Os governos do centro da Europa foram avisados dias antes do que podia acontecer e não fizeram o que deviam. Durante anos não implementaram medidas de prevenção. E a política neoliberal de ajuda à maximização de lucros das multinacionais dos combustíveis fósseis e do agro-negócio conduziu-nos à beira do abismo.
Daniel Tanuro, Esquerda.net, 20 de julho de 2021
No momento em que escrevo, as terríveis inundações que atingiram a Bélgica, uma parte da Alemanha e os Países Baixos fizeram mais de cem mortos. Dezenas de milhares de pessoas tiveram de ser deslocadas, perderam tudo e ficarão para sempre traumatizadas. Outros não tiveram sequer esta “sorte”, infelizmente, e o grande número de desaparecidos (1.300 na Alemanha) não deixa dúvidas: no final, o balanço macabro será muito, muito mais pesado. Os danos materiais são imensos, sem falar dos impactos em termos de poluição das águas e dos solos (por hidrocarbonetos, metais pesados, PCB, plásticos, esgotos, etc).
É a isto que se parecem as alterações climáticas
É praticamente certo que esta catástrofe é uma manifestação das alterações climáticas provocadas pelas emissões de gases com efeito de estufa (devidas principalmente à combustão dos combustíveis fósseis). No limite, se se tratasse de um acontecimento isolado, a dúvida seria legítima. Mas não se trata de um acontecimento isolado, muito pelo contrário. Primo, estas chuvas excecionais seguem-se a dois anos de canícula e de secas também excecionais (lembrete: a canícula de 2020 fez 1.400 na Bélgica…). Secundo, o facto deste dilúvio na Europa ocidental ter coincidido com uma vaga de calor mortal e sem precedentes no Canadá (na Colúmbia Britânica) não é fruto do acaso: é muito provável que os dois fenómenos estejam ligados e derivem da perturbação da corrente de jato circumpolar (ventos potentes que circulam a grande altitude à volta do polo). Tertio, a multiplicação dos fenómenos metereológicos extremos (tempestades e ciclones mais violentos, vagas de calor e vagas de frio mais intensas, secas e incêndios sem precedentes, chuvas, inundações e deslizamentos de terras…) é indiscutível e corresponde perfeitamente às consequências do aquecimento tal como foram projetadas pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas desde o seu primeiro relatório… há mais de trinta anos.
Os governos ignoraram os avisos da meterologia
Os serviço metereológicos dos países em causa tinham diagnosticado a presença de uma “gota fria” sobre as nossas regiões – uma depressão isolada e estável, associada a uma massa de ar frio. Sabemos que este género de fenómeno provoca precipitações abundantes. Sabemos que estas podem durar vários dias, dado que a depressão está estacionária. Neste caso, a ameaça mais grave dado que a “gota fria” estava envolvida por enormes massas de ar quente, carregadas de grandes quantidades de vapor de água.
O aviso tinha sido lançado pelos meteorologistas e hidrólogos: um acontecimento excecional estava prestes a ocorrer. Os dois, três dias antes do início do dilúvio poderiam ter sido/deveriam ter sido aproveitados para analisar a ameaça, tomar medidas de urgência, mobilizar a proteção civil e as forças armadas, prevenir a população, evacuar as habitações mais ameaçadas. Isto não teria impedido que as inundações acontecessem mas os danos teriam sido limitados e, sobretudo, ter-se-iam evitado perdas humanas. A experiência de Cuba com os ciclones confirma: a prevenção faz a diferença. Mas, aqui, ninguém a fez. Uma vez mais (como face à Covid-19) os avisos foram ignorados. As razões são idênticas: os governos estão obsecados com a economia, a sua prioridade é “a competitividade” das empresas, recusam assimilar o facto de que a humanidade entrou numa catástrofe climática (na Bélgica, enquanto as nuvens se acumulavam, uma parte da “classe” política achava mesmo mais importante difundir boatos sobre as ligações entre a senhora Haouach e a Fraternidade Muçulmana).
