verdade, o projeto foi organizado, nos estágios iniciais, em oposição ao Estado, que o ‘thatcherista’ via como profundamente corrompido pelo bem-estar social e pelo keynesianismo, que, por sua vez, teriam ajudado a ´corromper´ o povo britânico. O thatcherismo ganhou vida no confronto contra o velho estado de bem-estar keynesiano, contra o ‘estatismo’ social-democrata, o qual, na visão do thatcherismo, havia dominado os anos 60. O projeto tatcherista foi transformar o Estado para assim reestruturar a sociedade: desorganizar, deslocar, desfazer toda a formação política do pós-guerra; reverter a cultura política que havia formado a base do pacto – o compromisso histórico entre trabalho e capital – vigente a partir de 1945.
Essa reversão aspirava a ser muito profunda: uma reversão das regras básicas do consenso político, das alianças sociais que serviam de substrato àquele acordo e dos valores que lhe haviam garantido popularidade. Não estou falando de atitudes e valores das pessoas que escrevem livros. Falo das ideias das pessoas comuns que simplesmente, na vida ordinária cotidiana, têm de calcular como sobreviver, como cuidar da família e dos dependentes mais próximos.
Refiro-me a isso quando digo que o thatcherismo tinha como objetivo uma reversão no senso comum ordinário. O senso comum do povo inglês havia sido construído em torno da noção de que a última guerra havia levantado uma muralha entre os ‘tempos difíceis’ dos anos 1930s e ‘hoje’; que o estado de bem-estar social havia chegado para ficar; que nunca mais voltaríamos a usar o critério do mercado como medida das carências das pessoas, das necessidades da sociedade. Sempre teria de haver alguma força institucional adicional, incremental – o Estado, representando o interesse geral da sociedade – para se contrapor ao mercado, e modificá-lo. É claro que sei que o socialismo não foi implementado em 1945. Estou falando da base popular da social-democracia do bem-estar, tomada como garantida de uma vez por todas, que formava o terreno concreto, real, sobre o qual teria de ser construído qualquer socialismo que merecesse ostentar o título. O thatcherismo foi um projeto para contestar e combater precisamente aquele projeto e, assim que possível, desmantelá-lo e implantar algo de novo no lugar. O thatcherismo entrou no campo político para uma disputa histórica, não só por poder, mas pela autoridade popular, isto é, por hegemonia.
É um projeto – e isso não cansa de confundir a esquerda – que é simultaneamente progressista e retrógrado. É retrógrado porque, em alguns aspectos cruciais, nos arrasta para trás, de volta ao passado. Qualquer um que defendesse, diante do povo britânico no final do século 20, a ideia de que o melhor futuro possível seria todos voltarem a ser, pela segunda vez, “Vitorianos Eminentes”, estaria empurrando os britânicos, inevitavelmente, para trás. É um projeto profundamente regressivo, antiquado e arcaico. Mas não devemos compreendê-lo mal: também é um projeto de ‘modernização’. É uma forma de modernização regressiva. Porque, ao mesmo tempo, o thatcherismo tinha seu olhar fixado em um dos fatos históricos mais profundos sobre formação social britânica: a saber, que ela nunca chegou propriamente à era da moderna civilização burguesa. Nunca fez essa passagem para a modernidade. Jamais institucionalizou adequadamente a civilização e as estruturas do capitalismo avançado – o que Gramsci chamou de “fordismo”. Nunca transformou suas velhas estruturas industriais e políticas. Nunca se tornou uma potência da segunda revolução industrial capitalista, no sentido em que o fizeram os EUA, e, por outra via (a via “prussiana”), também a Alemanha e o Japão. A Grã-Bretanha jamais passou por essa profunda transformação, a qual, no final do século 19, reconstruiu ambos, o capitalismo e as classes trabalhadoras.
