Resolução da Coordenação Nacional da Insurgência, de 4 e 5/7
1. A pandemia e a crise econômica são uma crise maior da globalização neoliberal. Decorrem da perda de dinamismo que o sistema capitalista conhece depois de 2008 e dificultam substancialmente, global e nacionalmente, o horizonte do projeto dos projetos burgueses. Trump e de Bolsonaro, ou seja, governos e movimentos ultradireitistas estreitamente vinculados entre si, cresceram como resposta e alternativas nacionalistas conservadoras à gestão globalista do sistema, particularmente depois de 2016, em total desconsideração pela vida humana e os direitos. Não é à toa que a pandemia é considerada “fora de controle” graças, em particular, aos Estados Unidos, Brasil e Índia.
2. Já estamos chegando a doze milhões de casos oficialmente reconhecidos no mundo, com, com quase 550 mil mortos. Temos no Brasil 1,67 milhões de infectados – número que, devido à subnotificação, pode chegar a mais de dez milhões – e 67 mil vidas perdidas. Brasil tem em comum com os Estados Unidos e a Grã-Bretanha um governo que reagiu à pandemia com negacionismo científico, desprezo pela saúde pública, opção explícita pelo lucro frente à vida - o que se mostrou internacionalmente como a pior reação possível ao vírus.
3. A pandemia criou uma crise econômica global sem precedentes que condiciona, com a pandemia, a atuação dos diferentes projetos políticos. Na medida em que a pandemia e a crise se mostravam duradouras, problemas cada vez maiores passaram a se colocar para os governos nacionalistas conservadores que priorizavam, unilateralmente, a continuidade dos “negócios” em contraposição ao combate ao coronavírus. A estratégia de contenção da crise conduzida pelo núcleo duro do bolsonarismo com os militares foi a da negação das evidências científicas, questionamento da gravidade e extensão da Covid-19, guerra cultural permanente; instrumentalização da disputa contra a China e a OMS, com um discurso populista para as camadas mais pobres da população: promessa de um remédio milagroso - a cloroquina e a inoculação proposital de confusão entre a defesa da vida e a da “economia”. Mas, como em boa parte do mundo, setores da burguesia brasileira viam que a pandemia não poderia simplesmente ser ignorada. Mas, é da natureza do governo neofascista de Bolsonaro instigar permanentemente choque entre poderes, mobilizar uma base radicalizada com ideias extremistas de intervenção militar e ditadura – seu projeto estratégico.
4. A condução desastrosa da crise sanitária pelo governo federal dividiu setores burgueses (incluídas suas representações políticas, como governadores e prefeitos de direita e até de ultradireita, como Witzel), agravando a crise institucional. Esta crise sempre esteve latente no governo JB, mas teve momentos de temperatura altíssima entre maio e junho. Como parte da grande crise nacional que caracterizamos em 2016/17, Bolsonaro não conseguiu estabilizar o regime e o país – até porque, ademais dos impactos globais, nunca fez esforços por unidade nacional, muito antes pelo contrário. Diante da Covid-19, buscou conflito com governadores e prefeitos, derrubou dois ministros da Saúde em plena pandemia, ameaçou e fez ameaçar STF, PF e Congresso.
5. No âmbito da saúde, vai se delineando, entre governadores e prefeitos, uma espécie de "modelo" burguês alternativo de enfrentamento à Covid-19: ele combina um distanciamento social incompleto, mas suficiente para produzir um mínimo achatamento da curva (que dá essa sensação de nunca se chega no pico), com reforço da retaguarda hospitalar. Uma estratégia que conta apenas com o distanciamento social mínimo (dos que podem), de forma a preservar a atividade econômica às custas dos que não têm como trabalhar à distância e manter o sistema hospitalar estressado por alguns meses sem inteiramente colapsar, equilíbrio obtido com esse reforço no número de leitos. A melhor relação custo-benefício para a preservação da atividade econômica. É o projeto da necropolítica “em que gente se pergunta se as "vidas perdidas" estão sendo computadas do lado dos custos ou dos benefícios.” A pandemia da Covid-19 tem cor, classe e nível de escolaridade, golpeando muito mais duramente os setores mais vulneráveis da sociedade, incluindo as populações negras e indígenas.
6.O horizonte econômico de médio-longo prazo para o Brasil é a estagnação estrutural, não sem antes passar por uma recessão sem precedentes (estima-se entre 6 e 15% de retração em 2020). A OIT indica que a América Latina vai perder 47 milhões de empregos com a pandemia. Falamos de redução de 7 milhões de pessoas ocupadas, sendo cerca de 2,5 milhões com carteira de trabalho assinada, quando comparada a igual período ano passado. Já o novo Caged apontou para uma queda de 1,5 milhão de empregos formais no trimestre finalizado em maio, além de 4,4 milhões de contratos de trabalho suspensos e 3,5 milhões com redução de até 70% das horas trabalhadas, em abril em relação ao mês de março de 2020. É um desastre social ainda não avaliado em sua dimensão e que, com certeza, não trará estabilidade nem facilitará a vida dos governos.
