O fascismo não é uma simples resposta desesperada da burguesia a uma ameaça revolucionária iminente, mas a expressão de uma crise de alternativa à ordem existente
Ugo Palheta, A terra é redonda / Contretemps, 20 de dezembro de 2020
O fascismo pode ser classicamente definido como uma ideologia, um movimento e um regime. Designa assim em primeiro lugar um projeto político de “regeneração” de uma comunidade imaginária – em geral a nação[i]– que supõe uma vasta operação de purificação, ou seja, a destruição de tudo que, do ponto de vista fascista, obstruiria essa homogeneidade fantasmada, dificultaria sua unidade quimérica, distanciaria de sua essência imaginária e dissolveria sua identidade profunda.
Como movimento, o fascismo está crescendo e conquistando uma ampla audiência, apresentando-se como uma força capaz de desafiar o “sistema”, mas também de restaurar a “lei e a ordem”; é esta dimensão profundamente contraditória de revolta reacionária, uma mistura explosiva de falsa subversão e ultraconservadorismo, que permite seduzir camadas sociais cujas aspirações e interesses são fundamentalmente antagônicos.
Quando o fascismo consegue conquistar o poder e se transformar em regime ou mais precisamente em estado de exceção, ele sempre tende a perpetuar a ordem social, apesar de suas reivindicações “antissistema” e às vezes até “revolucionárias”.
Esta definição permite estabelecer uma continuidade entre o fascismo histórico, o do período entre guerras e o que aqui chamaremos de neofascismo, ou seja, o fascismo de nossos tempos. Como veremos mais adiante, afirmar tal continuidade não implica em ser cego às diferenças de contextos.
Se sua suposta ascensão ocorre em um cenário de crise estrutural do capitalismo, instabilidade econômica, frustrações populares, aprofundamento dos antagonismos sociais (de classe, raça e gênero) e pânico de identidade, o fascismo não entra na ordem do dia apenas quando a crise política atinge um nível de intensidade que se torna intransponível no quadro das formas estabelecidas de dominação política, ou seja, quando não é mais possível à classe dominante assegurar a estabilidade da ordem social e política através dos meios ordinários associados à democracia liberal e pela simples renovação de seu pessoal político.
Isso é o que Gramsci nomeou crise de hegemonia (ou “crise orgânica”), cujo componente central é a crescente incapacidade da burguesia de impor sua dominação política pela fabricação de um consentimento majoritário à ordem das coisas, isto é, sem um aumento significativo no grau de coerção física. Na medida em que o elemento fundamental que caracteriza esta crise não é o surgimento impetuoso das lutas populares, e muito menos um levante que criaria profundas fissuras no Estado capitalista, este tipo de crise política não pode ser caracterizada como crise revolucionária, ainda que a crise de hegemonia possa, em certas condições, conduzir a uma situação de tipo revolucionário ou pré-revolucionário.
Tal incapacidade decorre, em particular, de um enfraquecimento dos laços entre representantes e representados, ou, mais precisamente, das mediações entre o poder político e os cidadãos. No caso do neofascismo, esse enfraquecimento se reflete no declínio das organizações tradicionais de massa (partidos políticos, sindicatos, associações), sem as quais a “sociedade civil” é pouco mais que um slogan eleitoral (pensemos nas famosas “personalidades da sociedade civil”), promove a atomização dos indivíduos e assim os condena à impotência, disponibilizando-os para novos afetos políticos, novas formas de adesão e novos modos de ação. Ora esse enfraquecimento, que torna a formação de milícias de massa em grande parte supérflua para os neofascistas, é o próprio produto das políticas burguesas e da crise social que eles não podem deixar de engendrar.
3. Crise de hegemonia (2)
No caso do fascismo de nosso tempo (neofascismo), é óbvio que são os efeitos cumulativos das políticas seguidas desde os anos 1980, como parte da resposta “neoliberal” das burguesias ocidentais à onda revolucionária dos anos 1968, que tiveram sucesso em todos os lugares – em proporções diversas, dependendo do país – a formas mais ou menos agudas de crise política (aumento dos níveis de abstenção, desintegração gradual ou colapso repentino de partidos no poder, etc.), criando as condições para uma dinâmica fascista.
Ao lançar uma ofensiva contra o movimento operário organizado, ao romper metodicamente todos os alicerces do “compromisso social” do pós-guerra, que dependia de uma certa relação entre as classes (uma burguesia relativamente enfraquecida e uma classe trabalhadora organizada e mobilizada), a classe dominante se tornou gradualmente incapaz de construir um bloco social composto e hegemônico. Acrescente-se a isso a forte instabilidade da economia mundial e as dificuldades enfrentadas pelas economias nacionais, que enfraquecem profunda e duramente o crédito que as populações podem dar às classes dominantes e sua confiança no sistema econômico.
4. Crise de hegemonia (3)
Na medida em que a ofensiva neoliberal tornou mais difícil a mobilização no local de trabalho – especialmente na forma de greve – ao enfraquecer os sindicatos e aumentar a precariedade, esse descontentamento tende cada vez mais a se expressar em outros lugares e de diferentes formas:
– A abstenção eleitoral crescente em todos os lugares (mesmo que às vezes seja reduzida quando uma determinada eleição é mais polarizada) e atingindo níveis muitas vezes nunca vistos antes;
– Um declínio – progressivo ou brutal – por parte importante dos partidos institucionais dominantes (ou o surgimento dentro deles de novos movimentos e figuras, como o Tea Party e Trump, no caso do Partido Republicano nos Estados Unidos) ;
– O surgimento de novos movimentos políticos ou a ascensão de forças outrora marginais;
– A eclosão de movimentos sociais que se desenvolvem fora dos quadros tradicionais, ou seja, essencialmente fora do movimento operário organizado (o que não quer dizer sem nenhum vínculo com a esquerda política e os sindicatos).