Consequentemente, a senhora Thatcher sabe que não há projeto político sério na Grã-Bretanha hoje que não tenha a ver também com construir uma política e uma imagem da ‘cara’ que a “modernidade” deverá ter para os britânicos. E o thatcherismo, à sua maneira, ativamente regressiva, buscando inspiração no passado, olhando para trás para glórias pretéritas em vez de olhando para frente para uma nova época, inaugurou o projeto da modernização reacionária.
Nada mais crucial, a esse respeito, que a ideia de Gramsci de que cada crise é também um momento de reconstrução; que não há destruição que não seja também reconstrução; que, historicamente, nada é desmantelado sem o correspondente esforço para pôr outra coisa ‘nova’ no lugar: que toda e qualquer forma de poder não apenas exclui, mas também produz alguma coisa.
Essa é uma concepção inteiramente nova de crise – e de poder. Quando a esquerda fala de crise, tudo o que vemos é o capitalismo em desintegração, e nós em marcha triunfante para tomar o poder. Não entendemos que a disrupção do funcionamento normal da velha ordem econômica, social, cultural oferece uma oportunidade para reorganizar de modos novos, de reestruturar e reformatar, de modernizar e seguir adiante. Se necessário, é claro, ao custo de deixar para trás um vasto número de pessoas – no nordeste e noroeste do país, no País de Gales e na Escócia, nas comunidades de mineiros e nas áreas industriais devastadas, nas cidades do interior – jogados à lata de lixo da história. Essa é a “lei” da modernização capitalista: desenvolvimento desigual, desorganização organizada.
Confrontados com essa perigosa nova formação política, a tentação é sempre denunciá-la ideologicamente, fazendo a pergunta marxista clássica: a quem essa formação realmente representa? Mas em geral, quando nós da esquerda colocamos, à moda antiga, essa velha pergunta marxista clássica, não estamos de fato perguntando coisa alguma: estamos apenas fazendo uma ‘declaração’ histórica. Já conhecemos a resposta. É claro que a direita representa a classe dominante no poder. Representa a ocupação, pelo capital, do Estado, que nada mais é do que um instrumento dessa classe dominante. Escritores burgueses produzem romances burgueses. O Partido Conservador é a classe dominante entronizada pelo voto, etc., etc. É o marxismo como teoria do óbvio. A questão não entrega nenhum conhecimento novo, apenas a resposta que já sabíamos. Há aí uma espécie de jogo – teoria política como brincadeira de ligue-os-pontos. Na verdade, a razão pela qual temos de perguntar “quem é representado por essa nova formação?” é que realmente não conhecemos a resposta de antemão.
É realmente desafiador dizer, em uma formulação simples, quem, afinal, é representado pelo thatcherismo. O que temos aqui é o desnorteante fenômeno de uma ideologia pequeno-burguesa que ‘representa’, e ao mesmo tempo está ajudando a reconstruir, tanto o capital nacional quanto o capital internacional. Mas, no curso de ‘representar’ o grande capital empresarial, ganha o consentimento de porções substanciais das classes subordinadas e dominadas. Qual é a natureza dessa ideologia que consegue inscrever em si um espectro tão vasto de posições e interesses diferentes, e que parece representar um pouquinho de todo mundo? Pois não se enganem, um pouco de todos nós aqui também está de algum modo dentro do projeto thatcherista. Claro, todos nós aqui somos militantes de esquerda 100% comprometidos. Mas vez por outra – sábado pela manhã, talvez logo antes de uma manifestação – vamos a uma loja Sainsbury e ali somos um pouquinho o sujeito thatcherista também…
Como dar conta de uma ideologia que não tem coerência, que fala num dos nossos ouvidos com a voz do homem de negócios utilitarista, e no outro ouvido com a voz do respeitável homem burguês patriarca? Como esses dois repertórios operam juntos? Estamos todos tomados de perplexidade frente à natureza contraditória do thatcherismo. Do nosso jeito intelectual, pensamos que o mundo entrará em colapso por causa de uma contradição lógica: essa é a ilusão do intelectual – que a ideologia teria de ser coerente, cada pedacinho dela absolutamente em harmonia com o todo, como um ensaio filosófico. Quando, na verdade, todo o propósito do que Gramsci chamava de uma “ideologia orgânica” (quer dizer, historicamente efetiva) é que ela articula numa configuração diferentes sujeitos, diferentes identidades, diferentes projetos, diferentes aspirações. Uma “ideologia orgânica” não reflete: ela constrói, a partir da diferença, uma ‘unidade’.
