Eric Nepomuceno, 14 de janeiro de 2022
Na manhã desta sexta-feira, 14 de janeiro, sou massacrado pela notícia de que um dos maiores e mais generosos corações que conheci na vida, o do poeta Thiago de Mello, parou de bater.
Amarga coincidência: também num 14 de janeiro, o de 2014, que caiu numa terça-feira, foi-se embora meu irmão Juan Gelman, o argentino que permanece como um dos maiores poetas do idioma castelhano dos últimos pelo menos 80 anos.
A última notícia que tive de Thiago de Mello foi através de um amigo que era parente próximo dele. Contou que sua memória, que sempre considerei infinita, estava indo embora rapidamente. E que isso acontecia justamente quando Thiago estava trabalhando num livro de memórias.
Pois agora essa memória se foi de vez.
Conheci Thiago de Mello em Buenos Aires, por onde ele passou rapidamente depois do golpe sangrento que liquidou Salvador Allende e a democracia no Chile, onde ele vivia exilado pela ditadura instalada em 1964 aqui no Brasil. Quem me levou para conhecer Thiago foi, sempre ele, o irmão mais velho que a vida me deu, Eduardo Galeano.
Lembro de um homem angustiado, indignado, mas cheio de fé na vida. Falamos do Brasil distante e de seus tempos chilenos, de sua amizade muito próxima com Pablo Neruda e Violeta Parra. De como foi ter traduzido Neruda para o português do Brasil e ter sido por Neruda traduzido para o castelhano. Falamos da sua dor por ter visto sua pátria adotiva ser destroçada.
Pouco depois ele foi para Lisboa, onde tornei a encontrá-lo em 1976, quando foi a minha vez de me refugiar de outro golpe sangrento, o do general Jorge Videla, que mergulhou a Argentina no breu.
A partir desse reencontro nos aproximamos para sempre. Mesmo quando passávamos um longo tempo sem nos ver, quando nos encontrávamos era sempre como se tivéssemos estado juntos domingo passado. Assim foi em Cuba, no México, em Manaus, no Rio, onde fosse.
Thiago de Mello foi figura crucial para a minha e muitas outras gerações, e não só no Brasil. Aliás, tenho a sensação de que ele foi e é muito mais incensado lá fora, na América Hispânica, do que aqui.
Tenho, sim, oceanos e cordilheiras de cálidas lembranças desse bom, generoso e solidário amigo.
Uma, porém, tem especial espaço na minha memória.
Foi em Lisboa, em meados de 1978. Tivemos uma longa e dolorosa conversa no modesto apartamento em que Thiago vivia.
Ele me contou, pedindo segredo, que ia voltar para o Brasil. Ainda não havia lei de anistia, e Thiago era odiado – com razão – pela ditadura.
Eu disse a ele que era uma loucura. Ele respondeu dizendo que naquela loucura havia dignidade e o direito de voltar ao seu país.
E então fez uma pergunta direta: “Vou chegar e vão me prender. Levo comigo minha caderneta de telefones e endereços. O seu nome está nela. Quer que eu borre?”.
Respondi que de jeito nenhum. Eu estava fora, não podia voltar, não podiam fazer nada comigo.
“Pense no seu pai, na sua família”, advertiu Thiago. Mantive minha resposta. Da mesma forma que mantive com ele minha amizade, e da mesma forma que agora, com sua partida, mergulho numa saudade amazônica.
Adeus, poeta.