Os neofascistas conseguem, em certos contextos nacionais, integrar-se em vastos movimentos sociais (Brasil) ou provocar eles próprios mobilizações de massa (Índia); acontece também que suas ideias permeiam certas franjas desses movimentos. No entanto, isso geralmente não é suficiente para que as organizações neofascistas se transformem em movimentos militantes de massa, pelo menos nesta fase, e as lutas extraparlamentares tendem mais para ideias de emancipação social e política (anticapitalismo, antirracismo, feminismo, etc.) do que para o neofascismo. Embora carecendo de coesão estratégica e de um horizonte político comum, às vezes até de demandas unificadas, essas mobilizações geralmente apontam para o objetivo de ruptura com a ordem social e existem concretamente a possibilidade de uma bifurcação emancipatória.
Em todos os casos, a ordem política está profundamente desestabilizada. É evidentemente neste tipo de situação que os movimentos fascistas podem aparecer – em diferentes grupos sociais e por razões contraditórias- tanto como uma resposta essencialmente eleitoral (nesta fase pelo menos) ao declínio da capacidade hegemônica das classes dominantes, quanto como uma alternativa ao jogo político tradicional.
Ao contrário da ideia comum (em parte da esquerda), o fascismo não é uma simples resposta desesperada da burguesia a uma ameaça revolucionária iminente, mas a expressão de uma crise de alternativa à ordem existente e de uma derrota das forças contra-hegemônicas. Se é verdade que os fascistas mobilizam o medo (real ou não) da esquerda e dos movimentos sociais, é na verdade a incapacidade da classe explorada (proletariado) e dos grupos oprimidos de se constituírem como sujeitos políticos revolucionários e de se engajarem em uma experiência de transformação social (mesmo limitada) o que permite que a extrema direita apareça como alternativa política e ganhe o apoio de grupos sociais muito diversos.
Na situação atual, como durante os anos entre as guerras, enfrentar o perigo fascista não significa apenas liderar lutas defensivas contra o endurecimento autoritário, as políticas anti-imigração, o desenvolvimento de ideias racistas, etc., mas também (e mais profundamente) que os explorados e oprimidos consigam se unificar politicamente em torno de um projeto de ruptura com a ordem social e aproveitar a oportunidade apresentada pela crise de hegemonia.
No primeiro estágio de seu acúmulo de forças, o fascismo busca dar uma aparência subversiva à sua propaganda e se apresentar como uma revolta contra a ordem existente. Ele o faz desafiando tanto os representantes políticos tradicionais das classes dominantes(de direita) como das classes dominadas (de esquerda), sendo todos culpados de contribuir para a desintegração demográfica e cultural da “Nação” (concebida de forma fantásmica, como um essência mais ou menos imutável): os primeiros favoreceriam o “globalismo de cima” (nas palavras de Marine Le Pen), o das finanças “cosmopolitas” ou “apátridas” (com as conotações antissemitas que inevitavelmente carregam tais expressões), enquanto o segundo alimentaria o “globalismo de baixo”, o dos migrantes e das minorias raciais (com toda a gama de xenofobia tradicional inerente à extrema direita).
Fazendo da “Nação” a solução para os crimes – crise econômica, desemprego, “insegurança”, etc.– invariavelmente atribuídos ao que é por ele considerado estrangeiro (em particular tudo o que tenha a ver direta ou indiretamente com a imigração), o fascismo afirma ser uma força “antissistema” e constituir uma “terceira via”, nem direita nem esquerda, nem capitalismo nem socialismo. A falência da direita e as traições da esquerda credibilizam o ideal fascista de uma dissolução das divisões políticas e antagonismos sociais em uma “Nação” que é finalmente “regenerada” porque é politicamente unificada (na realidade colocada sob o controle de fascistas), ideologicamente unânime (ou seja, privada de qualquer meio de expressar publicamente qualquer forma de protesto) e etno-racialmente “purificada”, em outras palavras, libertadas de grupos considerados intrinsecamente “estranhos” e “inassimiláveis”, “inferiores” e “perigosos.
O fato é que, em um segundo momento, ocorre o que se poderia chamar de seu momento “plebeu” ou “antiburguês” (personagem ao qual o fascismo nunca renuncia completamente, pelo menos na fala e que é uma de suas especificidades), os líderes fascistas aspiram a forjar uma aliança com representantes da burguesia – geralmente por meio da mediação de partidos ou líderes políticos burgueses – para selar seu acesso ao poder, usar o Estado a seu favor (para fins políticos, mas também para enriquecimento pessoal, como todas as experiências fascistas têm mostrado e regularmente ilustrado por condenações judiciais de representantes de extrema direita por desvio de fundos públicos), enquanto prometia ao capital a aniquilação de toda oposição. Das pretensões iniciais a uma “terceira via” nada resta, o fascismo nada propõe senão fazer o capitalismo funcionar sob o regime da tirania.
A crise da ordem social também se apresenta como uma crise das relações opressoras, uma dimensão que é particularmente aguda no caso do fascismo contemporâneo (neofascismo). A perpetuação da dominação branca e da opressão das mulheres, bem como das minorias de gênero, é de fato desestabilizada ou mesmo ameaçada pelo aumento em escala global, muito desigual segundo o país, DOS movimentos antirracistas, feministas e LGBTQI.
Organizando-se coletivamente, revoltando-se respectivamente contra a ordem racista e heteropatriarcal, falando com sua própria voz, os não-brancos, as mulheres e as minorias de gênero tornam-se cada vez mais sujeitos políticos autônomos (o que em nada impede divisões, principalmente se faltar uma força política capaz de unificar os grupos subalternos).