Vivemos às voltas com o projeto tatcherista, não desde 1983 ou 1979, como reza a doutrina oficial, mas desde 1975. 1975 é o climatério da política britânica. Primeiro, a disparada do preço do petróleo. Segundo, o início da crise capitalista. Terceiro, a transformação do moderno conservadorismo, pela ascensão da liderança thatcherista. O momento da virada é quando, como dizia Gramsci, fatores nacionais e internacionais se alinham. Não começou com a vitória eleitoral da senhora Thatcher, porque política não é uma questão apenas eleitoral. Aterrissou, na verdade, em 1975, como um soco direto no peito político de Callaghan [o primeiro ministro trabalhista à época]. Partiu ao meio a já rachada muleta de Callaghan. Uma das metades permanece avuncular, paternalista, social-conservadora. A outra metade já dança uma outra melodia.
Uma das vozes de sereia, cantando a nova canção nos ouvidos de Callaghan, é seu genro, Peter Jay, um dos arquitetos do monetarismo, em sua função de missionário como editor de economia do The Times. Callaghan viu primeiro as novas forças de mercado, o novo consumidor soberano, descendo da colina como fuzileiros navais. E, dando ouvido a essas intimações do futuro, o velho abriu a boca. E o que ele disse? Que o beijo tinha que acabar. Fim de jogo. A social-democracia já era. O estado de bem-estar se foi pra sempre. Não temos mais dinheiro para isso. A conta não fecha. Estamos pagando demais a nós mesmos, nos dando empregos fajutos em demasia, passando tempo demais só curtindo no balanço.
Dá para ver a psique inglesa colapsando sob o peso de tantos prazeres ilícitos em que se refestelara – a permissividade, o consumo, as coisas boas. Tudo falso, só espuma e purpurina. Os árabes explodiram tudo aquilo. Agora, temos de pensar de outro modo. Thatcher fala dessa ‘nova rota’. E fala também de outra coisa, profunda na psique britânica: o masoquismo. A necessidade que os ingleses parecem ter de levar uma palmada da babá e ser mandado para a cama sem o doce. O cálculo de que cada bom verão tem de ser pago por 20 invernos terríveis. O espírito de Dunkirk – quanto pior nossa situação, melhor nos comportamos. Thatcher não nos prometeu uma sociedade de abundância. Disse: “tempos de ferro”. Costas contra a parede; mexam-se, ao trabalho, cavem, não parem de cavar. Aferrem-se às velhas verdades, já testadas pelo tempo, a sabedoria da ‘Velha Inglaterra‘. A família manteve coesa a sociedade: viva então segundo os valores familiares. Mandem as mulheres de volta para a cozinha. Os homens, que partam para a Fronteira Noroeste. Tempos duros – até que depois, muito depois, os Velhos Bons Tempos voltarão. E Thatcher pediu aos britânicos muito tempo – não um, mas dois ou três mandatos. Ao final, disse ela, conseguirei redefinir a nação, e de tal modo que vocês, mais uma vez, pela primeira vez desde que o Império começou a deslizar ladeira abaixo, sentirão o que é ser parte da Grã-Bretanha Ilimitada. Vocês conseguirão, mais uma vez, mandar nossos rapazes ‘para lá’, hastear a bandeira, dar boas-vindas à frota. A Bretanha voltará a ser Grande de novo.
