A Groenlândia está localizada a mais de 8 mil quilômetros da Amazônia e a mais de 18 mil quilômetros da Antártida. Mas as mudanças climáticas nestas regiões podem estar profundamente interligadas.
Alejandra Martins, BBC News Mundo, 27 de junho de 2021
Os cientistas já alertaram que o aquecimento global pode desencadear os chamados pontos de não retorno, ou tipping points, pontos críticos a partir dos quais as mudanças em um sistema podem ser abruptas e irreversíveis.
E agora um novo estudo indica que esses pontos de não retorno no sistema terrestre também podem se desestabilizar entre si, podendo levar a um efeito dominó de consequências climáticas globais.
Os autores do estudo, do Instituto Potsdam de Pesquisa de Impactos Climáticos, na Alemanha, simularam mais de três milhões de cenários possíveis em diferentes temperaturas.
E descobriram não apenas que um terço das simulações mostra efeitos em cadeia de pontos de não retorno, como que esses efeitos dominó também ocorrem com um aumento de temperatura de apenas 2 graus em comparação com a era pré-industrial.
As projeções atuais indicam que, caso não sejam tomadas medidas urgentes, o planeta caminha para um aumento de temperatura superior a 3 °C até o fim do século.
Ações desestabilizadoras
O estudo do Instituto Potsdam considera quatro possíveis pontos de não retorno e suas interações, com efeitos que podem ser desestabilizadores para outro sistema, estabilizadores ou ainda não compreendidos.
"O número e a força das interações desestabilizadoras são maiores do que os vínculos estabilizadores, de acordo com os dados usados no estudo", explica Nico Wunderling, um dos autores do estudo, à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC.
O cientista destacou que o modelo computacional é "relativamente simples", pois considera apenas quatro pontos críticos, mas permitiu realizar milhões de simulações.
Os quatro tipping points estudados são: o derretimento do gelo na Groenlândia, as mudanças nas correntes do Atlântico, as modificações na Amazônia e o derretimento do gelo na Antártida Ocidental.
Antes de explorar suas possíveis interações, vamos ver separadamente o que a ciência diz sobre cada um desses possíveis pontos de não retorno.
1. Derretimento de gelo na Groenlândia
"Atualmente, há evidências com base em observações de que a massa de gelo da Groenlândia está encolhendo a um ritmo acelerado devido a uma combinação do derretimento da superfície e o desprendimento acelerado de icebergs", explica à BBC News Mundo Tim Lenton, professor de mudança climática e sistemas globais na Universidade de Exeter, no Reino Unido.
Lenton também destacou um estudo deste ano, segundo o qual parte do gelo na Groenlândia está mostrando "sinais iniciais consistentes com a aproximação de um ponto de não retorno" pelo seguinte processo de retroalimentação: o derretimento reduz a altura da massa de gelo, expondo-a ao ar mais quente em altitudes mais baixas, o que por sua vez causa maior perda de gelo.
2. Derretimento do gelo na Antártida Ocidental
"Também há evidências observacionais consistentes com o fato de que parte da plataforma de gelo da Antártida Ocidental — a Geleira da Ilha Pine e a Geleira Thwaites, na região do Mar de Amundsen — pode ter passado potencialmente de um ponto de não retorno no que diz respeito ao retrocesso irreversível da linha de apoio (ponto em que uma massa de gelo ao ser introduzida no mar se separa da rocha e começa a flutuar no oceano)".
"Os modelos indicam um recuo irreversível com os níveis atuais de aquecimento do oceano e sugerem que a perda desta parte do gelo na Antártida Ocidental pode desestabilizar grande parte do resto."
3. AMOC, o sistema de correntes do Atlântico
Um elemento-chave do sistema terrestre que pode interligar mudanças a milhares de quilômetros de distância é a Circulação Meridional de Capotamento do Atlântico (AMOC, na sigla em inglês), mais conhecida como corrente termohalina atlântica.
"A AMOC é um sistema de correntes no Oceano Atlântico que transporta águas quentes para o norte e águas frias para o sul", diz a oceanógrafa física mexicana Alejandra Sánchez-Franks à BBC News Mundo.
A cientista trabalha no programa RAPID MOC do Centro Nacional de Oceanografia do Reino Unido, que monitora esse sistema de correntes.
"Em geral, a corrente flui na superfície, que tem aproximadamente 1000 metros de espessura, e move essas águas quentes e rasas para o norte onde se tornam águas frias e profundas que depois são deslocadas de volta para o sul."
A pesquisadora explicou o que significa para a AMOC ser uma corrente "termohalina" (expressão derivada do grego — "termo" se refere à temperatura, e "halo" ao sal).
"Isso quer dizer que as características mais importantes da corrente são a temperatura e a salinidade, que são as propriedades que determinam a densidade de uma massa oceânica."
Sánchez-Franks observa que as massas oceânicas de água quente que se deslocam na superfície do mar dos trópicos até as regiões polares vão esfriando durante seu deslocamento em direção ao norte.