Em resposta, este processo não pode deixar de despertar radicalizações racistas e machistas que se desdobram em várias formas e direções, mas encontram sua plena coerência política no projeto fascista. Isso de fato articula a representação delirante de uma reviravolta em curso ou já ocorrendo nas relações de dominação (com essas mitologias variadas de “dominação judaica”, “grande substituição”, “colonização reversa”, “racismo anti-branco”, “feminização da sociedade”, etc.) à vontade fanática de grupos opressores de manter, custe o que custar, o seu domínio.
Se as extremas direitas se opõem em todos os lugares aos movimentos e discursos feministas, se nunca rompe com uma concepção essencialista dos papéis de gênero, pode às vezes, dependendo das necessidades políticas e dos contextos nacionais, adotar uma retórica de defesa dos direitos das mulheres e das minorias sexuais. Eles então chegam a silenciar algumas de suas posições tradicionais (proibição do aborto, criminalização da homossexualidade, etc.), e a enriquecer com novos tons o leque do discurso nacionalista: isso fará dos “estrangeiros”[ii]os responsáveis pela violência sofrida por mulheres e homossexuais. O nacionalismo feminino e o homo nacionalismo tornam assim possível atingir novos segmentos do eleitorado, ganhar respeitabilidade política e, no processo, desviar qualquer crítica sistêmica ao heteropatriarcado.
A crise da ordem existente não é simplesmente econômica, social e política. Também se apresenta, em particular por causa das mudanças climáticas atuais, como uma crise ambiental.
O neofascismo aparece atualmente dividido pelos fenômenos mórbidos associados ao Capitaloceno. Grande parte dos movimentos, ideólogos e líderes neofascistas minimizam o aquecimento global, ou mesmo o negam abertamente, defendendo uma intensificação do extrativismo (carbo-fascismo). Por outro lado, certas correntes que podem ser qualificadas como ecofascistas afirmam constituir uma resposta à crise ambiental, mas fazem pouco mais do que reviver e compor como “ecologia” as velhas ideologias reacionárias da ordem natural, ainda associadas a ideias de desempenhos e hierarquias tradicionais (de gênero em particular), mas também de comunidades orgânicas fechadas, em nome da “pureza racial” ou a pretexto de “incompatibilidade de culturas”. Da mesma forma, costumam utilizar a suposta urgência do desastre para apelarem por soluções ultra-autoritárias (eco-ditaduras) e racistas (seu neo-malthusianismo quase sempre justifica, segundo eles, uma repressão crescente aos migrantes e uma interdição quase total da imigração).
Se os últimos permanecem em grande parte minoritários, quando comparados aos primeiros e não formam correntes políticas de massa, suas ideias se desenvolvem inegavelmente e chegam a permear o senso comum neofascista, de modo que emerge uma ecologia de identidade como campo ambiental da luta para os antifascistas. Essa clivagem também se refere a uma tensão intrínseca ao fascismo “clássico”, entre um hipermodernismo que exalta a grande indústria e a tecnologia como marcadores e alavancas do poder nacional (econômico e militar), e um antimodernismo que idealiza a terra e a natureza como centros de valores autênticos com os quais a Nação deve se reconectar para encontrar sua essência.
Se o fascismo quer aparecer como uma alternativa à ordem existente (e consegue pelo menos em parte), se muitas vezes chega a se apresentar como uma “revolução” (nacional), não é simplesmente a roda sobressalente do estado atual das coisas, mas o meio de remover toda oposição ao capitalismo ecocida, racial e patriarcal; em outras palavras, uma autêntica contrarrevolução.
A menos que tomemos em consideração a sua palavra – e assim validemos – as suas pretensões de estar do lado dos “pequenos” ou dos “sem posição”, de mobilizar o “povo” e de constituir um programa de transformação social que lhe seja favorável, ou para adotar uma definição puramente formal / institucional do conceito de “revolução”, tornado simplesmente sinônimo de mudança de regime, o fascismo não pode ser descrito como “revolucionário”: ao contrário, toda a sua ideologia e toda a sua prática de poder tende à consolidação e ao reforço, por métodos criminosos, das relações de exploração e opressão. Mais profundamente, o projeto fascista intensifica essas relações, para produzir um corpo social extremamente hierárquico (perspectiva de classe e gênero), padronizado, (do ponto de vista das sexualidades e identidades de gênero) e homogeneizado (do ponto de vista étnico-racial). O aprisionamento e o crime em massa (genocídio) não são consequências fortuitas, mas um potencial inerente ao fascismo.
O fascismo mantém uma relação ambivalente com os movimentos sociais. Na medida em que seu sucesso depende de sua capacidade de aparecer como uma força “antissistema”, ele não pode se contentar com uma oposição frontal aos movimentos de protesto e às esquerdas. Assim, os fascismos – “clássicos” ou atuais – não cessam de tomar emprestada parte de sua retórica desses movimentos para conformar uma poderosa síntese política e cultural.
Para tanto, três táticas principais são empregadas:
– A recuperação parcial de elementos do discurso crítico e programático, mas privados de qualquer dimensão sistêmica e de qualquer objetivo revolucionário. O capitalismo, por exemplo, não é criticado em seus fundamentos, ou seja, na medida em que se baseia numa relação de exploração (capital / trabalho), pressupõe a propriedade privada dos meios de produção e também uma coordenação pelo mercado, mas apenas em seu caráter globalizado ou financeirizado (o que permite, como dissemos acima, jogar com os velhos tons antissemitas do clássico discurso fascista, que ainda tem seu apelo entre certas franjas da população). É compreensível, deste ponto de vista, que as críticas ao livre comércio, e ainda mais o apelo ao “protecionismo”, tenham todas as chances, se não estiverem coerentemente vinculadas ao objetivo de ruptura com capitalismo, para fortalecer ideologicamente a extrema direita.
