Pedófilos satanistas dominam os governos mundiais. Kim Jong-un é um dublê. Trump, o salvador. Tudo isso parece risível, mas quando os seguidores da seita invadiram o Capitólio, o fenômeno se tornou uma ameaça real.
Sergio Fanjul, El País Brasil, 12 de janeiro de 2021
Como em um iceberg, por baixo do Estado visível há um Estado profundo (deep state) que exerce o poder longe dos olhos dos cidadãos. Os membros desse Estado profundo são adoradores de Satanás e, entre suas mil maldades, costumam manter redes de pedofilia e beber sangue de bebês (pensando que assim obterão a eterna juventude). É uma conspiração que envolve membros do Partido Democrata norte-americano, como Hillary Clinton e Barack Obama, astros de Hollywood, como Tom Hanks, bilionários como Bill Gates e George Soros e até o papa Francisco. Mas há um salvador que vai destruir o Estado profundo e romper nossos grilhões: Donald Trump.
Esta sinistra teoria conspiratória, conhecida como QAnon e vinculada à extrema direita, parece delirante, mas ganha cada vez mais adeptos. Embora nos faça rir, talvez devesse nos dar medo: o FBI já a qualificou como uma ameaça de terrorismo doméstico. Algumas das pessoas que invadiram o Congresso norte-americano na semana passada são adeptas destas crenças ― por exemplo, o homem que se tornou a estrela do incidente, conhecido como Yellowstone Wolf, disfarçado com silhueta do Jamiroquai e rosto de Axl Rose, tem um canal no YouTube dedicado a difundir essas teorias.
“Nenhuma construção conspiratória é inócua, pelo contrário: assim que se torna ideologia de Estado ou de grupos terroristas ou de fanáticos, sejam eles religiosos e/ou nacionalistas, conduzem a massacres, matanças, suicídios coletivos e até genocídio”, diz Alejandro M. Gallo, autor da recente e monumental Crítica de la Razón Paranoide (inédito no Brasil). “Os exemplos ao longo da História são múltiplos, e o movimento QAnon não é uma exceção”, afirma. Alguns especialistas consideram o QAnon como um movimento religioso emergente, que toma Trump como messias salvador. Assim como nas seitas, os membros chegam a sofrer certa desconexão com a realidade e inclusive com seus seres queridos.
O próprio Trump foi ambíguo ao falar sobre o QAnon, sem chegar a negá-lo, provavelmente para não perder seu apoio eleitoral e seu poder propagandístico. “Não sei muito sobre o movimento, exceto por entender que eles gostam muito de mim, o que agradeço”, afirmou numa entrevista. Perguntado sobre a crença de que ele mesmo estaria liberando o mundo de uma seita de pedófilos satânicos, respondeu: “Supõe-se que isso seja algo mau ou bom? Se posso ajudar a salvar o mundo de problemas, estou disposto a isso.” O QAnon tem seguidores também dentro do Partido Republicano: Marjorie Taylor Greene, adepta da teoria, conseguiu em 2020 uma vaga de deputada federal pelo Estado da Geórgia.
“O QAnon surge do ódio contra a esquerda política e da busca por um líder messiânico, neste caso Donald Trump”, observa o jornalista Marc Amorós, autor de um livro sobre as fake news, inédito no Brasil. E também observa vários ensinamentos desta teoria conspiratória: “Ela demonstra a capacidade das narrativas falsas como cola social, como maneira de aglutinar muita gente muito diversa ao redor de uma ideia ou de um líder”, afirma o especialista. Além disso, mostra o poder do tribalismo, e como as culpas e possíveis consequências da teoria conspiratória se dissolvem ao se integrar a um coletivo ou comunidade. Por último, também mostra o perigo de participar de uma bolha de opinião ou informação. “Nelas se compartilham continuamente as mesmas ideias, e isso leva inevitavelmente a uma polarização do grupo e do indivíduo, tanto no pensamento como nas ações”, afirma Amorós. “Os indivíduos se veem impelidos a demonstrar cada vez com mais força sua adesão às ideias do grupo.”
