Embora seja necessário compartilhar e utilizar todos os conhecimentos para combater a pandemia, foram financiadas empresas que buscavam lucros graças ao seu uso exclusivo. A suspensão das patentes da OMC corrigiria modalidades de produção e utilização do conhecimento que eram carentes desde o início. Mas a resposta a essa pergunta sugere outra: por que cada vez mais se recorre a formas de ciência fechada e monopolizada por grandes empresas, fartamente financiadas pelos países, mesmo quando a natureza global do problema e a necessidade de compartilhamento dos conhecimentos públicos são tão evidentes?
Ugo Pagano, Domani / IHU-Unisinos, 10 de fevereiro de 2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Amanhã a proposta da África do Sul e da Índia, apoiada por muitos outros países, pela suspensão de patentes de vacinas Covid será discutida no conselho Trips da OMC, a organização mundial do comércio. O diretor da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesu, declarou ser favorável a esta medida que, ao invés, vê a oposição de vários países onde operam as empresas detentoras das patentes.
Em defesa das empresas farmacêuticas, costuma-se ouvir que suspender as patentes seria inútil, como comprovaria o fato de que a Moderna já teria liberado sua patente sem que ninguém aproveitasse essa oportunidade. A esse respeito, é bom relatar uma tradução literal do que é apresentado no site da Moderna com data de 8 de outubro de 2020: “Enquanto a pandemia continuar, a Moderna não fará valer suas patentes sobre Covid-19 contra aqueles que produzem as vacinas. Além disso, para eliminar qualquer barreira que pareça ser devida aos direitos de propriedade intelectual, também queremos oferecer a outros uma licença de nossa propriedade intelectual relativa às vacinas Covid-19 para o período sucessivo à pandemia”.
As declarações da Moderna poderiam até demonstrar certa má-fé de quem pensa que o problema está na propriedade intelectual. Embora a empresa estadunidense tenha generosamente declarado que não tomaria medidas legais contra aqueles que violassem suas patentes, nenhuma empresa se apressou em produzir essas vacinas.
Os obstáculos para a produção de uma vacina por múltiplas empresas não residem apenas na patente de outra empresa. Devem-se também às competências profissionais muitas vezes únicas da empresa detentora da patente, a segredos industriais e aos equipamentos frequentemente específicos necessários para a produção. Uma licença compulsória ou suspensão de patente garante que uma empresa não pode privar outras empresas da liberdade de usar certas tecnologias ou fornecer certos produtos. Muitas vezes, isso não é suficiente. Também é necessário que as capacidades de usar essas tecnologias sejam compartilhadas por meio da participação ativa dos detentores de patentes. Em vez de recorrer a segredos comerciais, eles devem compartilhar ativamente conhecimentos e tecnologias e, com a ajuda dos Estados, difundi-los para outras partes da economia.
Incentivos
É justo que as empresas detentoras das patentes sejam devidamente compensadas e também é justo que as empresas a serem envolvidas na produção de medicamentos dos quais terceiros sejam detentores das patentes, aceitem fazer isso graças a condições e remunerações adequadas. Certamente, diante de um grande investimento em plantas industriais e capital humano, a suspensão temporária das ações legais propostas pela Moderna não seria suficiente. Uma licença permanente para determinada área ou a permissão para produzir sem limite de tempo, compensando a empresa que inovou com royalties, certamente seriam os instrumentos mais adequados para se chegar a formas de cooperação voluntária.
Quando não se obtivesse a cooperação voluntária dessas empresas, também existem outros instrumentos que podem ser utilizados. Observando que a Johnson & Johnson e a Merck concordaram em cooperar conforme solicitado, o presidente dos EUA Joe Biden observou que "este é o tipo de cooperação entre empresas estadunidenses que vimos durante a Segunda Guerra Mundial". Biden também se reportou ao Defense Production Act, que remonta à época da Guerra da Coreia, para ajudar, com fundos e outras ajudas federais, as duas empresas a cooperar na produção das vacinas. Numa guerra, como numa pandemia, muitas vezes não se recorre apenas à suspensão das patentes e à proibição de segredos industriais. A cooperação pode ser imposta por governos e, uma vez que essa autoridade é reconhecida, a cooperação muitas vezes surge sem a necessidade de exercê-la.