– O desvio da retórica da esquerda e dos movimentos sociais para torná-la uma arma contra os “estrangeiros”, isto é, contra as minorias raciais. Esta é a lógica do femo-nacionalismo e do homo nacionalismo mencionados acima, mas também da defesa “nacionalista” do secularismo: embora a extrema direita tenha se oposto ao longo de sua história aos direitos das mulheres e LGBTQI ou ao princípio do secularismo, algumas de suas correntes (em particular, a atual liderança do Front National/Régénération Nationale franceses) agora afirmam ser melhores defensores, o que no último caso supôs uma redefinição completado secularismo.
– Ou a inversão da crítica feminista ou antirracista, ao afirmar que os oprimidos se tornaram os opressores. Portanto, um ideólogo no processo de aceleração da fascização poderia recentemente afirmar o seguinte “Estamos em um regime comunitário anti-branco e racialista, em outras palavras, um apartheid reverso” (Michel Onfray, filósofo de sucesso mediático). Da mesma forma, vemos regularmente Eric Zemmour ou Alain Soral (promotores do neofascismo) afirmarem que os homens são agora dominados pelas mulheres e, portanto, impedidos de realizar sua essência dominante. Este tipo de discurso é a melhor forma de apelar, sem o dizer explicitamente, a uma operação supremacista de “reconquista”, ou seja, de afirmação branca ou masculina.
Os regimes liberais e fascistas não se opõem como a democracia e a dominação se oporiam. Em ambos os casos, obtém-se a submissão de proletários, mulheres e minorias, relações entrelaçadas de exploração e dominação são implantadas e perpetuadas e toda uma série de violências inevitavelmente e estruturalmente associadas a essas relações; em ambos os casos, a ditadura do capital sobre a sociedade continua. São, na realidade, duas formas distintas de dominação política burguesa, ou seja, dois métodos diferentes pelos quais se consegue subjugar os grupos subordinados e impedi-los de realizar uma transformação revolucionária.
A mudança para métodos fascistas é sempre precedida por um conjunto de renúncias, pela própria classe dominante, a certas dimensões fundamentais da democracia liberal. As arenas parlamentares são cada vez mais marginalizadas e contornadas, à medida que o poder legislativo é assumido pelo executivo e os métodos de governo se tornam cada vez mais autoritários (decretos-leis, portarias, etc.). Mas esta fase de transição entre a democracia liberal e o fascismo exige, acima de tudo, a limitação crescente das liberdades de organização, reunião e expressão, ou mesmo do direito de greve.
É sem muita difusão que ocorre o endurecimento autoritário, que cada vez mais faz repousar o poder político no apoio e na lealdade dos aparatos repressivos do Estado, arrastando-o para uma espiral antidemocrática. Assim, sobrevém uma rede de segurança cada vez mais rígida nos bairros de classe trabalhadora e de imigração; manifestações proibidas, prevenidas ou severamente reprimidas; detenções preventivas e arbitrárias; julgamentos expeditos de manifestantes e uso crescente de sentenças de prisão; demissões cada vez mais frequentes de grevistas; redução do escopo e das possibilidades de atuação sindical, etc.
Dizer que a oposição entre a democracia liberal e o fascismo reside nas formas políticas de dominação burguesa não significa que o antifascismo, os movimentos sociais e a esquerda devam ser indiferentes ao declínio das liberdades públicas e dos direitos democráticos. Defender essas liberdades e direitos não é semear a ilusão de um Estado ou de uma república concebidos como árbitro neutro dos antagonismos sociais. É defender uma das principais conquistas das classes populares durante os séculos XIX e XX, a saber, o direito dos explorados e oprimidos de se organizarem e se mobilizarem para defender as suas condições de trabalho e de vida. Trata-se da base essencial para o desenvolvimento de uma consciência de classe, feminista e antirracista. Mas também se afirma como alternativa à desdemocratização que o neoliberalismo traz em seu próprio projeto.
12. Fascismo e democracia liberal (2)
O fascismo atua especificamente pelo esmagamento de toda forma de contestação, que seja revolucionária ou reformista, radical ou moderada, global ou parcial. Em todo lugar em que o fascismo se torna prática de poder, ou seja, regime político, nada ou quase mais resta em alguns anos e mesmo em alguns meses, da esquerda política, do movimento sindical ou ainda das formas de organização das minorias, ou seja, de toda forma estável e cristalizada de resistência.
Lá onde o regime liberal tende a enganar os subalternos ao cooptar uma parte de seus representantes e incorporando algumas de suas organizações na forma de coalizão (como participantes minoritário, sem voz ativa) ou de negociações (o pretenso “diálogo social” no qual os sindicatos ou associações desempenham o papel de pretexto) ou mesmo ao integrarem algumas de suas reivindicações, o fascismo pretende destruir toda forma de organização não assimilável ao Estado fascista e a eliminar a própria aspiração de organização coletiva fora dos quadros das organizações fascistas ou próximas. O fascismo se apresenta como a forma política que promove a destruição quase completa da capacidade de autodefesa dos subalternos – ou sua redução a formas de resistência moleculares, passivas ou clandestinas.
É necessário notar, entretanto, que nesta obra de destruição, o fascismo não pode obter a passividade de grande parte do corpo social unicamente por métodos repressivos ou por discursos dirigidos tal ou qual bode expiatório. Ele não consegue estabilizar seu domínio senão satisfazendo os interesses materiais imediatos de alguns grupos (trabalhadores desempregados, pequenos empregadores empobrecidos, funcionários etc.), ao menos aqueles que, no interior desses grupos, são reconhecidos pelos fascistas como “verdadeiros nacionais”. Num contexto de abandono das classes populares pela esquerda, não se deve subestimar a força de atração de um discurso que promete reservar empregos e ajudas sociais a estes pretensos “verdadeiros nacionais” (que, nunca se dirá suficientemente, que na visão fascista não são definidos por um critério jurídico de nacionalidade, mas por um critério de origem, portanto etno-racial).