O problema das paranoias conspiratórias e das fake news espalhadas pela Internet começa a respingar de forma muito clara no mundo real, porque o universo online e offline já se confundem. Quando os seguidores do QAnon invadiram o Capitólio, o fenômeno deixou de ser visto como algo risível para se tornar uma ameaça real. O Twitter eliminou permanentemente 70.000 contas afiliadas ao movimento, para impedir que os seguidores de Trump usem a rede social com fins violentos. E, em uma medida inédita, suspendeu também permanentemente a conta pessoal do presidente norte-americano devido “ao risco de mais incitamento à violência” de pessoas que acreditam, sem jamais apresentar provas, que a eleição foi roubada por Joe Biden. E essa crença se espalha pelo planeta, adaptada a cada território: na Alemanha, onde está crescendo com força, diz-se que Angela Merkel está em conluio com o Deep State. Na França, Emmanuel Macron é apontado como o fantoche da conspiração pedófila. E por aí vai. O mal, acreditam os adeptos adestrados em fóruns digitais e no YouTube, abraça o planeta como um polvo.
Quem é Q?
QAnon é uma fusão da letra Q com a palavra “anônimo”, em inglês. Q é o codinome do enigmático profeta deste movimento, alguém que supostamente integra o núcleo do Governo de Donald Trump e que, como um construtor de conspirações, deixa migalhas de informação na Internet para que sejam decifradas por seus seguidores. Assim chegam à revelação, de forma similar às mensagens herméticas do Oráculo de Delfos, que tinham que ser interpretadas por especialistas. “Procuram indícios, pistas, mensagens, sinais que só o iluminado distingue com o objetivo de encontrar a conspiração”, escreve Gallo. “Alimentam-se os seguidores com a cenoura e o porrete, levando-os a crer que estão prestes a descobrir algo muito valioso, uma espécie de epifania.”
Tudo começou em 2017 em fóruns da Internet frequentados por conservadores norte-americanos, como 4Chan e 8Chan. Um ano antes, em 2016, durante as eleições, já tinha viralizado uma versão preliminar, chamada Pizzagate, que também descrevia uma rede de pedofilia do Partido Democrata, vinculada a uma pizzaria de Washington chamada Comet Ping Pong, onde supostamente ocorriam abusos e rituais satânicos. Um homem com uma escopeta chegou a atacar a pizzaria ao tentar investigar os fatos. Não houve feridos, mas o adepto dessa teoria conspiratória, então com 28 anos, foi condenado a quatro anos de prisão. Entregou-se depois de não encontrar cômodos secretos nem sinais de rituais satânicos no interior do restaurante. Só farinha, tomate e mozzarella.
A teoria QAnon é tão ampla que pode funcionar como uma metateoria conspiratória, uma árvore com muitas ramificações, ou um guarda-chuva sob o qual muitas outras teorias são acolhidas ― como o citado Pizzagate, ou todo tipo de negacionismo da pandemia. Aliás, quando o coronavírus surgiu e o confinamento começou, os adeptos do QAnon cresceram notavelmente. As pessoas queriam respostas e tinham tempo em casa para buscá-las nas profundezas da Internet. Sem ir mais longe, após a histórica nevasca desta semana na Espanha, surgiram no Twitter vozes que sugerem queimar um pedaço de neve com um isqueiro para observar que não se trata de água congelada, e sim de plástico, provando que o temporal Filomena também seria uma conspiração.
Entre outra ramificações do QAnon se encontram crenças como a de que John Kennedy está vivo, que os Rothschild dominam o mundo financeiro, ou que a loja de móveis WayFair vende crianças em seu site, conforme enumera Gallo. Ou talvez a mais estranha delas: que o presidente norte-coreano, Kim Jong-un, foi colocado pela CIA em seu posto e liberado em 2018 por Trump, que instalou um dublê no seu lugar. Segundo esses adeptos, vivemos na época do Grande Despertar, que acontece antes de Trump desatar a Tempestade e prender os vilões do Estado Profundo (Clinton, Obama…) em Guantánamo.
