Para Kátia Favila, da Rede Cerrado, não reconhecer comunidades tradicionais ajuda a expulsá-las de territórios cobiçados. Muitos povos tradicionais no Brasil estão “invisíveis” para o poder público e empresas, e isso faz parte de uma estratégia de tomada de seus territórios.
Catarina Barbosa entrevista Kátia Favila, Brasil de Fato, 25 de fevereiro de 2021
O alerta é da antropóloga Kátia Favila, secretária executiva da Rede Cerrado – entidade composta por mais de 50 entidades da sociedade civil e 300 organizações que se identificam com a causa ambiental do bioma. “No momento em que ameaçam o território, a primeira ameaça que existe é à vida dessas pessoas, que são os povos e comunidades tradicionais. Muitas vezes são justamente as pessoas que estão fazendo a conservação desses lugares”, diz em entrevista ao programa Bem Viver, da Rádio Brasil de Fato.
Graduada em antropologia pela Universidade de Brasília (UNB) e especialista em educação e gestão ambiental, Favila é ainda doutoranda em antropologia pela Universidade de Lisboa, investigando formas de reestruturação florestal em territórios impactados pela monocultura do eucalipto no Brasil e em Portugal.
Ela explica, ainda, que não há um registro exato sobre quais são (e quantos são) os povos tradicionais no Brasil atualmente. “É um processo em que a gente não consegue dizer ‘são esses daqui’, e fechar um número ou uma nominação. Eles são vários e ainda estão se identificando”, afirma.
A lista de povos tradicionais é vasta: indígenas, quilombolas, quebradeiras de coco babaçu, vazanteiros, fundo e fecho de pasto, pescadores artesanais, geraizeiros, extrativistas, veredeiros, catingueiros, apanhadores de flores sempre viva e agricultores familiares.
O Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais classifica 28 segmentos que estão representados, no entanto, Favila diz que o número é bem maior.
Quem são os povos tradicionais do Brasil?
Essa é uma pergunta super difícil, porque na realidade são tantos, mas fazendo um resumo para as pessoas entenderem do que estamos falando são os extrativistas, pescadores, as marisqueiras. Se a gente vai para o Cerrado, tem os geraizeiros, veredeiros. Enfim, temos uma infinidade de povos e comunidades tradicionais no Brasil e na realidade muitos ainda estão se auto-identificando.
Logo, ainda é um processo em que a gente não consegue dizer “são esses daqui”.
Dentro do Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais nós temos 28 segmentos que estão representados, no entanto, a gente tem um número muito maior no Brasil
Existe algo que caracteriza o que é o povo tradicional?
Para responder, vou voltar um pouco na história. Em 2005, o estado brasileiro finalmente fez o primeiro Encontro de Povos e Comunidades Tradicionais reconhecendo, na realidade, esses povos e essas comunidades, que o próprio estado brasileiro tinha colocado em uma situação de invisibilidade.
Temos uma infinidade de povos e comunidades tradicionais no Brasil. Muitos ainda estão se auto-identificando
A partir desse encontro foi formada também a Comissão Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais, que começou uma política em 2007, quando se tem, finalmente, uma política nacional que fala o que são e quem são os povos e comunidades tradicionais.
A primeira questão desse processo é justamente que essa é uma auto-identificação e uma auto-definição. Para que alguém seja considerado de um povo ou de uma comunidade tradicional, além de se auto-indentificar, essa pessoa precisa ser reconhecida pelos seus pares.
Ou seja, os quilombolas se auto-definem como quilombolas e eles são vistos assim por outros quilombolas. Esse é o principal fator que a gente tem para determinar o que é um povo ou comunidade tradicional: a auto-definição.
Dentro dessa prática que rege, no Brasil, quem são povos e comunidades tradicionais, a gente tem outros elementos como a distinção étnica e identitária. Essas comunidades e povos têm formas de viver que são distintas das formas em que a sociedade, de uma forma geral, vive. Eles têm uma reprodução cultural distinta.
Além disso, tem uma outra questão que é o mais importante e na realidade foi o que moveu a Rede Cerrado, o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) e o Instituto Sociedade População e Natureza (ISPN) a fazer toda essa campanha, para nós, permanente: a de que os povos tradicionais são extremamente ligados aos seus territórios.
Eles estão ligados ao território de uma maneira umbilical. Essa questão é tão profunda com a terra que isso também é uma outra questão que define as comunidades tradicionais no país inteiro, sejam esses territórios urbanos ou rurais, até porque muitas vezes eles estão em uma área urbana, porque foram comprimidos na área urbana.
No entanto, eles não deixam de ser comunidades ou povos tradicionais, só por estarem em uma área urbana.
A luta desses povos para existir passa, então, pela resistência de poder continuar existindo em seus territórios?
Sim. Na realidade, muitos desses povos começam a aparecer para a sociedade, de um modo geral, justamente no momento em que estão ameaçados. Enquanto eles não estão ameaçados, eles vivem sem a necessidade de dizer para a sociedade brasileira quem são, que eles ocupam aquele território e que o estão conservando.