Neste ponto surge uma primeira questão: a difícil situação que a OMC terá de enfrentar não poderia ter sido evitada desde o início?
A esse respeito, deve-se notar que o problema da patente não ocorreu no caso da vacina Oxford e AstraZeneca. O diretor da OMC, que propôs a suspensão das patentes Covid, elogiou a AstraZeneca por compartilhar as licenças e todas as informações necessárias para uma rápida expansão da produção de vacinas em muitas partes do mundo.
De fato, os pesquisadores de Oxford haviam se empenhado inicialmente a não conceder nenhuma patente exclusiva para sua vacina. Os professores Sarah Gilbert e Adrian Hill foram então induzidos pela Fundação Gates a conceder uma licença exclusiva à AstraZeneca que, no entanto, concedeu licenças a diferentes empresas para diferentes áreas do mundo.
As empresas chinesas têm seguido estratégias semelhantes, cooperando com institutos universitários e permitindo que a vacina seja produzida em muitos países.
Finalmente, o caso da vacina russa Sputnik V lembra o que os pesquisadores de Oxford inicialmente esperavam. De fato, a vacina produzida pelo instituto público de pesquisas Gamaleya em Moscou é produzida sob licença por várias empresas ao redor do mundo, sem a intermediação de uma grande empresa farmacêutica e, se aprovada pela EMA, em breve poderia ser produzida também na Itália. Essas vacinas, para as quais universidades e outras instituições públicas têm contribuído de forma decisiva, estão tão difundidas que sugerem uma resposta afirmativa à nossa primeira pergunta: existem formas de organização da indústria farmacêutica que podem evitar o problema que a OMC está enfrentando.
Na verdade, o problema surge do fato de que, embora seja necessário compartilhar e utilizar todos os conhecimentos para combater a pandemia, foram financiadas empresas que buscavam lucros graças ao seu uso exclusivo. A suspensão das patentes da OMC corrigiria modalidades de produção e utilização do conhecimento que eram carentes desde o início. Mas a resposta a essa pergunta sugere outra: por que cada vez mais se recorre a formas de ciência fechada e monopolizada por grandes empresas, fartamente financiadas pelos países, mesmo quando a natureza global do problema e a necessidade de compartilhamento dos conhecimentos públicos são tão evidentes?
O que a OMC poderia fazer
Parte do problema está precisamente na organização da economia mundial e a OMC poderia tomar providências que vão além do problema contingente das vacinas Covid. O problema que a OMC terá de discutir é apenas um detonador que evidenciou as deficiências das instituições da economia mundial. Mesmo quando é importante compartilhar conhecimentos, determina-se um comportamento oportunista dos Estados nacionais que preferem excluir, em conluio com suas empresas, os demais Estados dos benefícios de seus investimentos.
Esse comportamento é então prejudicial para todos porque o conhecimento, ao contrário de muitos outros bens, pode ser compartilhado por todos sem custos adicionais. Esse free-riding também cria um problema de concorrência desleal entre os diferentes estados que a OMC poderia mitigar tornando obrigatório um investimento mínimo em pesquisa científica disponível para todos os países.
A suspensão das patentes é apenas parte do problema. É preciso também encontrar formas de cooperação que favoreçam o maior compartilhamento dos conhecimentos. Essa proposta que o Fórum Desigualdades e Diversidade fez há cerca de dois anos poderia ser feita por aqueles que representam nosso país na OMC.
Como já dizia o Presidente Thomas Jefferson há mais de dois séculos, o conhecimento é como a chama de uma vela: pode-se acender muitas outras velas com ela sem diminuir a chama. Em muitos casos, manter todas apagadas exceto uma que se quer que brilhe mais do que as outras, nos impede de investir adequadamente naquele que é o bem comum mais importante de nossa espécie.
Ugo Pagano é economista italiano e professor de Política Econômica na Universidade de Siena, onde também é diretor do programa de doutorado em Economia e presidente da Escola de Pós-Graduação S. Chiara.