Na minha avaliação, as pessoas não votam a favor do thatcherismo porque acreditam na letra miúda. Ninguém em perfeito juízo supõe que a Grã-Bretanha viva hoje uma economia próspera, maravilhosa, bem-sucedida. Ninguém acredita que, com mais de 3 milhões de pessoas desempregadas, a economia está começando a pegar no tranco. Todo mundo sabe que as falas do ministro da economia são “econômicas com a verdade”. Mas o thatcherismo, como ideologia, fala diretamente aos medos, às ansiedades, às identidades perdidas, de um povo. Convida a pensar sobre a política em imagens. Dirige-se às nossas fantasias coletivas, à Grã-Bretanha como comunidade imaginada, ao imaginário social. A senhora Thatcher dominou perfeitamente esse idioma – enquanto a esquerda faz um esforço desajeitado para arrastar a conversa de volta para as ‘nossas políticas’.
Trata-se de um projeto histórico momentoso, a modernização regressiva da Grã-Bretanha. Que tenta atrair as pessoas comuns, não porque sejam burras, estúpidas, ou porque tenham sido cegadas por uma falsa consciência. Uma vez que o caráter político de nossas ideias não pode ser garantido por nossa posição de classe, ou pelo “modo de produção”, é possível para a direita construir uma política que fale às experiências das pessoas, que se insira naquilo que Gramsci chamava de “a natureza necessariamente fragmentária e contraditória do senso comum”, que de fato ressoe com algumas de suas aspirações ordinárias, e que, em determinadas circunstâncias, possa reformatá-las como temas subordinados em um projeto histórico que hegemoniza o que nós – erroneamente – nos habituamos a entender como seus “interesses de classe necessários”. Gramsci é um dos primeiros marxistas modernos a reconhecer que os interesses não são dados, mas precisam sempre ser construídos politicamente e ideologicamente.
Nos Cadernos do Cárcere, Gramsci nos alerta para o fato de que uma crise não é um evento não mediado, surgido do nada, mas um processo. Pode durar muito tempo, e pode ser resolvida de maneiras muito diferentes: por restauração, por reconstrução ou por transformismo passivo. Às vezes mais estáveis, às vezes mais instáveis, num sentido profundo, as instituições britânicas, a economia britânica, a sociedade e a cultura britânica estão em profunda crise social durante praticamente todo o século 20.
Gramsci nos alerta que crises orgânicas dessa ordem surgem não apenas no domínio político e em áreas tradicionais da vida industrial e econômica, não simplesmente na luta de classes, no sentido antigo; mas em uma ampla séries de polêmicas e debates sobre questões fundamentais de ordem sexual, moral e intelectual, numa crise das relações de representação política e dos partidos – em toda uma enorme lista de questões que, a primeira vista, não parecem de modo algum articuladas necessariamente com a política em sentido estrito. É o que Gramsci chama de crise de autoridade, que nada é se não a crise da hegemonia, ou crise geral do Estado.
Estamos exatamente nesse momento. Viemos dando forma a tal ‘crise de autoridade’ na vida social e na cultura da Grã-Bretanha desde meados dos anos 60. Na década de 1960, a crise da sociedade inglesa foi marcada por múltiplos debates e lutas em torno de novos pontos de antagonismo, que pareciam imediatamente muito distanciados do tradicional núcleo duro da política britânica. A esquerda muitas vezes apenas esperou pacientemente que os velhos ritmos da luta de classe voltassem a imperar, quando, de fato, as próprias formas da ‘luta de classe’ estavam sendo transformadas. Só se consegue entender essa diversificação nas lutas sociais à luz do que Gramsci ensina, quando insiste em que, nas sociedades modernas, a hegemonia tem de ser construída, contestada, disputada e afinal ganha em vários campos diferentes, enquanto as estruturas do Estado moderno vão-se tornando cada vez mais complexas e os pontos de antagonismo social se proliferam.
