Fábio Luís Franco, Outras Palavras, 22-04-2020
No início de fevereiro deste ano, a 5a turma do Tribunal Superior do Trabalho (TST) rejeitou por unanimidade o recurso de um motorista de Uber de Guarulhos, na Região Metropolitana de São Paulo: ele exigia o registro em carteira e o reconhecimento de direitos trabalhistas após quase um ano dirigindo para o aplicativo. Foi a primeira vez que uma corte superior julgou um caso desse tipo.
No acórdão, o TST embasa sua decisão na confissão do motorista quanto à possibilidade de ficar off-line sem delimitação de tempo, o que, segundo os ministros, “traduz, na prática, a ampla flexibilidade do autor em determinar sua rotina, seus horários de trabalho, locais onde deseja atuar e quantidade de clientes que pretende atender por dia. Tal autodeterminação é incompatível com o reconhecimento da relação de emprego, que tem como pressuposto básico a subordinação, elemento no qual se funda a distinção com o trabalho autônomo”. Além disso, entendem que o “alto percentual” pago pela empresa a cada corrida – em média, 70% do valor cobrado do usuário – é suficiente para caracterizar a existência de relação de parceria entre os envolvidos, e “evidencia vantagem remuneratória não condizente com o liame de emprego”.
Se não fosse a retórica jurídica, as estampas burocráticas e os títulos ostentados pelos signatários do documento, seria crível pensar que se trata de mais um texto institucional da Uber, escrito por alguém de sua equipe de advocacy. “Ampla flexibilidade”, “autodeterminação”, “inexistência de subordinação”, “trabalho autônomo”, “relação de parceria”… são alguns dos sintagmas estruturantes dos discursos empresariais no e-marketplace, o mercado virtual de compra e venda de trabalho, por empresas-aplicativo como Rappi, Uber, Loggi e iFood, entre outras start-ups.
O canto de sereia que essas empresas entoam seduz pela promessa de uma vida sem subordinação a um patrão arbitrário, em que cada indivíduo seria um empresário de si e, portanto, autônomo para definir seu expediente, as tarefas que assumirá, o quanto ganhará. Não haveria mais empregados nem chefes, apenas empresários e empresas conectados digitalmente como parceiros.
No capitalismo de plataforma – expressão adotada por alguns autores para designar o capitalismo que se utiliza de infraestruturas e intermediações digitais de produção e circulação de mercadorias e serviços –, modificam-se o estatuto do trabalhador, do empregador, do consumidor, bem como as relações que tecem entre si. As empresas se convertem em softwares que conectam a demanda à oferta, a multidão de consumidores à multidão de prestadores de serviços permanentemente disponíveis para o trabalho just in time. A fim de que esse jogo funcione sem perdas (para as empresas), não basta a mão invisível invocada de tempos em tempos pelos liberais, é necessário, principalmente, as mãos bem visíveis do Estado, intervindo, por exemplo, para desregulamentar e flexibilizar o trabalho por meio de leis ou de jurisprudências, condição essencial para que as empresas-aplicativo criem mecanismos de transferência de riscos e custos para seus “parceiros”. À dispersão do trabalho e à disseminação dos custos que caracterizam o e-market, soma-se a terceirização do controle sobre o trabalho, que fica a cargo dos clientes, responsáveis por dar uma nota ao prestador de serviço, e dos próprios trabalhadores, obrigados a se gerenciarem constantemente segundo os parâmetros de avaliação de cada empresa.
Para evitar despesas, minimizar as ameaças e ampliar as possibilidades de ganho, o trabalhador precisa obedecer às regras definidas pelas empresas-aplicativo, o que, em geral, significa ser bem avaliado pelos consumidores, não recusar os trabalhos que lhe são oferecidos, permanecer conectado ao aplicativo a maior parte do dia, entre outras exigências que variam de acordo com a empresa. Assim, em vez de empreendedores de si, esses trabalhadores talvez possam ser mais adequadamente designados como “gerentes de si”, uma vez que lhes cabe administrar sua produtividade, sua jornada de trabalho, suas horas de intervalo, seus dias de folga, suas perdas e ganhos, suas estratégias de concorrência, sem, no entanto, terem a mais longínqua possibilidade de interferir nas regras da empresa, na divisão dos lucros ou no compartilhamento de eventuais ônus.
Tais subjetividades gerenciais são, assim, efeito da reprodução desse capitalismo de plataforma – e condição para que ela exista. Desde Freud, a psicanálise tem sustentado a tese de que não existe sociedade indiferente aos destinos pulsionais dos sujeitos, às formas como eles investem determinados objetos em detrimento de outros, à quantidade de satisfação que se está autorizado a obter – e de que maneira. Enfim, àquilo que se pode designar como economia libidinal. Nesse sentido, caberia a pergunta: que economia libidinal dos “gerentes de si” é requerida pelo capitalismo de plataforma?
Um pequeno recuo histórico pode ser importante para começar a respondê-la. Grosso modo, sob o império do fordismo e do taylorismo, a socialização dependia tanto da renúncia ao desejo de consumo irrestrito dos bens produzidos – aí incluída a própria força de trabalho – como da criação de padrões anatomofisiológicos e psíquicos determinados pelo ritmo e pelo espaço de trabalho, e para isso colaboravam os sistemas métricos e normalizadores desenvolvidos pelas recém-nascidas ciências do homem.
