No domingo, 16 de junho de 2019, um apagão deixou quase toda a Argentina sem energia elétrica, mas também o Uruguai e o Paraguai. A experiência ficou na memória da maioria dos cidadãos do país e também na da socióloga e escritora Maristella Svampa e do mestre em Sistemas Ambientais Humanos e professor universitário Pablo Bertinat: “Foi uma experiência de colapso”, diz ela e a lembrança vem à mente porque ambos acabam de organizar o livro La transición energética en la Argentina (Siglo XXI), um roteiro para entender os projetos em disputa e as falsas soluções.
Em entrevista para a revista Ñ, os autores explicam a necessidade de se pensar em um modelo energético que cuide da sustentabilidade do planeta e invertem a equação: “É o sistema econômico que precisa se adaptar à crise climática, caso realmente queiramos evitar um colapso maior. É algo evidente, mas implica uma mudança de paradigma. Temos que repensar a economia para que ela se adapte aos limites naturais e ecológicos do planeta”, diz Svampa. E não será a única coisa que dirá.
Ines Hayes entrevista Maristella Svampa e Pablo Bertinat, Clarín-Revista Ñ, 15 de abril de 2022. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Na introdução do livro, você se refere ao apagão simultâneo registrado em 2019, em vários países, e à necessidade de recorrer a outras formas de produção de energia neste momento de “catástrofe climática”. Quais seriam essas formas alternativas?
Maristella Svampa: O apagão que experimentamos naquele Dia dos Pais de 2019 nos permitiu ver a cauda do monstro no escuro. São essas experiências de colapso, hoje passageiras, mas cada vez mais frequentes no contexto da crise climática, que podem servir de gatilho para pensar sobre a importância da energia para as nossas vidas e a necessidade de mudar o paradigma energético atual.
Durante aquele apagão, havia apenas um local, Ticino, em Córdoba, que usava biomassa e que pelo menos continuou com energia. São essas experiências marcantes, ligadas à expansão das energias renováveis, que podem abrir horizontes de sustentabilidade a nível local e regional, e estimular a implementação de um novo paradigma que apoie outra visão de energia, uma concepção pública e participativa que a pense como um direito humano básico.
Por isso, você considera que está na hora de criar um novo paradigma energético. Isso é possível a médio prazo, levando em conta a guerra na Ucrânia?
Pablo Bertinat: Ao contrário de outras transições energéticas na história da humanidade, esta é a primeira vez que caminhamos para um cenário com menos energia disponível. Isso acontece basicamente pela necessidade de abandonar os combustíveis fósseis devido à crise climática e à escassez de materiais e minerais, para aproveitar as energias renováveis na quantidade que a demanda atual exige.
A pandemia e agora a guerra colocam sobre a mesa muitas dessas questões e, sobretudo, uma crise do sistema energético global. Mas a crise não é só um problema de tipo ou quantidade de energia, é um problema pela desigualdade, os conflitos energéticos e o aprofundamento do impacto do extrativismo energético sobre os territórios.
É o momento de colocar em debate a questão da inviabilidade do atual sistema energético, superando a atual visão corporativa e tecnológica da transição. Uma das opções que se abre neste contexto de guerra é a de poder pensar muito mais em alternativas locais e regionais, de buscar nos desvincular da globalização energética e produtiva. Os recursos regionais disponíveis na América Latina e as capacidades produtivas e tecnológicas nos permitem pensar em um processo de transição justa e popular autônomo.
Por que a concepção de energia como bem de uso mercantilizado apresenta limitações?
Pablo Bertinat: A concepção mercantil capitalista da energia a submete às leis do mercado, ou seja, estimula a privatização, facilita a concentração dos processos de geração e distribuição e se constitui como uma ferramenta para a obtenção de renda. Acreditamos que a transição não significa apenas menos combustíveis fósseis e mais renováveis, mas que devemos ser capazes de usar menos energia globalmente.
Isso é impossível de ser alcançado sob uma lógica de mercado que pressiona imperativamente para que, todos os dias, seja vendido mais energia. Somente uma lógica de direitos pode articular um processo alternativo de transição em que a desigualdade esteja no centro. A lógica mercantil é um grande obstáculo para a construção de um sistema energético mais transparente e democrático, que coloque nas mãos dos cidadãos a gestão e a tomada de decisões sobre o futuro energético.
De que forma as relações sociedade-natureza podem ser pensadas fora dessa concepção mercantilista da energia?
Maristella Svampa: Concebemos a energia como um direito humano e também como um bem comum. A transição energética, para que seja justa e popular, tem de garantir não só a diversificação da matriz energética (mais energias renováveis, menos energias fósseis; o que se conhece como “descarbonização”), mas também uma mudança do sistema energético para um justo, público, descentralizado, participativo e solidário.
Isso se coloca como necessário para superar as perspectivas hegemônicas que continuam percebendo o desenvolvimento de modo instrumental e produtivista, associado a um crescimento ilimitado. Para isso, é fundamental adotar um enfoque relacional que coloque no centro a interdependência, a ecodependência e o cuidado da vida, como o alimentado pelos povos originários e os feminismos ecoterritoriais.