Um conjunto de factores estruturais agravantes
Para além desta impreparação, a amplitude das inundações e das suas consequências foi multiplicada por uma série de factores estruturais de ordens diversas. Alguns exemplos: as restrições orçamentais (na proteção civil e nos bombeiros, nomeadamente – obrigado Jan Jambon!); a betonagem de solos (que impede a percolação das águas); a alteração de cursos de água e a drenagem de zonas húmidas (que desempenham papel de esponja); a expansão urbana; a gestão das águas pluviais (enviadas para os esgotos, passam pelas estações de tratamento antes de reforçarem os cursos de água); a especulação fundiária (que incita a construir em zonas inundáveis); a política agrícola (o encorajamento das grandes explorações em monocultura) e as prática de cultura (a lavoura profunda, a falta de cobertura dos solos, o desaparecimento de sebes). Em todos estes planos, medidas de prevenção indispensáveis deveriam ter sido implementadas há anos – e deverão sê-lo sem mais atrasos para evitar novos dramas.
Mas aquilo a que chamamos a “adaptação” necessária à parte irreversível das alterações climáticas não deve servir para evitar o fundo do problema: o próprio clima. É preciso sair o mais rápido possível dos combustíveis fósseis e, para isso, não basta aumentar a parte das energias renováveis: é preciso romper com o produtivismo capitalista, mudar completamente o modo de produção, de consumo e de relação com a natureza e fazê-lo através de um plano público.
Um empréstimo de 2.500 euros por lar é um insulto às vítimas
O governo belga decretou um dia de luto nacional, apelou à solidariedade e à unidade mas, com as suas declarações, mantém na ignorância uma parte da população que não tem consciência das alterações climáticas. O primeiro-ministro evocou um “acontecimento excecional, sem precedentes”. Ora, o fundo do problema é que, com o aquecimento, “o excecional” se torna a regra, o “sem precedentes” torna-se banal. Vê-se aqui bem a ligação entre “saber” e “poder”: sublinhar o carácter “excecional” das inundações sem falar do clima permite aos políticos guardar o monopólio das decisões e ao mesmo tempo fugir das suas responsabilidades. Sem o dizer explicitamente, fazem passar a ideia de que a catástrofe é “natural” apesar de não o ser.
É claro que este discurso faz o jogo dos negacionistas do clima (representados no governo por David Clarinval, o vice-primeiro-ministro do partido liberal Movimento Reformador – o presidente deste partido GL Bouchez achou que era boa altura para se insurgir contra a ligação feita por “alguns”, como o climatologista JP Van Ypersele, entre inundações e aquecimento). Mas todas as tendências políticas que estão no poder têm um certo interesse em manter este discurso. Falar de “catástrofe natural” permite varrer para debaixo do tapete a inação climática das sucessivas coligações de governo. Se as vítimas tivessem uma ideia clara da responsabilidade dos governo, o empréstimo de 2.500 euros por lar sinistrado (uma decisão do governo valão) revelar-se-ia como uma injustiça e até um insulto às vítimas. Em vez deste empréstimo que tem de ser reembolsado, as populações têm o direito de exigir uma reparação digna desse nome, financiada pelas empresas, os bancos, os acionistas que continuam a investir nos combustíveis fósseis.
Inundados e sedentos do mundo inteiro, uni-vos!
Para além da solidariedade imperiosa com os sinistrados, é preciso tirar lições desta tragédia. E a lição número um é que o momento é grave, não temos mais nenhum minuto a perder. Medidas mais enérgicas devem ser tomadas urgentemente para parar a catástrofe climática, sem isso esta catástrofe transformar-se-á num cataclismo.