Se o fascismo é às vezes descrito falsamente como “revolucionário” devido a seus apelos ao “povo” ou porque interviria pela ação das “massas”, em uma analogia superficial com o movimento operário, é porque são misturadas coisas muito diferentes sob as denominações “povo” e “ação”.
O “povo”, como o entendem os fascistas, não designa um grupo que compartilha de certas condições de existência (no sentido em que a sociologia fala de classes populares), nem de uma comunidade politica que inclui todas e todos unidos por uma vontade comum de pertenecimento, mas sim uma comunidade etno-racial fixada uma vez por todas, reunindo aquelas e aqueles que procederiam “daqui mesmo” (que o critério de pertencimento ao “povo” seja pseudo-biológico ou pseudo-cultural). Isto equivale na realidade na um corpo social desprovido de inimigos (o “partido do estrangeiro”, como dizem Drumont e Zemour, propagandistas fascistas, o primeiro dos fins do século XIX ao século XX e o segundo, atual).
No que diz respeito à ação propriamente fascista, ela oscila idealmente entre a expedição punitiva executada por grupos armados (bandos não estatais ou setores dos aparelhos do Estado autonomizados ou em vias de sê-lo)[iii], a marcha de tipo militar ou o plebiscito eleitoral.
Se a primeira atinge as lutas sociais e mais globalmente os subalternos (trabalhadoras e trabalhadores grevistas/os minorias étnico-raciais, mulheres em luta etc.), afim de desmoralizar o adversário e de limpar o terreno para a implantação fascista, a segunda tem por objetivo produzir um efeito simbólico e psicológico de massa, para mobilizar as afeições em favor do chefe, do movimento ou do regime, enquanto que a terceira visa ratificar passivamente por um conjunto de indivíduos atomizados a vontade do chefe ou do movimento.
Se o fascismo apela efetivamente às massas, não é para estimular sua ação autônoma a partir de interesses específicos (política de classe) favorizando por exemplo formas de democracia direta onde se discutiria e agiria coletivamente, mas para apoiar os chefes fascistas e dar-lhes um argumento de peso nas negociações com a burguesia para o acesso ao poder. A participação popular nos movimentos fascistas – e mais ainda nos regimes – é em sua maior parte comandada pela cúpula para seus objetivos e em suas formas e supõe a deferência mais absoluta em relação àqueles que seriam destinados pela sua natureza a comandar.
São encontradas, entretanto, formas de mobilização pela base no primeiro momento do fascismo, pelos ramos plebeus que fornecem suas tropas de choque ao levarem a sério suas promessas antiburguesas e seu pseudo anticapitalismo. Quando, entretanto, a crise política se acentua e que a aliança entre os fascistas e a burguesia é efetivada, as tensões aparecem entre esta burguesia e a direção do movimento fascista. Esta última procurará sempre se desembaraçar da direção destas milícias[iv], enquanto procura canalizá-las integrando-as ao Estado fascista em construção.
Na realidade, no que diz respeito à ação, o fascismo nunca ofereceu às massas senão a escolha entre a obediência, passiva ou ruidosa, aos chefes fascistas e o Manganello[v], a repressão, indo com frequência nos regimes fascistas até a tortura e o assassinato, inclusive de alguns de seus mais fervorosos partidários.
O fascismo é uma contra-revolução « póstuma et preventiva[vi].Póstuma na medida em que se nutre do fracasso da esquerda política e dos movimentos sociais a se alçarem à situação histórica, a se constituírem em solução à crise política e a iniciarem uma experiência de transformação revolucionária. Preventiva, porque visa destruir adiantadamente tudo o que poderia nutrir e preparar uma futura experiência revolucionária: organizações explicitamente revolucionárias, mas também movimentos antirracistas, feministas e LGBTQI, lugares de vida auto-gestionários, jornalismo independente etc., ou seja, a menor forma de contestação da ordem das coisas.
É inegável que a violência extra-estatal sob a forma de organizações paramilitares de massa desempenhou um papel importante, embora sem dúvida superestimado, na ascensão dos fascistas – o que os distingue de outros movimentos reacionários que não procuraram organizar militarmente as massas. Ocorre que, ao menos no momento atual, a grande maioria dos movimentos neofascistas não se constrói à partir do acionamento de milícias de massa e não dispõe de tais milícias (com a exceção do BJP indiano e, em menor grau, em termos de implantação de massa, do Jobbik húngaro e da Aurora Dourada na Grécia).
Há diferentes hipóteses para explicar porque os neofascistas não conseguem ou não querem construir tais milícias:
– A deslegitimização da violência política, particularmente nas sociedades ocidentais, que levaria à marginalidade eleitoral os partidos políticos que constituíssem estruturas paramilitares;
– A ausência de uma experiência equivalente à Primeira Guerra mundial, em termos de brutalização das populações, ou seja, o hábito do exercício da violência, que disponibilizaria para os fascistas massas de homens dispostos a se inscreverem numa perspectiva de exercício da violência através das milícias fascistas armadas;
– O enfraquecimento da capacidade dos movimentos operários de estruturar, organizar e fiscalizar, sindical e politicamente, as classes populares, o que faz com que os fascistas de nosso tempo não tenham mais diante de si um adversário que realmente seria imprescindível quebrar pela força para se imporem, o que exigiria um aparato de violência em massa;
– O fato de os Estados serem muito mais poderosos hoje e possuírem instrumentos de vigilância e repressão de uma sofisticação incomparável a dos Estados do período entre guerras, e assim os fascistas atuais podem sentir que a violência do Estado é suficiente para aniquilar, fisicamente, se necessário, qualquer forma de oposição;
– Finalmente, o caráter estrategicamente crucial para os neofascistas se distinguirem das formas mais visíveis de continuidade com o fascismo histórico e, em particular, com essa dimensão da violência extra-estatal. É preciso lembrar, sob esse ponto de vista, que o “Front National” foi criado em 1972 na França a partir de uma estratégia de respeitabilização desenvolvida e implementada pelos líderes da “Nova Ordem”, uma organização inegavelmente neofascista.