7. A coalizão bolsonarista tem uma dupla determinação: aplicar uma política de corte de direitos e austeridade e bloquear as chances eleitorais do PT retomar o governo, o que lhe garantiu uma certa estabilidade no primeiro ano de governo. De março deste ano para cá, no entanto, com as seguidas demissões e/ou trocas de ministros, demissão de Moro, vídeo de reunião ministerial, desastres na saúde, na educação e no meio ambiente e choques com STF e Congresso – em que se destacaram ameaças explícitas do presidente e ministros militares contra a “ordem institucional” – o governo perdeu prestígio. Isto o obrigou, para evitar a remota possibilidade de impeachment no Congresso, a integrar parte do Centrão no ministério – o que se choca com seu discurso “antissistêmico”.
8. Com a prisão de Queiroz e o perigo concreto de que se provem suas relações e dos filhos com as milícias, tudo indica que os militares (com apoio de STF, lideranças do Congresso, partidos da ordem e amplos setores da burguesia) conseguiram “enquadrar” em termos menos selvagens o
comportamento do presidente e colocar limites nos agrupamentos e movimentos dos neofascistas. Há um conflito estrutural no seio da classe dominante entre o projeto globalistas e o projeto da extrema-direita. O projeto do bolsonarismo é de ruptura. Conseguirão as instituições do estado “domesticar” Bolsonaro? Novos conflitos institucionais surgirão e darão lugar a respostas mais enérgicas pela saída de Bolsonaro? A resposta sobre os rumos do bolsonarismo depende também da pressão das ruas. É preciso haver uma articulação entre a crise, as contradições inter-burguesas e a presença em cena de atores capazes de impulsionar a mobilização popular. Sabemos que sem mobilização de massa, a opção da oposição liberal e da esquerda institucionalizada será a de sangrar Bolsonaro e conduzir a disputa para a próxima eleição em 2022. Ainda assim, sabemos que a pandemia coloca obstáculos para a ação de massas. Devemos seguir orientando a militância a respeitar as condições sanitárias de uso de máscaras e distanciamento social e avaliando os atos de rua momento a momento de acordo com o crescimento da curva de contágios.
9. No compasso do acirramento da crise institucional e da crise sanitária-social, cresceu a oposição social e política a Bolsonaro, o que se pode medir nos panelaços e na multiplicação inédita de movimentos pela democracia e contra o governo (Somos 70%, Juntos, Direitos Já e outros, todos por fora das iniciativas partidárias), além de frentes e coalizões de setores específicos – entre as quais se destaca, pela amplitude e eficiência, a Coalizão Negra por Direitos. De fato, a violência policial racista estrutural no Brasil, ao fazer vítimas durante a pandemia, com a ajuda do impacto do levante racista nos EUA e global, levou a negritude a encabeçar um início de resistência de rua, junto com grupos antifascistas, e setores mais politizados de torcidas organizadas, movimentos do setor de saúde e o MTST.
10. É igualmente relevante a mobilização dos trabalhadores de plataformas digitais, que cresceram quantitativa e qualitativamente durante a pandemia, reivindicando não diretamente o Fora Bolsonaro, mas melhor pagamento por km rodado, benefícios, direito a descanso. Novas mobilizações sociais – por categoria, territoriais e setoriais – podem vir a se multiplicar com a continuidade da pandemia e o agravamento da crise social, em torno de temas como o da renda básica, volta às aulas, inserção digital democrática para permitir aulas e trabalho online, etc. Outras ainda podem emergir em torno das bandeiras do feminismo, da luta dos povos indígenas e da ambiental. De qualquer forma, só a retomada da ação autônoma das massas, que por ora é uma hipótese na qual apostar, poderá ser decisiva para ditar os rumos e o futuro do bolsonarismo.
11. Bolsonaro é hoje um governo menos forte do que quando assumiu; tem menos apoio do que tinha no início da pandemia, embora mantenha, segundo grande consenso entre analistas de estatísticas e politólogos, uma base fiel radicalizada de cerca de 15% da população adulta, com outros 15% a 17% que se mantêm com ele apesar de críticas e que podem se mover. A maioria de seus seguidores fanáticos são parte da pequena burguesia (classe média proprietária urbana ou do agro), mas mantém apoio em setores mais pauperizados do mundo do trabalho graças à agenda conservadora dos pastores neopentecostais e católicos de direita.