A lição número dois é que não podemos confiar nos governos: há mais de trinta anos que nos dizem que estão a agir sobre o clima e não fizeram quase nada. Ou melhor sim, fizeram muito: a sua política neoliberal de austeridade, de privatizações, de ajuda à maximização dos lucros das multinacionais dos combustíveis fósseis e de apoio ao agro-negócio conduziu-nos à beira do abismo. “Estamos no mesmo barco”, dizem os decisores políticos. Não: no Norte como no Sul, os ricos escapam e enriquecem com as catástrofes das quais são os principais responsáveis (os 10% mais ricos emitem mais de 50% do CO2 global). As classes populares pagam a fatura porque confrontadas ao mesmo tempo com o agravamento do aquecimento e com o aprofundamento das desigualdades sociais. Os mais pobres pagam a dobrar, triplamente quando não têm outra solução que não emigrar colocando em risco a sua vida, na esperança legítima de uma vida melhor. As alterações climáticas são uma questão de classe.
A lição número três é que as vítimas desta política – pequenos camponeses, jovens, mulheres, trabalhadores, povos indígenas – devem unir-se para além das fronteiras. Nada distingue os pobres à deriva na água em Pepinster ou em Verviers dos pobres à deriva na água em Karachi ou Dacca (1/3 do Bangladesh debaixo de água em 2020 depois da perturbação das monções pelas alterações climáticas!). Não caiamos na armadilha do governo que levará o cinismo ao ponto de beneficiar das inundações para desviar a atenção dos migrantes sem papéis em greve de fome em Bruxelas desde há mais de 50 dias e que estão em perigo de morte.
O não-dito criminoso da UE: a “ultrapassagem temporária” dos 1,5°C
Nos próximos dias, escutar-se-ão os governantes jurar a pés juntos que as inundações dramáticas confirma a sua vontade de tornar o capitalismo verde, que a União Europeia está na vanguarda e que tudo seria melhor se os outros países do mundo seguissem o seu exemplo. A lição número quatro é não deixar que os governos nos embalem com este discuros. O capitalismo verde é uma farsa. O plano para o clima da União Europeia está repleto de falsas soluções (plantar árvores), de truques de ilusionismo (não contabilizar as emissões do transporte aéreo e marítimo mundial), de tecnologias perigosas (a captura/sequestro de carbono, o nuclear, as culturas energéticas em milhões de hectares), de novas injustiças coloniais face ao Sul (as “compensações carbono”, as taxas nas fronteiras da UE) e de novas medidas de mercado anti-sociais (o pagamento dos direitos de emissão de carbono nos setores da construção e da mobilidade que as empresas farão repercutir sobre os consumidores).
A verdadeira finalidade deste plano é tentar a quadratura do círculo: combinar o crescimento capitalista e a estabilização do clima. O seu não-dito é o projeto insensato de “ultrapassagem temporária do limiar de 1,5°C de aquecimento, compensado posteriormente por um hipotético “arrefecimento” tecnológico do planeta”. Provocadas por um aquecimento de 1,1°C, as inundações na Bélgica e na Alemanha, tal como outras catástrofes nos quatro cantos do globo, deixam imaginar as consequência de pesadelo desta “ultrapassagem temporária”. No próximo dia 10 de outubro, em Bruxelas, façamos da manifestação pelo clima um tsunami popular a favor de uma outra política. Uma política do bem comum, uma política democrática e social para satisfazer as necessidades humanas reais, uma política prudente e amante do cuidado sem fronteiras pelas pessoas e pela nossa mãe, a Terra.
Daniel Tanuro é engenheiro agrónomo e nasceu na Bélgica. Fundou a associação “Clima e Justiça Social”. Tem artigos escritos sobre questões ambientais em várias revistas e jornais. É também autor de vários livros, nomeadamente “O impossível capitalismo verde” que se encontra traduzido em português(link is external) pelas edições Combate e “Le moment Trump”, Demopolis, 2018 que ainda não tem tradução portuguesa.
Texto publicado originalmente no site da Gauche Anticapitaliste. Traduzido por Carlos Carujo para o Esquerda.net.