Essas hipóteses nos permitem insistir no fato de que a constituição de milícias de massa foi tornada necessária e possível para os movimentos fascistas no contexto muito particular do período entre guerras.
Mas nem a constituição de bandos armados, nem mesmo o uso da violência política, constituem a peculiaridade do fascismo, seja como movimento ou como regime: não que não estejam presentes centralmente, mas outros movimentos e outros regimes, não pertencentes à constelação do fascismo, recorreram à violência para ganhar ou manter o poder, às vezes matando dezenas de milhares de oponentes (sem falar no uso legítimo da violência pelos movimentos de libertação).
Dimensão mais visível do fascismo clássico, as milícias extra estatais são, na realidade, um elemento subordinado à estratégia das lideranças fascistas, que as utilizam taticamente de acordo com as demandas impostas pelo desenvolvimento de suas organizações e pela conquista legal do poder político, que supõem, desde o período entre guerras, e ainda mais hoje, parecer um tanto respeitável, mantendo as formas mais visíveis de violência à distância. A força dos movimentos fascistas ou neofascistas é então medida por sua capacidade de lidar – conforme a situação histórica – com táticas legais e violentas, « guerra de posição » e « guerra de movimento », usando as categorias de Gramsci.
16. O processo de fascistização
A vitória do fascismo é o produto conjunto de uma radicalização de setores inteiros da classe dominante, por medo de que a situação política lhes escape, e de um entrincheiramento social do movimento, das ideias e dos afetos fascistas. Ao contrário de uma representação comum, bem adequada para absolver as classes dominantes e as democracias liberais de suas responsabilidades na ascensão dos fascistas ao poder, os movimentos fascistas não conquistam o poder político como uma força armada apreende uma cidadela, por uma ação puramente externa a tomar, como um ataque militar. Se geralmente conseguem obter o poder por meios legais, o que não quer dizer sem derramamento de sangue, é porque essa conquista é preparada por todo um período histórico que pode ser referido pela expressão de fascização.
É apenas ao final deste processo que o fascismo pode surgir – obviamente hoje sem dizer seu nome, e disfarçando seu projeto, dado o opróbrio universal que envolveu as palavras “fascismo” e “fascista” desde 1945, tanto como uma (falsa) alternativa para vários setores da população e como uma solução (real) para uma classe dominante politicamente pressionada. É então que, de um movimento essencialmente pequeno-burguês, pode tornar-se um verdadeiro movimento de massas, interclassista, ainda que o seu cerne sociológico, que o sustenta, continue a ser a pequena burguesia: pequenos trabalhadores independentes, profissões liberais, executivos médios.
17. Formas de fascistização
A fascização se expressa de múltiplas maneiras, à través de uma ampla variedade de “sintomas mórbidos” (para usar a expressão de Gramsci novamente), mas dois vetores principais podem ser destacados: o endurecimento autoritário do Estado e a ascensão do racismo. Se a primeira evidentemente tem como principal campo de expressão os aparatos repressivos do Estado (com este ator específico de fascização constituído pelos sindicatos de policiais), não devemos esquecer a responsabilidade primária dos líderes políticos, no caso francês de Sarkozy e Hortefeux a Macron e Castaner via Hollande e Valls (PS). E se a violência policial faz parte da longa história do Estado e da polícia, é a crise da hegemonia, ou seja, o enfraquecimento político da burguesia, que a torna cada vez mais dependente de sua polícia, o que aumenta a força, mas também a autonomia, desta última[vii]: o Ministro do Interior não tende mais a conduzir e controlar a polícia, mas a defendê-la a todo custo, aumentando seus recursos etc.
A ascensão do racismo também combina a longa história do Estado francês, um antigo poder imperial no qual a opressão colonial e racial ocupou – e continua ocupando – um lugar central, e a curta história do campo político. Diante da crise de hegemonia, a extrema direita e setores da direita – no entendimento de que essas forças políticas representam distintas frações de classe – têm o projeto de solidificar um bloco branco, capaz de trazer uma forma de compromisso social para uma base étnico-racial, por uma política de despejo sistemático de não-brancos ou, em outras palavras, de preferência racial. Além disso, ao enfatizar constantemente o perigo que os migrantes e as mulheres muçulmanas representariam para a ordem pública, mas também para a integridade cultural da “Nação”, essas forças justificam a licença concedida às forças policiais nos bairros de imigração e contra as mulheres migrantes, o aumento da repressão aos movimentos sociais, em uma palavra, o autoritarismo estatal. Assim, podemos falar, nas palavras do escritor e líder negro Aimé Césaire –de um enselvajamento, processo de selvageria – da classe dominante, que aparece acima de tudo através de práticas e dispositivos de repressão dirigidos primeiro contra as minorias étnico-raciais e depois contra as mobilizações sociais (coletes amarelos, sindicatos, antirracistas, antifascistas, ambientalistas, etc.). Mas a selvageria também está surgindo, cada vez mais comum, na forma de declarações públicas (imagine o que é dito em privado …): Pensamos neste ex-ministro da Educação Nacional e intelectual onipresente da mídia, neste caso Luc Ferry, conclamando a polícia a “usar suas armas” contra os coletes amarelos; pense neste enxame de ideólogos, Zemmour sendo apenas a árvore que esconde a floresta, que fez da mídia e da islamofobia editorial uma indústria florescente.
