O dia de hoje deve entrar para a história. Enfrentando o conservadorismo que marca o país e busca impor o cerceamento do debate sobre direitos, especialmente das mulheres, as feministas fazem, neste momento, o Brasil falar sobre aborto. Reunidas em Brasília, onde o Supremo Tribunal Federal (STF) discute a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, impetrada pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e pela Anis – Instituto de Bioética e que questiona a constitucionalidade da criminalização da interrupção voluntária da gravidez, e mobilizadas em diversas partes do país, elas também sinalizam para toda a população a necessidade de, a um só tempo, resistir aos ataques e lutar por avanços.
A situação é da maior gravidade. A cada minuto, uma mulher aborta no Brasil, segundo dados da Pesquisa Nacional de Aborto 2016, realizada pela Anis. De cada grupo de cinco das 2.002 mulheres entrevistadas na pesquisa, uma já havia feito, pelo menos, um aborto na vida. Como o aborto aqui só é permitido em caso de estupro, fetos anencefálicos ou para salvar a vida da gestante, a clandestinidade que é imposta às mulheres faz com que elas tenham que se submeter a procedimentos precários, arriscados e desassistidos. Em decorrência disso, a cada dois dias, uma mulher morre no país vítima de aborto clandestino.
A desigualdade é outra marca desse processo. O país convive e garante acesso ao procedimento a quem pode pagar por ele. A criminalização do aborto, assim, atinge especialmente mulheres jovens, desempregadas ou em situação informal, negras, com baixa escolaridade, solteiras e moradoras de áreas periféricas. Esse evidente racismo institucional tem sido denunciado especialmente pelas negras, que têm duas vezes e meia mais chances de morrer durante um aborto do que as brancas, de acordo com estudo do Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. A diferença também foi reconhecida pelo Ministério da Saúde, demonstra a publicação 20 anos de Pesquisa Sobre Aborto do Brasil, publicada em 2009. A criminalização afeta de forma específica as mulheres lésbicas e homens transexuais, seja pela negação do direito à livre determinação de seus corpos e tudo o que advém dela ou pelo fato de sofrerem o crime chamado “estupro corretivo”. Por tudo isso, a luta pela legalização do aborto como uma política de saúde pública – que implica também a atuação do Estado na educação para o exercício consciente, responsável e respeitosa aos direitos humanos para pessoas dos dois sexos, distribuição efetiva de métodos contraceptivos não esterilizantes em larga escala e atendimento multidisciplinar na saúde pública quando a gravidez ocorrer – tem ainda a potência de evidenciar a interseccionalidade das opressões.
Sabemos que é preciso ir muito além da descriminalização. Defendemos a legalização do aborto. Queremos que o Estado garanta no sistema de saúde a realização do aborto, com acompanhamento multidisciplinar, políticas que ampliem o acesso à educação sexual e a métodos contraceptivos para que tanto as mulheres como os homens possam ter uma maior autonomia sobre seu planejamento reprodutivo de forma responsável e digna. A ADPF é um passo nesse caminho, pelo que pode vir a garantir, caso a descriminalização seja acatada no STF, e, sobretudo, pelo debate público que fomenta sobre o tema. Nunca é demais lembrar que vivemos sob a égide do Congresso mais conservador desde 1964. Um Congresso que tem pautado, entre outras iniciativas, o Projeto de Lei do Estatuto do Nascituro. Apesar disso, o PSOL não deixou de apresentar, em parceria c om movimentos feministas, projeto para a legalização. Ocorre que, nesse espaço, a luta é essencialmente para não termos mais direitos arrancados.
Diante desse cenário, seguindo o exemplo das companheiras argentinas, onde recentemente se aprovou na Câmara e agora se discute no Senado a legalização do aborto, as feministas brasileiras espalham lenços verdes que nos fazem ter alguma esperança. Elas reabrem um horizonte na luta por direitos e por igualdade efetiva. Porque a luta pela descriminalização e legalização do aborto é uma luta por acesso à saúde pública, contra a desigualdade entre homens e mulheres e entre as mulheres, pelo princípio da laicidade do Estado, contra a interferência dele em nossos corpos e o disciplinamento moral e religioso. É por autonomia sobre nossos corpos e vidas, pelo direito ao exercício da maternidade em condições dignas e conscientes de opção e sobrevivência, e não como produto das múltiplas violações que o Estado e a sociedade brasileira impõem às mulheres, em particular trabalhadoras, negras e as que vivem na pobreza. É uma luta pela emancipação das mulheres e, por isso, contra um dos pilares de sustentação da sociedade capitalista.
Como têm nos ensinado as mulheres, não daremos nenhum passo atrás.