A reorganização produtiva colocada em marcha pelo neoliberalismo real dos anos 1970 e 1980 levou ao colapso dos dispositivos de socialização até então hegemônicos. As empresas-aplicativos são as herdeiras mais jovens desse processo. Agora, não se trata apenas de se adequar às medidas, de agir conforme os protocolos; além disso, é preciso, sobretudo, estar disposto a assumir os riscos de se lançar à procura do novo, do inédito, do impensado. A incessante jaculatória dos imperativos sociais de autonomia, flexibilidade, autodeterminação, rezada pelo acórdão dos juízes do TST, implica uma economia libidinal que não esteja prioritariamente baseada no cálculo neurótico dos impasses entre satisfação de moções pulsionais e normas sociais, mas que seja mobilizada permanentemente pela realização de um “a mais”. Trabalhar a mais para pegar tarefas a mais para ganhar a mais para receber pontos a mais nas avaliações para trabalhar a mais… No fim do dia, esse a mais se escreve como um a menos nos orçamentos da maioria dos trabalhadores: dinheiro a menos, prazeres a menos, saúde a menos. Faz-se sempre a mais com a esperança de saldar o que está a menos, mas o resultado é menos, ainda menos.
A medida dessa economia libidinal é a desmedida, o excesso. O psicanalista francês Jacques Lacan identificava esse excesso a uma das modalidades de gozo: o mais-de-gozar. Na arqueologia desse conceito polimórfico em Lacan, encontram-se estudos antropológicos e sociológicos sobre experiências sociais improdutivas, como a festa e o jogo, por exemplo, nos quais os esforços dos participantes culminavam na fruição de modalidades de satisfação conectadas ao desperdício, ao dispêndio, à destruição. As preocupações com a conservação da vida, com a adequação racional entre meios e fins, objetos e demandas, eram deixadas de lado durante esses acontecimentos para além dos limites do princípio do prazer. No divã de Freud, desde 1920, experiências desse tipo, às quais se somavam outras, como os traumas, tornavam visível o funcionamento de uma pulsão de retorno ao inorgânico, de aumento da desorganização psíquica até o ponto de colocar em risco a unidade do Eu, a que o psicanalista vienense chamou de pulsão de morte.
Administrar os destinos políticos dessa pulsão de morte é tarefa essencial de qualquer sociedade. Quanto ao capitalismo neoliberal, Lacan retratava-o como um modo de reprodução social que afirma não haver falta porque os objetos que a suprem supostamente estariam disponíveis a todos no mercado dos bens. Contudo, é exatamente o contrário. Ao conquistar um desses bens, é a insuficiência dele que o sujeito encontra, relançando-se novamente à procura de um novo objeto do qual possa extrair um mais-de-gozar. Esse movimento interminável levou Lacan a concluir que o capitalismo não é senão um gestor da falta-a-gozar.
No capitalismo de plataforma, isso tem significado criar dispositivos de intensificação e de extensão do trabalho que operam garantindo a promessa de grandes recompensas ou de pequenas bonificações para quem vencer a concorrência, inclusive contra si, contra seu cansaço, desânimo, medo, desgaste físico e psíquico. Em termos mais freudianos, os trabalhadores de plataforma repetem um conjunto de procedimentos impelidos pelo anseio de conquistar algo que possa pôr fim a seu desprazer cotidiano. No desespero de voltar para casa sem esse “a menos”, aposta-se a si, seu corpo, sua existência, como aconteceu recentemente em São Paulo com Thiago de Jesus Dias, entregador da Rappi, que faleceu em decorrência de um AVC sofrido enquanto trabalhava fazendo entregas. Nem a Rappi, nem um motorista de Uber chamado às pressas pelos passantes lhe prestaram auxílio. Desconectada de processos criativos e produtivos, a repetição se converteu, no caso de Thiago, no motor desintegrativo dos laços no universo do trabalho e, no fim, da própria vida. Thiago como metonímia de outros precarizados.
A repetição a serviço da desintegração dos laços é catalisada pelo capitalismo de plataforma como uma de suas formas de gestão da pulsão de morte. Por isso, quando não raro o trabalhador fracassa, ao seu redor não vê senão concorrentes, no celular que carrega existe apenas um aplicativo impessoal representando uma empresa intangível, e nas ruas que percorre encontra-se dispersa a multidão sem rosto de consumidores que o avaliam. Assumir individual e isoladamente a responsabilidade pelos próprios sofrimentos, desvinculando-os de qualquer motivação político-social, é um dos corolários do gerenciamento de si.
As injunções do e-market para que o trabalhador nunca ceda nos esforços de autoultrapassamento se reduzem, porém, a uma lógica meramente quantitativa, explícita na contagem infinita do “a mais”. Ainda que em todos os cantos se faça apologia ao novo, da intensificação do trabalho nunca resulta uma alteração qualitativa capaz de colocar em questão as formas contábeis que o sujeito assume – diferente do que Lacan entrevia quando fazia da pulsão de morte o motor de sua ética da psicanálise. Ao tentar ser “a mais” de si, o trabalhador não faz outra coisa senão repetir o mesmo.
Ao fim e ao cabo, a sentença dos juízes do TST é sintoma da razão neoliberal da qual partilha: ela irrealiza os conflitos sociais, particularmente aquele entre trabalho e capital, afirmando que exploração é autonomia, determinação é flexibilidade, dominação é parceria. Não é preciso muito para ouvir o que isso diz sobre a própria Justiça.
Fábio Luís F. N. Franco é psicanalista, membro do Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo e do LATESFIP/USP e pesquisador de pós-doutorado vinculado ao Instituto de Psicologia da USP e à Fundação Rosa Luxemburgo