"O resfriameno dessas águas superficiais faz com que elas se tornem mais densas e afundem. A massa oceânica, agora mais fria e densa, começa seu deslocamento para o sul, nas profundezas do oceano. Isso é o overturning ou capotamento."
O que preocupa os cientistas é que, de acordo com alguns estudos, todo esse sistema de correntes atlânticas desacelerou em 15% desde meados do século 20.
4. Mudanças na Amazônia
"Nossos cálculos mostram que se entre 20% e 25% da Floresta Amazônica desaparecer, a duração da estação de seca e a temperatura vão aumentar e isso pode fazer com que a floresta tropical dê origem a uma vegetação diferente, de savana."
É o que afirmou à BBC News Mundo o cientista brasileiro Carlos Nobre, pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da USP e especialista em Amazônia, que trabalhou por 35 anos no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Esta possível mudança na vegetação se deve a um fator crucial na Floresta Amazônica: a selva gera parte de sua própria chuva.
Quando a chuva cai, essa água é capturada pelas raízes das árvores, que a liberam novamente por meio da transpiração para a atmosfera, onde formam nuvens e chuvas novamente.
Devido a essa reciclagem de água, quando uma parte da floresta tropical é eliminada, chove menos, o que prolonga a estação de seca.
"A maior preocupação vem de observações do que vem acontecendo no clima e na floresta nas últimas décadas", diz Nobre.
"Em grande parte do sul da Amazônia, a estação de seca é de três a quatro semanas maior em comparação com a década de 1980 e também cerca de 3 °C mais quente."
"Nessa grande área de mais de 2 milhões de km2, a Floresta Amazônica está perdendo sua capacidade de reciclar água."
"Há também áreas bastante desmatadas e degradadas no sul da Amazônia, onde as florestas remanescentes estão perdendo a capacidade de remover o dióxido de carbono da atmosfera — um papel importantíssimo que as florestas globais desempenham ao retirar até 30% do dióxido de carbono emitido pelas atividades humanas — e estão passando a ser fontes de emissão."
"Nessa região da Amazônia, a taxa de mortalidade de árvores típicas do clima úmido amazônico está aumentando, fator que anuncia que não estamos muito longe de um tipping point".
O cientista destaca que em termos de desmatamento, cerca de 18% da Floresta Amazônica já foi perdida.
"E outro fator preocupante é o aumento de áreas que não foram desmatadas, mas estão degradadas por incêndios ou extração de madeira".
Possíveis interconexões a milhares de km
"O sistema terrestre está todo interligado: atmosfera, oceanos, continentes, vegetação, biodiversidade e ações humanas que interferem no equilíbrio planetário", afirma Nobre.
Nesse sistema interconectado, um ponto de não retorno pode afetar outros.
Por exemplo, "um rápido derretimento do gelo na Groenlândia vai liberar água doce, que é mais leve (do que a água com salinidade mais alta) e não afunda rapidamente no Atlântico Norte, onde se origina a circulação termohalina ou AMOC."
Isso tornaria a AMOC mais lenta, acrescenta Nobre.
"Se a AMOC enfraquecer de maneira geral, como de fato está acontecendo, as correntes oceânicas superficiais que levam águas quentes para o norte do Atlântico levarão menos calor para fora dos trópicos, então o Atlântico Tropical Norte ficará mais quente."
Isso, por sua vez, resulta em dois efeitos climáticos extremos: "águas mais quentes nessa região geram furacões mais fortes, exatamente o que temos visto na última década. E também provoca um movimento ascendente do ar sobre as águas mais quentes com um movimento compensatório descendente sobre partes da Amazônia (a chamada circulação de Hadley). Este ar descendente provoca secas, algumas extremas como as de 2005 e 2010", observa Nobre.
Tim Lenton acrescenta ainda que o enfraquecimento da AMOC pode interferir nas monções (mudanças sazonais que causam fortes chuvas) na Índia, causar secas no Sahel (norte da África) e transportar menos calor para o norte e deixar mais quente o Oceano Antártico, ameaçando as plataformas de gelo na Antártida.
Quão certo é que essas mudanças podem ocorrer e em quanto tempo?
"A probabilidade de que ocorram efeitos dominó depende crucialmente do nível de aquecimento global que alcançarmos", afirma Wunderling.
Em termos de escalas de tempo para pontos de não retorno, existem diferenças de várias ordens de magnitude entre os diferentes elementos, segundo o pesquisador.
"Por exemplo, se a massa polar da Groenlândia (ou da Antártida Ocidental) mudar abruptamente, levaria vários séculos ou milhares de anos para que se torne livre de gelo. No caso da Floresta Amazônica ou da AMOC, a escala de tempo pode ser muito menor, na ordem de décadas ou séculos."
Wunderling diz que uma mensagem importante do estudo é que "o risco de efeitos dominó cresce claramente quando o aquecimento global aumenta".
Mas o pesquisador esclarece que o estudo "não pode ser visto como uma previsão de qual tipping point ou efeito dominó ocorrerá a exatamente qual temperatura ou tempo, uma vez que o modelo faz simplificações importantes, embora leve em conta incertezas cruciais".