Assim, uma das coisas mais importantes que Gramsci fez por nós foi dar-nos uma concepção profundamente expandida da própria política, e, assim, também do poder e da autoridade. Não se pode, depois de Gramsci, regredir ao velho sentido estreito da política eleitoral ou política partidária, nem ao que se entendia como a ocupação do poder do Estado, como constituindo o fundamento da política moderna em si. Gramsci compreende que a política é um campo muitíssimo mais vasto; e que, especialmente em sociedades como essas que conhecemos, os pontos nos quais se constitui o poder serão sempre os mais variados. Estamos vivendo o momento da máxima proliferação dos locais de poder e de antagonismo na sociedade moderna. A transição para essa nova fase, para Gramsci, é decisiva. Coloca diretamente na agenda política as questões de liderança moral e intelectual, o papel educacional e formativo do Estado, as “trincheiras e fortalezas” da sociedade civil, a questão crucial do consentimento das massas e a criação de um novo tipo ou nível de civilização, uma nova cultura. Traça a linha divisória entre a fórmula da “Revolução Permanente” e a fórmula da “hegemonia civil”. É a linha do fio de navalha entre a guerra de movimento e a guerra de posições, onde o mundo Gramsci se encontra com o nosso.
Nada disso significa, como sugerem algumas interpretações, que assim sendo o Estado já não interessa mais. O Estado é sem dúvida absolutamente central para articular as diferentes áreas de contestação, os diferentes pontos de antagonismo, num regime de governo. O momento quando se obtém suficiente poder para organizar um projeto político central é decisivo, porque então se pode usar o Estado para planejar, apressar, incitar, solicitar e punir, para dar forma comum a vários sítios de poder e consentimento em um único regime. Esse é o momento do “populismo autoritário” – com o thatcherismo simultaneamente ‘por cima’ (no Estado) e ‘por baixo’ (lá no chão, com a pessoas).
Nem mesmo nesse momento a senhora Thatcher comete o erro de supor que o Estado capitalista teria um caráter político único e unificado. Está plenamente consciente de que, por mais que o Estado capitalista seja articulado para assegurar condições históricas, de longo prazo, para a acumulação de capital e a lucratividade, e ainda que seja o guardião de determinado tipo de civilização e cultura burguesa e patriarcal, o Estado capitalista é, e continuará a ser, arena de contestação e disputa.
Isso significa que o thatcherismo é, afinal, simplesmente ‘expressão’ da classe dominante? Claro que Gramsci sempre dá lugar central às questões de classe, alianças de classes, luta de classes. No que Gramsci diverge das versões clássicas do marxismo é que não vê a política como uma arena que simplesmente reflete identidades políticas coletivas já unificadas, formas de luta já constituídas. A política, para ele, não é uma esfera dependente: é onde as forças e as relações, na economia, na sociedade, na cultura, têm de ser trabalhadas ativamente para produzir formas particulares de poder, formas de dominação. Essa é a produção da política – política como produção. Essa concepção da política é fundamentalmente contingente, fundamentalmente aberta, sem fim pré-definido. Não há lei da história que possa prever qual tem de ser, inevitavelmente, o resultado de uma luta política. A política depende das relações de forças num dado momento. A história não está à espera nas coxias, para apanhar nossos erros e convertê-los em inevitáveis sucessos. Você perde porque você perde porque você perde.
O ‘bom-senso’ das pessoas existe, mas é só o começo, não o fim, da política. O ‘bom-senso’ não garante nada. Na verdade, o que Gramsci disse foi: “novas concepções têm posição extremamente instável entre as massas populares”. Não há sujeito unitário de história. O sujeito é necessariamente dividido, um conjunto heterogêneo: metade Idade da Pedra, outra metade contendo “princípios de ciência avançada, preconceitos que nos chegam de todas as fases passadas da história, intuições de uma filosofia futura”. Tudo isso luta dentro das cabeças e dos corações das pessoas, para chegar a um modo de se articularem, todas elas, politicamente. E, claro, é possível recrutá-las para projetos políticos muito diferentes.