Contudo, a partir do momento em que são postos em uma situação de invasão por uma mineradora, por projetos de monocultura ou até mesmo construções de hidrelétricas, estradas, de pontes, obras de infraestrutura de uma maneira geral.
Nesse momento, esses povos e essas comunidades têm que se defender e a forma de se defender é sair mesmo dessa invisibilização em que eles foram colocados e lutar pelo seu território, porque é o território que com que eles consigam viver.
A ligação é absolutamente direta: o território não existe se eles não estiverem lá e eles não existem se o território não estiver mais lá.
A Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT) da qual o Brasil é signatário tem sido a ferramenta utilizada para proteger esses povos e comunidades?
Toda essa política que citei, todo esse processo, ela é uma política que vem muito embasada na Convenção 169. A partir desse momento, a gente tem um reconhecimento do estado brasileiro de que existe uma distinção entre essas comunidades e a sociedade de uma maneira geral.
Logo, o Estado brasileiro é obrigado a consultar essas comunidades, a respeitar os seus territórios e a zelar e proteger as comunidades. O Estado, na verdade, não é o “bonzinho” que de repente decide que vai fazer isso.internacional de defesa dessas comunidades e o Brasil, de fato, ratifica essa convenção e ela tem sido, sim, um grande instrumento utilizado por esses povos e comunidades na defesa dos seus territórios.
Porém, a gente sabe que isso não é uma questão pacífica, ou seja, que o governo ratificou e tem cumprido a Convenção 169, muito pelo contrário, infelizmente.
Várias comunidades entraram no processo de construção do seus próprios Protocolos de Consulta, protocolos, na realidade, de como o Estado e a sociedade brasileira devem se relacionar com essas comunidades, justamente, para tentar impedir o avanço que tem sido feito dentro de seus territórios.
Quais direitos estão, atualmente, mais ameaçados?
O direito à vida. A questão de serem expropriados, expulsos dos seus territórios, eles têm sofrido uma ameaça à vida, porque o território é a vida deles.
Assim, no momento em que ameaçam o território, a primeira ameaça que existe é a vida dessas pessoas, que são os povos e comunidades tradicionais e que muitas vezes são justamente as pessoas que estão fazendo a conservação desses lugares.
Infelizmente ainda não se consegue reconhecer isso, o fato de que a gente tem ambientes ainda conservados no país graças a essas comunidades e isso está diretamente ligado ao direito territorial.
Atualmente temos poucas legislações que garantem o direito territorial. Infelizmente, no momento, nem essas estão sendo cumpridas. O próprio governo admitiu que não andou com titulação de territórios quilombolas, não andou com homologação de terras indígenas.
Esses são direitos garantidos, com a criação de Unidade de Conservação de uso sustentável. Imagina a enormidade de povos e comunidades tradicionais que nós temos, que não tem ainda uma legislação definida de como garantir seus territórios. Estão mais ameaçados ainda.
Logo, é uma ameaça em cima de outra ameaça. Na realidade, a gente não tem até hoje um dado oficial que diga quantos são os povos e comunidades tradicionais, onde eles estão, um mapa que represente esses povos e comunidades.
A ausência de dados faz com que eles fiquem ainda mais fragilizados e isso enfraquece ainda mais a luta, que é diária, complicada, quando você não tem nada oficial fica mais justificar, dizendo ‘Mas a gente não tem nenhum dado, por isso que a gente não está fazendo’. Vira uma desculpa para não se fazer.
As estratégias de apropriação dos territórios desses povos e comunidades tradicionais é histórica, certo?
Exatamente. A mesma estratégia que a gente teve na primeira colonização, que foi a colonização portuguesa que também podemos chamar de invasão portuguesa.
Nós continuamos reproduzindo várias colonizações. O Estado brasileiro continua extremamente colonizador, as empresas que estão dentro do Brasil são as novas colonizadoras, porque elas simplesmente decidem instituir uma invisibilidade, fingir que não existe.
É como se você fosse em um município e você fala que ele tem a população X. No entanto, você não olha essa população X e diz: eu tenho uma porcentagem de indígenas, uma porcentagem de quilombolas, uma porcentagem de vazanteiros, de geraizeiros. Como é que se lida com essa diversidade sócio-cultural em um município? Dá mais trabalho? Sim. É interessante para o poder público ter esse trabalho? É mais fácil dizer: é uma população. Ponto. Fica mais fácil.
Além disso, fica mais fácil também tomar esses territórios dessas populações, de dizer que eles invadiram.
Quantas e quantas vezes já escutamos: – Essas pessoas estão aqui, só que elas invadiram esse território. Quem invadiu o quê e quando?
Se formos falar de invasão, vamos falar de uma forma séria. Historicamente isso foi construído para que fosse dessa forma e que a sociedade ache que isso é normal.
Na minha avaliação este é um grande problema é a questão de toda a campanha que a gente tem feito junto com o ISPN e o IPAM é justamente nesse sentido: Como que a gente mostra para a sociedade brasileira, que nós somos muitos e nós somos muito diversos?
Enquanto a gente não entender essa diversidade, sua importância, não estamos entendendo o que é o Brasil.