A fascização do Estado não deve, portanto, em caso algum, ser reduzida, especialmente na primeira fase que antecede a conquista do poder político pelos fascistas, à integração ou ao surgimento de elementos fascistas reconhecidos como tais nos aparelhos de manutenção da ordem (polícia, exército, justiça, prisões). Pelo contrário, funciona como uma dialética entre as transformações endógenas desses aparatos, fruto de escolhas políticas feitas pelos partidos burgueses ao longo de quase três décadas (todas orientadas para a construção de um “Estado penal” sobre as cinzas do “Estado social », para usar as categorias de Loïc Wacquant), e poder político – principalmente eleitoral e ideológico nesta fase – da extrema direita organizada.
Para simplificar, o fascínio da polícia não se expressa e não pode ser explicado principalmente pela presença de militantes fascistas dentro dela, ou pelo fato de que os policiais votam maciçamente na extrema direita (na França e em outros lugares), mas pelo seu fortalecimento e empoderamento (em particular dos setores responsáveis pelas tarefas mais brutais de manutenção da ordem, nos distritos de imigração, contra as mulheres migrantes e, secundariamente, nas mobilizações). Em outras palavras, a polícia está cada vez mais se emancipando do poder político e da lei, ou seja, de qualquer forma de controle externo (sem falar de um controle popular indetectável).
A polícia, portanto, não se torna fascista em seu funcionamento, unicamente porque teria sido gradualmente devorada pelas organizações fascistas. Pelo contrário, é porque todo o seu funcionamento se torna fascisado – obviamente em graus diversos conforme o setor – que é tão fácil para a extrema direita disseminar suas ideias dentro dela e se enraizar. Isso é particularmente visível pelo fato de não termos testemunhado nos últimos anos uma progressão na força policial do sindicato diretamente ligada à extrema direita organizada (France Police-Policiais indignados), mas um duplo processo: o surgimento de mobilizações facciosas vindas da base (mas cobertas pela cúpula, no sentido de que não estavam sujeitas a quaisquer sanções administrativas); e a radicalização de direita dos principais sindicatos da polícia (Aliança e Unidade de Polícia do SGP-FO).
O processo de fascização é eminentemente contraditório, pois decorre em primeiro lugar da crise de hegemonia e do endurecimento dos confrontos sociais, e, portanto, é altamente instável. Esta não é de forma alguma uma estrada real para o movimento fascista.
A classe dominante pode, de fato, ter sucesso em certas circunstâncias históricas em provocar o surgimento de novos representantes políticos, em integrar certas demandas dos subordinados e, assim, construir as condições para um novo compromisso social (que permite não ter que ceder o poder político aos fascistas, a fim de manter seu poder econômico)[viii].No entanto, é improvável que as classes dominantes sejam levadas, no contexto atual, a aceitar novos compromissos sociais sem uma sequência de lutas de alta intensidade que imponham um novo equilíbrio de poder menos desfavorável às classes populares.
Se o processo de fascização não termina necessariamente no fascismo, é também porque o movimento fascista, assim como as classes dominantes, enfrenta a esquerda política e os movimentos sociais. O sucesso dos fascistas depende em última instância da capacidade – ou ao contrário da impotência – dos subordinados de investir vitoriosamente todos os campos da luta política, de se constituírem como sujeito político autônomo e de imporem uma alternativa revolucionária.
Se a conquista do poder político pelos fascistas – geralmente por meios legais, repitamos – é uma vitória crucial para eles, não é a última palavra na história. Um período de luta começa necessariamente no dia seguinte a esta vitória que pode suceder – dependendo do equilíbrio político e social do poder, das lutas travadas ou não, conforme sejam vitoriosas ou derrotadas:
– seja para a construção de uma ditadura fascista ou policial militar (quando os movimentos populares sofrem uma derrota histórica e a burguesia está politicamente muito enfraquecida ou dividida);
– seja para a normalização burguesa (quando o movimento fascista é muito fraco para construir um poder político alternativo e há uma resposta popular importante, mas não suficiente para ir além de uma vitória defensiva);
– seja em uma sequência revolucionária (quando o movimento popular é forte o suficiente para reunir importantes forças sociais e políticas em torno dele e se envolver em um confronto com as forças burguesas e o movimento fascista).
Se o antifascismo aparece, antes de mais nada, como uma reação ao desenvolvimento do fascismo, portanto uma ação defensiva ou de autodefesa (popular, antirracista, feminista), não pode, entretanto, ser reduzido a um combate corpo a corpo com grupos fascistas; e ainda mais porque as táticas de construir movimentos fascistas em nosso tempo dão menos espaço à violência em massa – exceto sem dúvida na Índia, como dissemos acima – do que no caso do fascismo “clássico”. (ver tese 15). O antifascismo faz da luta política contra os movimentos de extrema direita um eixo central de sua luta, mas também deve se dar a tarefa de promover a ação comum dos subordinados e de deter o processo de fascização, ou seja, de minar as condições políticas e ideológicas em que esses movimentos podem prosperar, criar raízes e crescer, destruindo tudo o que promove a disseminação do veneno fascista no corpo social. No entanto, se levarmos a sério esta dupla vocação do antifascismo, então ela deve ser concebida, não como uma luta monotemática contra a extrema direita organizada, que funcionaria independentemente de outras lutas (sindicais, anti-capitalistas, feminista, antirracista, ambientalista, etc.), mas como o reverso defensivo da luta pela emancipação social e política, ou do que Daniel Bensaïd chamou de política dos oprimidos.