"Estas incertezas têm a ver principalmente com a estrutura das interações e sua força."
Para Tim Lenton, a escala de tempo do derretimento do gelo depende do nível de aquecimento acima de um certo ponto crítico e, embora "não possamos interromper esse processo, podemos controlá-lo limitando o aquecimento global".
"Na hipótese mais lenta, levaria milhares ou até mesmo dezenas de milhares de anos para as massas polares da Groenlândia ou da Antártida Ocidental derreterem. Mas, na hipótese mais rápida, é possível chegar a 10 metros de elevação do nível do mar pelo derretimento no oeste e leste da Antártida em 300 anos", diz ele à BBC News Mundo.
"Embora esteja previsto um possível aumento de apenas 0,4 m até 2100, esse aumento se acelera muito depois disso;."
"A mensagem é simples: é preciso limitar o aquecimento global para retardar a elevação do nível do mar", resume.
Apesar do grau de incerteza, Lenton ressalta que devemos pensar nos pontos de não retorno climáticos e suas possíveis interações em cascata "como um dos maiores riscos que enfrentamos com a mudança do clima, porque seus impactos são enormes, podem ser abruptos e geralmente são irreversíveis".
"Temos o potencial de mudar todo o estado do clima e torná-lo menos habitável para nós. Não queremos fazer isso!"
O cientista acrescenta que embora haja incertezas sobre o nível de aquecimento em que determinados pontos de não retorno se cruzam, "temos quase certeza de que alguns tipping points existem, porque os vimos na história da Terra, e estão começando a ser vistos agora".
Um estudo de 2018 analisou 30 tipos de possíveis transições críticas ou mudanças de regime na estrutura e funcionamento dos ecossistemas.
E determinou que exceder um tipping point em um sistema pode aumentar o risco de cruzá-lo com outros.
"Os efeitos em cascata podem aumentar ou diminuir o risco de interações entre mudanças abruptas", diz à BBC News Mundo um dos autores do estudo, o pesquisador colombiano Juan Rocha, do centro de pesquisa Stockholm Resilience Centre, da Universidade de Estocolmo, na Suécia.
"Um exemplo em que uma mudança de regime amplia outra pode ser entre o desaparecimento da calota polar ártica e os recifes de coral. Com a diminuição da calota polar, menos energia solar é refletida no espaço. O gelo funciona como um espelho."
"Com menos gelo, a terra receberia mais energia solar e isso aqueceria o oceano e a atmosfera, ampliando o aquecimento global. À medida que a temperatura média aumenta, os corais sofrem e aumenta o risco de branqueamento (uma doença de coral) e morte em massa desses ecossistemas marinhos."
A cúpula crucial de 2021
Compreender as mudanças no sistema terrestre e suas possíveis interações continua sendo um grande desafio para os cientistas.
Daí a importância de programas como o RAPID MOC, que atualmente monitora a AMOC com um sistema de boias fixas que atravessa o Oceano Atlântico de leste a oeste na latitude 26N.
"Devido às mudanças climáticas associadas à atividade antropogênica, agora é mais importante do que nunca monitorar a AMOC para poder entender como o oceano responde a essas mudanças antropogênicas e como elas mesmas podem mudar nosso sistema climático global", diz Sánchez-Franks à BBC News Mundo.
Os líderes mundiais vão se reunir em novembro em Glasgow, na Escócia, em uma nova cúpula sobre mudança climática, a COP26. Para Tim Lenton, a mensagem para esses líderes é clara.
"Ajam agora ou serão lembrados por trair as gerações presentes e futuras. Façam tudo ao seu alcance para acelerar a descarbonização da economia global, deter o desmatamento e reduzir pela metade as emissões de gases de efeito estufa até 2030."
"E exponham os líderes que não agem. Não há nada a temer porque é possível gerar emprego e riqueza nesta 'grande transformação' que é necessária", acrescenta Lenton.
O cientista já havia alertado em artigo na revista Nature em 2019 que "a evidência de tipping points por si só indica que estamos em estado de emergência planetária".
Para Carlos Nobre, tanto os políticos quanto a população em geral devem entender que todos os elementos do sistema terrestre estão interligados.
"E devemos pensar que salvar o planeta exige não apenas emissões zero até 2050, mas também uma mudança global de comportamento, hábitos e atitudes, para maximizar a proteção da natureza. Podemos aprender muito com as populações indígenas que têm mantido os sistemas naturais funcionando por milênios."
Qual é a mensagem do professor Nobre aos líderes da cúpula de Glasgow?
"Talvez seja a mais importante das reuniões da COP até agora, mais até do que a que gerou o Acordo de Paris", diz o cientista brasileiro à BBC News Mundo.
"Deve haver uma determinação muito forte de cortar as emissões de gases de efeito estufa pela metade até 2030 e, posteriormente, continuar a reduzi-las pela metade a cada década."
"É possivelmente o maior desafio enfrentado pela humanidade".