Grande parte da disputa passa pelo entendimento de que não podemos mais pedir que a natureza, o meio ambiente, os ecossistemas, a crise climática, já severamente impactados por certas atividades econômicas (como a produção de energia fóssil), se adaptem à economia. É o sistema econômico que precisa se adaptar à crise climática, caso realmente queiramos evitar um colapso maior. É algo evidente, mas implica uma mudança de paradigma.
Temos que repensar a economia para que ela se adapte aos limites naturais e ecológicos do planeta. E não continuar pensando que é o planeta que precisa se adaptar às chamadas “atividades produtivas”, que hoje estão destruindo tantos ecossistemas estratégicos. A problemática da energia não é alheia, ao contrário, é central nesse esquema relacional.
A chamada “civilização do petróleo” está acabando?
Pablo Bertinat: Entendemos que deveria acabar, o problema é que a civilização do petróleo é a civilização do crescimento ilimitado, da desigualdade, da acumulação, do extrativismo. Isso não vai acabar por causa do fim do petróleo. Não é apenas um problema das fontes utilizadas. O abandono do petróleo é uma condição necessária, mas não basta para a transição.
Como dizíamos, são necessárias outras lógicas de relacionamento, repensar o modelo de produção, o modelo de consumo. O sistema energético é o grande limitador para o desenvolvimento, não podemos ter qualquer modelo de desenvolvimento que não seja compatível com os recursos disponíveis, os limites e a eliminação das desigualdades.
Nesse contexto, qual é o papel inovador dos movimentos socioambientais? E dos sindicatos?
Maristella Svampa: Noções como as de transição socioambiental, justiça climática e transição justa começam a abrir caminho nas lutas socioambientais. Na América Latina, pensar a transição a partir dos movimentos sociais traz o desafio de propor alternativas ao neoextrativismo dominante, elaborar estratégias que marquem o caminho para uma sociedade pós-extrativista, sobretudo no campo energético, devido à dependência de combustíveis fósseis.
Mas a transição não é apenas energética, é também social e produtiva. A nível global, os sindicatos colocaram na agenda a necessidade de uma “transição justa”, que contemple não só a reconversão verde da indústria, mas também a criação de emprego decente e o reconhecimento dos direitos trabalhistas, bem como a defesa do caráter público das empresas. Mas a realidade entre os países do norte e do sul é muito diferente.
Não por acaso, como analisa no livro Cecilia Anigstein, na América Latina, os sindicatos parecem ser os grandes ausentes dos conflitos socioambientais. Ainda que haja casos de algumas centrais sindicais (no Uruguai e na Argentina) que articulam a linguagem de defesa do público, nem sempre adotam a linguagem de valorização relacional que prevalece nos movimentos socioambientais. Essa distância faz parte da batalha cultural que temos pela frente: a articulação das diferentes linguagens de valorização entre movimentos socioambientais e sindicatos, em prol de uma transição justa.
Por que o lítio é considerado peça central da transição energética?
Maristella Svampa: Como produto final, as baterias de lítio são armazenadoras de energia e servem para a eletromobilidade, por isso são tão apreciadas para sair de uma mobilidade baseada em combustíveis fósseis. O principal problema com a exploração de lítio está em que é uma mineração com água. Sua extração das salmouras exige enormes quantidades de água que são impossíveis de obter em regiões áridas. Isso coloca em risco os ecossistemas, a vida silvestre e os meios de vida – agricultura e pastagem – das pessoas que vivem lá, sobretudo das comunidades indígenas de suas áreas argentinas e chilenas.
Consequentemente, devido ao que já está acontecendo na Argentina com o lítio, sabemos que não é possível simplesmente entrar na onda de qualquer definição de transição. Isso seria endossar, novamente, uma falsa solução, que garantiria uma transição energética corporativa que, além disso, beneficiaria os países centrais, os mais ricos, à custa dos territórios e populações do Sul.
Assim, o que acontece com o lítio, que no livro Melisa Argento, Ariel Slipak e Florencia Puente caracterizam como um “modelo de acumulação por desfossilização”, nos alerta para a urgência de debater quais são as orientações e conteúdos que devem estar presentes em uma transição justa no sul global, para que nossos territórios não sejam novamente zonas de sacrifício, agora em nome da transição energética.
Vocês dizem que é possível pensar que a transição, por causa da mudança climática tão acelerada, certamente não será gradual, nem ordenada. Poderiam detalhar?
Pablo Bertinat: As transições são processos, levam tempo. O problema é que em si a transição é um espaço em disputa. As disputas ocorrem em várias frentes, no conceitual em relação à necessidade de encontrar outros modos de civilização em conformidade com os direitos das pessoas e os limites e direitos da natureza.
E essas disputas também ocorrem nos territórios, na defesa diante de uma nova pressão por recursos, pela visão corporativa da transição. E ocorrem de forma ainda mais escancarada em conflitos geopolíticos globais. A guerra atual é um exemplo: aqueles que mais consomem energia e menos possuem à disposição travam literalmente uma batalha pelos recursos.
Certamente, na transição isso se intensificará e é uma grande preocupação. Nossa visão almeja colocar a energia na esfera do público, fortalecer as opções do público. Nisso, o papel dos Estados é importante, mas entendemos como ainda mais importante a necessidade de fortalecer outras formas do público, como o cooperativo, o comunitário e o local como opções para a construção da política, da propriedade e da gestão.