Especialmente hoje, vivemos numa era na qual as velhas identidades políticas estão colapsando. Não podemos imaginar mais que o socialismo possa vir com aquela imagem do sujeito uno, indiviso, singular, que nos habituamos a chamar de “O Homem Socialista”. Esse Homem Socialista, uma só mente, um só conjunto de interesses, um só projeto, morreu. E já vai tarde. Quem precisa ‘dele’ hoje, ou daquele investimento num período histórico específico, com o específico senso de masculinidade ‘dele’, com sua identidade masculina assegurada num específico conjunto de relações familiares, em uma só e específica identidade sexual? Quem precisa ‘dele’ como identidade singular, por meio da qual se interpreta a grande diversidade de seres humanos e culturas étnicas que habitam nosso mundo que entra no século 21? Esse ‘ele’ está morto: já era.
Gramsci já tinha os olhos postos num mundo que ia se tornando mais e mais complexo. Viu a pluralização das modernas identidades culturais, que emergia entre as linhas de desenvolvimento histórico desigual. E propôs a pergunta crucialmente decisiva: quais as formas políticas mediante as quais pode ser construída uma nova ordem cultural, feita dessa “multiplicidade de desejos dispersos, desses objetivos heterogêneos”? Uma vez que as pessoas são assim mesmo, uma vez que não há lei da história que garanta que o socialismo vai se tornar realidade, como poderemos nós encontrar formas de organização, formas de identidade, formas de arregimentação, de alianças, de concepções sociais, que possam ao mesmo tempo se conectar com a vida popular, e simultaneamente, transformá-la e renová-la? Em todo o caso, teremos o que conseguirmos construir: o socialismo não cairá para nós de um alçapão da história, dado de presente por algum deus ex machina.
Gramsci sempre insistiu que hegemonia não é exclusivamente um fenômeno ideológico. Não pode haver hegemonia sem o núcleo decisivo da economia. Por outro lado, que ninguém caia na arapuca do velho economicismo mecanicista, de crer que, se você controlar a economia, trará à vida todo o resto do universo. A natureza do poder no mundo moderno é que ele também é construído em relação a questões políticas, morais, intelectuais, culturais, ideológicas, sexuais. A questão da hegemonia é sempre a questão de uma nova ordem cultural. A questão que desafiava Gramsci em relação à Itália, nos desafia hoje em relação à Grã-Bretanha: qual a natureza dessa nova civilização? Hegemonia não é um estado de graça instalado de uma vez por todas, para todo o sempre. Não é uma formação que incorpora tudo. A noção de “bloco histórico” é precisamente diferente do que se entende como uma classe dominante estabilizada, pacificada, homogênea. Implica uma concepção diferente de como as forças e os movimentos sociais, em sua diversidade, podem ser articuladas num conjunto de alianças estratégicas. Para construir uma nova ordem cultural não é preciso refletir um coletivo já formado, mas modelar um novo coletivo, inaugurar um novo projeto histórico.
Falei até aqui sobre Gramsci à luz do thatcherismo: usando Gramsci para compreender a natureza e a profundidade do desafio que o thatcherismo e a nova Direita impõem à esquerda, à vida e à política dos britânicos. Mas, ao mesmo tempo, inevitavelmente, falei também sobre a esquerda.
Ou talvez, dizendo melhor, não falei de esquerda alguma, porque a esquerda, na sua modalidade trabalhista organizada, não parece ter a mínima ideia do que seria necessário para articular um novo projeto histórico. Parece que a esquerda não compreende, absolutamente, a natureza necessariamente contraditória dos sujeitos humanos, das identidades sociais. Parece que não consegue compreender a política como produção. Não vê que é possível conectar-se com os sentimentos comuns e as experiências ordinárias que as pessoas conhecem na vida de todos os dias, e, ao mesmo tempo, articulá-los numa direção progressista, numa forma mais moderna e mais avançada de consciência social.