12. Essas movimentações positivas na conjuntura não significam que já se superou a correlação de forças reacionária, de defensiva dos explorados e oprimidos aberta com a conspiração pelo golpe de 2016 e agravada pela vitória eleitoral do neofascismo. Mas o governo Bolsonaro perdeu a ofensividade que manteve em todo o seu primeiro ano. A saída de Moro, o abraço do Centrão e a prisão de Queiroz começaram a evidenciar suas fragilidades. Estamos agora em uma situação intermediária que, sem descartar aventuras golpistas, pode levar à consolidação de um governo refém do establishment político (como quer a burguesia liberal e a esquerda progressista de Lula e Ciro), como a um ulterior enfraquecimento que possa vir a colocar o impeachment como realidade concreta e não apenas propaganda. Nesse contexto, são importantes tanto as políticas unitárias contra as ameaças às liberdades (que supõem frentes amplas inclusive com setores burgueses liberais), como contra as políticas ultraneoliberais do governo (frentes de explorados e oprimidos).
Nossas tarefas:
Derrubar Bolsonaro é a tarefa central da conjuntura: tentaremos articular ações para chegar neste objetivo final de forma mais ampla possível, o que pode se dar de maneira mais pontual ou permanente. O critério para participação nos espaços frentistas, portanto, é político-tático em torno de uma tarefa objetiva. Não existe hoje no Brasil uma frente ampla democrática consolidada pelo Fora Bolsonaro. O que existem são múltiplas iniciativas de caráter de oposição amplo em constante disputa. A conjuntura, entretanto, é muito dinâmica e a evolução do sentido dessas frentes pode ser muito rápida, e por isso, devem ser acompanhadas de perto.
Mas só avançaremos nesta tarefa se modificarmos a atual correlação de forças social, combatendo as reformas ultraliberais e ataques ao conjunto dos explorados e oprimidos. Ou seja, não é somente o bolsonarismo que deve ser enfrentado nessa conjuntura. Os ataques à classe trabalhadora no formato de privatizações, corte de gastos, precarização das relações de trabalho seguem de vento em popa. Por isso, além da unidade com setores democráticos para derrubar Bolsonaro, é essencial que busquemos unidade nos movimentos e no parlamento para barrar os avanços sobre a classe trabalhadora por parte do bloco que pretende o reordenamento ultraliberal do estado brasileiro.
Mas do que apresentar um programa que dialogue com as demandas concretas da classe trabalhadora - tais como ampliação da renda básica, investimento em serviços públicos (saúde, educação), defesa do meio ambiente, inclusão digital – se trata de atuar para ajudar a mover as ações populares em defesa de suas reivindicações e estimular que o conjunto da esquerda retome a iniciativa prática. Ganha importância, nesse sentido, construirmos uma alternativa de esquerda antissistêmica para a classe trabalhadora. Simultaneamente aos processos de composição de unidade democrática e anti-ultraliberal, é preciso perfilar uma oposição mais estratégica e antissistêmica. Nossa tarefa e lugar estratégicos, como PSOL e como Insurgência, na atual correlação de forças, é dar essa batalha por uma alternativa de esquerda antissistêmica (e internacionalista) no espaço dos antifacistas e no diálogo com os movimentos em luta concreta (negros, mulheres, índios, entregadores, lgbts, ecologistas…). Na ausência disso, a política será monopolizada pelas alternativas de extrema-direita, de centro-direita e do “progressismo” em suas várias vertentes.
Por tudo isso, é fundamental:
(a) Trabalhar para barrar o plano de destruição encabeçado por Bolsonaro em suas duas dimensões. De um lado, devemos seguir nos empenhando na construção do PSOL e nos mais diversos atos e movimentos que se colocam em luta contra aquele projeto. Diante das múltiplas iniciativas de caráter de oposição ampla e em constante disputa, trabalhar pela ampliação e iniciativas da Frente Fora Bolsonaro, unidade surgia em torno do projeto de impeachment popular do qual o PSOL participou. A tarefa do PSOL é estimular permanentemente o embate contra o bolsonarismo, trabalhando para que movimentos de todo o tipo se unam em torno do Fora Bolsonaro.
(b) De outro lado, só seremos capazes de influenciar nas saídas de poder somente se formos capazes de dar respostas às necessidades imediatas da vida das pessoas. Portanto, a nossa disputa na institucionalidade, na articulação dos movimentos e do trabalho de base também deve se dar em torno das campanhas: renda básica emergencial permanente, taxação das grandes fortunas, plano emergencial indígena, defesa da Amazônia. Da mesma maneira que a nossa construção se fortalecerá nas construções territoriais e nas campanhas de solidariedade de arrecadação de itens básicos de higiene e alimentação.
(c) Elaborar e cumprir um calendário de debates estratégicos no segundo semestre, estimulando o conjunto da Insurgência a participar das discussões. A pandemia encerra o século XX, impõe uma convergência explosiva de crises - sanitária, econômica, ambiental, social e política - e exige uma atualização estratégica de projeto, ferramentas e construção, daqueles que querem construir uma alternativa ecossocialista à barbárie. A atualização estratégica será a prova das organizações para sobreviver ao novo período.
Coordenação Nacional da Insurgência, 4 e 5 de julho de 2020
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