Uma particularidade do QAnon, conforme relatam os pesquisadores Russell Muirhead e Nancy Rosenblum na The New Yorker, é que, enquanto as teorias conspiratórias clássicas tratam de explicar algo (o assassinato de Kennedy ou a chegada à Lua), o QAnon se caracteriza por sua falta de interesse na explicação. “Assim como a inexistente rede de tráfico de crianças que sai do inexistente porão, frequentemente não há nada a explicar: a nova conspiração às vezes parece surgir do nada”, escrevem. Outra particularidade: ao contrário de outras teorias conspiratórias, frequentemente alimentadas por grupos de oposição ao poder, o QAnon nasceu dos setores trumpistas enquanto Trump ocupava a Casa Branca (o próprio Trump começou sua carreira política difundindo boatos sobre a identidade real ou o lugar de nascimento de Barack Obama). Os autores citados observam que nos encontramos perante um Novo Conspiracionismo.
Por que acreditamos em idiotices?
“O pensamento conspirativo tem benefícios para os indivíduos: ele nos dá a sensação de controle, de que o mundo tem explicação”, afirma o psicólogo Ramón Nogueras, autor do livro ¿Por Qué Creemos en Mierdas? (inédito no Brasil). “Temos muita dificuldade em aceitar que não entendemos coisas: muitas vezes preferimos uma explicação ruim à incerteza”. E acreditamos que os grandes problemas devem ter grandes explicações: não é possível que o assassinato do Kennedy fosse obra de um maluco que agira sozinho: tem que haver algo mais poderoso por trás.
Num mundo que avança com crescente rapidez, que é cada vez mais difícil de compreender, em que as certezas desaparecem sob nossos pés, conspirações como o QAnon oferecem a seus adeptos uma realidade firme à qual se aferrar. Além disso, escapando do cotidiano cinzento, faz seus adeptos se sentirem especiais, “acordados”, como em um filme de espiões, possuidores de um segredo que é negado à maioria, que eles consideram tonta, vítima do malvado Estado Profundo.
“Os adeptos das teorias conspiratórias não têm nenhuma doença mental, mas certos traços que as tornam propensas a acreditar: são boas detectando patrões, percebem intenções inclusive onde não existem, são desconfiadas e com nível baixo de raciocínio analítico”, observa Nogueras. É mais fácil que uma pessoa com baixo grau de instrução caia nestas crenças, mas também pode acontecer com pessoas que fizeram faculdade e chegaram ao doutorado. Esses ambientes são atraentes também por propiciar uma comunidade que se relaciona e se apoia mutuamente.
As teorias conspiratórias passam das mentes alucinadas aos fatos e representam perigos. Por isso é importante fomentar o espírito crítico, mostrar que há algumas fontes de informação confiáveis, e outras não, e aprender a refletir antes de compartilhar informações. Vivemos em tempos de infodemia, ou seja, de uma avalanche de informação em que se misturam a verdade e a mentira, o relevante e o lixo. “Ter acesso a uma grande quantidade de informação, como temos agora, não implica que tenhamos melhor capacidade de filtrá-la”, opina Nogueras, partidário de que as plataformas digitais ponham mais ênfase na checagem dos conteúdos difundidos. “É importante conter estas teorias na origem”, afirma. Também é importante, sobretudo para os meios de comunicação, não dar voz aos teóricos da conspiração, nem que seja para tentar desprestigiá-los ou ridicularizá-los. Isso reforça suas crenças e sua comunidade. Cumpre, aparentemente, a profecia de que há uma conspiração contra eles.
O QAnon nos fala de conspirações que não existem, mas também nos fala dos perigos da comunicação sem filtros pela Internet, da falta de referências para o ser humano, da necessidade do comunitário em tempos individualistas, dos efeitos indesejáveis da polarização política, da manipulação das massas, de como é fácil chegar a um futuro distópico.