A esquerda não está ativamente buscando, e trabalhando sobre, a enorme diversidade de forças sociais ativas em nossa sociedade. Não vê que está inscrito na própria natureza da moderna civilização capitalista fazer proliferar os centros de poder e, assim, trazer mais e mais áreas da vida para dentro do antagonismo social. Não reconhece que as identidades que as pessoas carregam dentro da cabeça – as subjetividades, a vida cultural, a vida sexual, a vida familiar, a identidade cultural, a saúde, o corpo – tudo se tornou massivamente politizado.
Não acredito, por exemplo, que a atual liderança do Partido Trabalhista compreenda que o seu destino político depende de se conseguirá ou não construir uma política, nos próximos 20 anos, capaz de fazer frente não a um, mas a diversos e diferentes pontos de antagonismo dentro da sociedade; de unificá-los, preservando as diferenças, em um projeto comum. Não me parece que tenham percebido que a capacidade do Partido Trabalhista de crescer como força política depende absolutamente da capacidade que tenha para integrar as energias populares de movimentos muito diferentes; de movimentos fora do Partido, e que o Partido não soube – ou não pôde – integrar ao jogo e que, portanto, o Partido não consegue administrar. Mantém-se ainda uma concepção de política inteiramente burocrática. Se o discurso não vem da boca da liderança Trabalhista, há logo a desconfiança de que ali haveria algo de subversivo. Se a política energiza as massas para que desenvolvam novas demandas, é interpretado como sinal ‘certo’ de que os nativos estão agitados. Seria hora então de demitir ou depor ou espancar uma meia dúzia. Deve-se voltar àquela velha ficção, “eleitor tradicional do Trabalhismo”: àquela noção pacificada, Fabiana, de política, segundo a qual as massas colocam os especialista para dentro do poder, e então os especialistas fazem algo pelas massas… mas só depois, muito, muito depois. É a concepção hidráulica de política.
Essa concepção burocrática de política nada tem a ver com a mobilização de uma variedade de forças populares. Não tem qualquer concepção de como as pessoas ganham poder ao fazer algo: antes de tudo, em relação aos seus próprios problemas imediatos. E então esse poder conquistado expande suas próprias capacidades e ambições políticas, de tal modo que começam a pensar novamente sobre como seria mandar no mundo… As políticas desses burocratas da política deixaram de ter qualquer conexão com a mais moderna de todas as resoluções: a decisão de aprofundar a vida democrática.
Sem aprofundar a participação popular na vida cultural nacional, as pessoas comuns não têm a experiência de realmente mandar em alguma coisa dentro da própria vida. Precisamos readquirir a noção de que a política serve para expandir as capacidades populares, as capacidades das pessoas comuns. Para fazer isso, o próprio socialismo tem de falar diretamente às pessoas que ele quer dar poder em palavras que as pessoas sintam como suas, que façam sentido para as pessoas comuns do nosso tempo.
Já deu para perceber que não estou falando sobre se o Partido Trabalhista fez bem nessa ou naquela política, numa ou noutra questão. Estou falando sobre a concepção total de política: a capacidade para capturar em nossa imaginação política as vastas escolhas históricas que estão aí, hoje, diante do povo. Estou falando de novas concepções da própria nação: ou será que você ainda acredita que a Grã-Bretanha poderia avançar para o século 21, com aquela concepção de ser ‘inglês’ constituída integralmente da longa e desastrosa marcha imperialista da Grã-Bretanha sobre o planeta? Se você ainda pensa assim, então você não entendeu a profunda transformação cultural indispensável para refazer o que é ser “inglês”. E esse tipo de transformação cultural é, precisamente, o que o socialismo significa hoje.
