Os Estados Unidos estão de saída do Afeganistão, mas não falta quem queira ocupar o espaço que fica em aberto. Não há vazios. É assim na política doméstica e muito mais em política internacional.
José Manuel Rosendo, meu Mundo minha Aldeia, 5 de agosto de 2021
A confusão instalada no Afeganistão devido a não ter havido um verdadeiro diálogo intra-afegão (se é que isso teria sido possível…) que, pelo menos, tentasse um entendimento mínimo que permitisse alguma estabilidade pós-retirada, escancara as portas a todas as interferências. Enquanto no Catar, Estados Unidos e Taliban discutiam a retirada das forças militares estrangeiras, o governo afegão ficava em Cabul. O resultado não augura nada de bom para os próximos tempos.
As potências com interesse em ocupar o espaço que os Estados Unidos deixam em aberto há muito que estão alinhadas. São as do costume. De há muito também que são referidas enormes riquezas no subsolo afegão e entre elas o lítio.
China e os outros
A China prepara o terreno em duas frentes: seja qual for o vencedor, Pequim prepara a relação como o novo poder afegão. No final de Julho, o Mullah Abdul Ghani Baradar, que foi número 2 de Mullah Omar quando os Taliban governaram o Afeganistão, esteve em Tianjin num encontro com o Ministro dos Negócios Estrangeiros chinês. O governante chinês disse que os Taliban são uma importante força política e militar esperando que possa ter um importante papel na reconciliação e reconstrução do país. A China pretende estender até ao Afeganistão o corredor económico que mantém com o Paquistão. Não são conhecidas declarações do dirigente taliban, mas alguns dias antes foi citado como tendo considerado a China como “um amigo bem-vindo”.
Praticamente ao mesmo tempo que a China recebia a delegação Taliban em Tianjin, o embaixador chinês em Cabul encontrava-se com Abdullah Abdullah (antigo PM e antigo MNE), líder do Conselho Superior para a Reconciliação Nacional afegã. Abdullah Abdullah assegurou que a China se comprometeu a apoiar um acordo político inclusivo e o fim imediato do conflito. Em troca, a China “só” pede que os Taliban cortem relações com o Partido (ou Movimento) Islâmico do Turquestão Oriental, organização com implantação na região de Xinjiang (de maioria Uigur e que faz fronteira com o Afeganistão) e que Pequim considera terrorista. A China foi o mais recente contacto, mas na rota diplomática dos Taliban já outros foram feitos e fica demonstrado que vai longe o tempo em que apenas 3 países reconheceram o Emirado Islâmico do Afeganistão.
Nações vizinhas
O Jornal “Asia Times” dá conta que um porta-voz Taliban assegurou ao MNE chinês que o território afegão não servirá de abrigo para grupos que ponham em causa a segurança das nações vizinhas. Isto agrada à China e à Rússia e o mesmo jornal nota que isso significa na prática que o verdadeiro mediador de um possível acordo intra-afegão é a Organização de Cooperação de Xangai, liderada pela parceria Rússia-China.
O mesmo jornal refere que para obter esse acordo, a Organização de Cooperação de Xangai está a trabalhar num acordo político Cabul-Taliban assente num pacote abrangente de integração económica. A organização pretende um Afeganistão estável que não comprometa um futuro corredor económico para ligar Índia e Rússia aos Estados da Ásia Central. Conciliar Taliban e o actual afigura-se uma tarefa hercúlea a necessitar de muito investimento e muitas malas com muitos milhões de dólares. Aventam-se várias soluções, até de divisão de poder por diferentes territórios, de modo a que todos garantam o seu quinhão, mas ninguém pode garantir como vai terminar a guerra que varre o Afeganistão e qual o modelo que vai governar o país.
A guerra (talvez) antes da paz
À hora a que este texto é escrito, Cabul procura responsáveis por mais um atentado e os Estados Unidos dizem que pressionam o Governo de Cabul para retomar negociações com os Taliban. Enquanto não se sentam à mesa, como acontece em todas as guerras antes das negociações de paz, as forças envolvidas tentam obter a posição militar mais forte possível de modo q terem mais força negocial. O emissário norte-americano, Zalmay Khalilzad, admite que as posições estão extremadas e diz que os Taliban exigem controlar um novo governo, enquanto o actual governo admite integrar os Taliban. Não deixa de ser curioso ver Zalmay Khalilzad (um afegão nascido em Mazar-e-Sharif) ser citado a dizer que o Governo afegão tem de ser realista e compreender que não há solução militar para a guerra no Afeganistão.
Falta portanto saber como será possível conseguir uma “voz de comando” que represente o Afeganistão, sendo que a realidade tem mostrado um país dominado por “senhores da guerra”. O actual Governo e os Taliban estão longe de ser as únicas forças representativas do xadrez afegão e, para além disso, desestabilizar o Afeganistão nunca foi uma tarefa difícil. Os Estados Unidos que o digam.
Artigo de José Manuel Rosendo, publicado em “meu Mundo minha Aldeia”