22. Do antifascismo hoje (2)
Evidentemente, não se trata de condicionar a constituição de uma frente antifascista à adesão a um programa político completo e preciso, o que significaria, na realidade, renunciar a qualquer perspectiva unitária, já que então se trataria de cada força impor seus próprios projetos políticos e estratégicos aos outros. Seria ainda mais inapropriado exigir daqueles que aspiram a lutar aqui e agora contra o fascismo ou a dinâmica da fascização mencionada acima, que apresentem patentes de militância revolucionária. No entanto, o antifascismo não pode ter como única bússola a oposição às organizações de extrema-direita se aspira realmente a derrotar não só essas organizações, mas também e sobretudo as ideias e afetos fascistas que se propagam e se enraízam bem além. Ele não pode deixar de fazer a ligação entre a luta antifascista, a necessidade de ruptura com o capitalismo racial, patriarcal e ecocida, e o objetivo de outra sociedade (que chamaremos aqui de ecosocialista).
O caso é complexo, porque não basta ao antifascismo afirmar seu feminismo ou seu antirracismo, criticar o neoliberalismo ou clamar pela defesa do “secularismo”, para revelar o caráter reacionário do neofascismo. Na medida em que a extrema direita se apropriou de pelo menos parte do discurso antineoliberal, tende cada vez mais a adotar uma retórica de defesa dos direitos das mulheres, usa um pseudo-antirracismo de defesa de “brancos” e se situa como protetor do secularismo, o antifascismo não pode se contentar com fórmulas vagas sobre o assunto. Deve obrigatoriamente especificar o conteúdo político de seu feminismo e seu antirracismo, ou mesmo explicar o que deve ser entendido por “laicidade”, sob pena de deixar pontos cegos nos quais os neofascistas nunca deixam de se localizar (“Femonacionalismo”, denúncia de “racismo antibranco” ou falsificação / instrumentalização do secularismo), mas também sob pena de ficar atrás dos neoliberais (que têm seu próprio “feminismo”, o do 1%, e seu “antirracismo moral”, geralmente na forma de um apelo à tolerância mútua). Da mesma forma, deve clarificar o horizonte político de sua oposição ao neoliberalismo ou de sua crítica à União Europeia, que não pode ser a de um “bom” capitalismo nacional finalmente regulado.
Além disso, os últimos anos trouxeram à luz a necessidade do antifascismo se envolver plenamente na batalha política – necessariamente unitária – contra a pressão pelo autoritarismo. Que este último fale contra milhares de muçulmanos, arrastados na lama, processados, monitorados, discriminados, desqualificados publicamente, às vezes presos, por serem suspeitos de “radicalização” (portanto constituir um “inimigo da Nação”, real ou potencial), contra os migrantes (privados de direitos e acossados pela polícia), contra os residentes dos bairros de imigração (entrecruzados pelos setores mais fascizados das forças repressivas, que gozam de impunidade quase total), ou contra mobilizações sociais cada vez mais severamente reprimidas pela polícia e pelos tribunais(movimento contra a legislação trabalhista, coletes amarelos, etc.).
Vemos como o desafio, para o antifascismo, não é simplesmente forjar alianças com ativistas de outras causas, o que deixaria cada parceiro inalterado, mas redefinir e enriquecer o antifascismo de perspectivas que surgem nas lutas sindicais, anticapitalistas, antirracistas, feministas ou ambientais, alimentando estas últimas com perspectivas antifascistas. É nesta condição que o antifascismo poderá se renovar e progredir, não como uma luta setorial, um método particular de luta ou uma ideologia abstrata, mas como um senso comum que permeia e envolve todos os movimentos de emancipação.
Ugo Palheta é professor de sociologia na Universidade de Lille. Autor, entre outros livros, de La possibilité du fascisme (La Découverte, Paris, 2018). Tradução: Lidia Codo. Publicado originalmente na revista eletrônica Contretemps.
Notas
[i] A civilização – “branca” ou “europeia” – também pode desempenhar esse papel, assim como a raça (“ariana” na ideologia nazista), mesmo que este último referente tenha se tornado politicamente insustentável, em escala massiva, pelo genocídio dos judeus na Europa.
[ii] Categoria altamente expansível por incluir todos aqueles que, tendo ou não a nacionalidade do país, não são considerados nativos genuínos (no caso da França, os chamados “franceses nativos”, “verdadeiros franceses”, etc.). Deste ponto de vista, um imigrante europeu recente – naturalizado ou não – será considerado pela extrema direita como menos estrangeiro, pelo menos se for branco e de cultura cristã, do que um francês nascido na França de pais nascidos na França, mas cujos avós teriam vindo, por exemplo, da Argélia ou do Senegal.
[iii] Evoquem-se, no caso francês contemporâneo, as brigadas anti-criminalidade.
[iv] Leia-se a A irresistivel ascensão de Arturo Ui de Bertolt Brecht.
[v] Nome dado em italiano au instrumento com o qual se espancava, particularmente os militantes operários ou qualquer pessoas que se opusesse aos fascistas. O manganello e seu uso foram o objeto de uma espécie de culto na Itália fascista.
[vi] Retomamos aqui a formula de Angelo Tasca em seu livro clássico Nascimento do fascismo.
[vii] O que lhe permite, no caso francês, de visar hoje diretamente as forças políticas (lembremos a manifestação dos sindicatos de policiais diante da sede La France Insoumise, formação política de esquerda, dirigida por Mélanchon) e de manifestar sem autorização, com armas e veículos de serviço, muitas vezes encapuçados, sem qualquer sanção administrativa ou judiciária.
[viii] Evoca-se o caso de Roosevelt e do New Deal nos Estados Unidos dos anos 1930, que não permitiram vencer a crise do capitalismo americano (será preciso para tanto aguardar a guerra), mas que suspenderam a dita crise.