Qualquer partido de esquerda, por mais que esteja centrado no governo, em vencer eleições, tem diante de si, penso eu, exatamente esse tipo de decisão. O motivo pelo qual não sou muito otimista quanto a capacidade do “partido de massas da classe trabalhadora” entender a natureza da escolha histórica que tem a sua frente, é que suspeito que o Partido Trabalhista ainda acredita que haveria algum espaço para insistir no velho jogo econômico corporativo, incremental, keynesiano. Ainda supõe que poderia voltar para uma pitada de keynesianismo aqui, um pouquinho mais de Estado do bem-estar ali, um tantinho daquela velha ideia fabiana… A verdade é que, embora eu não seja dado a visões cataclísmicas do futuro, honestamente acredito que essa alternativa já não existe mais, que está fechada, exauriu-se. Ninguém mais acredita nela. Suas condições materiais já desapareceram. As pessoas comuns sabem, visceralmente, que a vida não é mais daquele jeito.
O que o thatcherismo propõe, à sua maneira radical, não é “para onde podemos voltar?”, mas “por qual rota temos de seguir adiante?”. À nossa frente há uma escolha histórica: capitular ao futuro neoliberal conservador regressivo, ou inventar outra forma de imaginar o futuro. E nem se preocupem com a senhora Thatcher individualmente; ela se aposentará e se recolherá em Dulwich. Mas há muitos, toda uma 3ª, uma 4ª e uma 5ª gerações de thatcheristas, a postos, perfilados, secos, unidos ombro a ombro numa muralha, à espera de assumir o lugar dela. Estão convencidos de que o socialismo está a um pequeno passo de distância de ser extinto para sempre. Para eles, somos como dinossauros, pensam que pertencemos a uma era remota.
Para eles, com o lento, mas firme, declínio do socialismo, nascerá uma nova era; e eles, esses ‘novos’ homens, literalmente ‘de bens’, possessivos, estarão no comando. Essa gente sonha com alcançar poder cultural real. E o Partido Trabalhista, com sua conversa de “não sacuda o bote”, “não provoque”, “vamos melhorar nas pesquisas”, na verdade, só têm diante de si uma escolha: ou se torna historicamente irrelevante ou se põe a esboçar uma forma inteiramente nova de civilização.
Não digo só “socialismo”, sob o risco da palavra ser tão familiar para você a ponto que pense que estou falando apenas de colocar o velho programa, que todos conhecemos, de volta nos trilhos. Falo aqui sobre uma renovação de todo o projeto socialista, no contexto da moderna vida social e cultural. Falo de alterar as relações de forças – não para que a Utopia seja instalada e tome posse na manhã seguinte, depois das eleições gerais, mas para que as tendências comecem a se mover na direção oposta. Quem precisa de um paraíso socialista onde todo mundo concorde com todo mundo, onde todos sejam exatamente o mesmo? Deus nos livre! Falo de um lugar onde possamos finalmente começar a discussão histórica sobre que novo tipo de civilização que teremos de criar. Essa é a questão. Será possível que as imensas novas capacidades materiais, culturais e tecnológicas, que ultrapassam em muito até os sonhos mais visionários de Marx, e que temos hoje realmente já nas mãos, serão todas elas politicamente hegemonizadas pela modernização reacionária do thatcherismo? Ou podemos tomar todos esses meios de produzir história, de produzir novos sujeitos humanos, e lançá-los na direção de uma nova cultura? Essa é a escolha que está diante da esquerda.
“Temos de destacar” – Gramsci escreveu –, “a importância que os partidos políticos têm no mundo moderno, para elaborar e difundir concepções de mundo, porque essencialmente o que fazem é extrair a ética e a política correspondentes e atuar como se fossem um ‘laboratório’ histórico daquelas concepções…”
STUART HALL foi um teórico cultural e sociólogo britânico-jamaicano que viveu e atuou no Reino Unido a partir de 1951.