Luiz Arnaldo Campos e José Correa Leite
“Com estes que fizemos cristãos saltou a morte de maneira que nos matou três principais e muitos outros índios e índias”. Desta forma um jesuíta, sediado em São Vicente, descrevia um dos surtos de sarampo e varíola que, entre 1560-1565, devastava aquela que era então uma das capitanias hereditárias mais promissoras do Brasil. Estas epidemias que se repetiram sazonalmente por séculos afora, chamadas de “cataclisma biológico” pelo antropólogo Henry F. Dobbins, são o legado mais permanente deixado pelos europeus para os povos originais do continente, mais tarde chamado de América.
Esse legado etnocida volta agora, em 2020, a assolar, com a covid-19, os povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais de nosso continente. E são eles, que na era das mudanças climáticas, enfrentam o agronegócio e o extrativismo; são eles que vem, com suas vidas, defendendo a Amazônia e outros bens comuns indispensáveis à manutenção de uma vida próspera em nosso planeta. Mas dessa vez não estão lutando isolados e tomam a dianteira para construir as iniciativas e alianças necessárias para derrotar os invasores. Esse é o sentido da Assembleia Mundial pela Amazônia, cuja primeira reunião ocorrerá em 18 e 19 de junho.
A Guerra Bacteriológica
As epidemias sempre foram a mais eficiente arma dos colonizadores no seu afã de se apoderar das terras indígenas, simplesmente eliminando ou expulsando populações inteiras de seus territórios ancestrais, permitindo que estes fossem incorporados ao espólio de guerra do conquistador. São muitas as histórias e os relatos que noticiam a devastação das epidemias de varíola, sarampo e gripe entre os povos originais, do século XVI ao XX.
Mas de todos o mais impressionante é o Relatório Figueiredo, documento de sete mil páginas de autoria do procurador Jader Figueiredo Correia, que recolhe as violações cometidas contra os povos indígenas do início do século XX até os anos 60. Não por acaso este documento produzido para uma CPI da Câmara dos Deputados, instalada em 1967, ficou desaparecido até 2013, quando foi resgatado pelo pesquisador Marcelo Zelic, de um arquivo perdido no Museu do Índio, no Rio de Janeiro. Neste relatório são listadas dezenas de ocorrências, onde agentes dos latifundiários mancomunados com funcionários do próprio Serviço de Proteção ao Índio-SPI entram em aldeias isoladas ou de contato recente e deliberadamente introduzem a varíola e o sarampo através de roupas e objetos contaminados. Em outros casos, o expediente utilizado foi o arsênico, misturado ao açúcar ofertado aos indígenas.
O relatório Figueiredo comprova de maneira cabal que a guerra bacteriológica e química foi utilizada até bem pouco tempo no Brasil contra os povos indígenas, com o objetivo de despovoar regiões que foram posteriormente ocupados por grandes fazendeiros.
Passando a Boiada
Agora, em 2020, quando a pandemia do coronavírus aparece exatamente no momento em que o governo federal lança uma pesada ofensiva contra as terras indígenas, há muitas razões para se botar as barbas de molho. Nos últimos ano e meio o governo Bolsonaro tem estimulado processos de alienação de terras públicas (entre as quais os territórios indígenas e quilombolas) em favor de sua apropriação privada por fazendeiros e mineradoras. Neste sentido vão suas repetidas declarações em favor da liberação da exploração garimpeira em terras indígenas e o desmantelamento dos órgãos públicos destinados a defender as reservas dos povos originais, os parques e reservas florestais.
Os dados são eloquentes: segundo o Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia, o desmatamento da região em abril de 2020 foi o maior dos últimos dez anos, com um aumento de 171% em relação aos números de abril de 2019. Enquanto isso as multas por desmatamento ilegal foram praticamente suspensas desde outubro de 2019, por causa de um decreto presidencial estabelecendo que as penalidades, aplicadas pelos órgãos de fiscalização, devem ser revistas em audiências de conciliação nas quais podem ser oferecidas descontos ou até anulações das infrações. Em consequência, desta data até hoje, em apenas cinco casos foi imposto aos infratores a obrigação de pagar seus mal feitos, ficando milhares de multas sem nenhum efeito. Uma política deliberada de destruição da floresta vem sendo estimulada pelo governo e efetivada pelos fazendeiros: em 10 de agosto de 2019 eles desencadearam o “Dia do Fogo”, um movimento conjunto para incendiar áreas da maior floresta tropical do mundo.
E não foi só isso: em 30 de abril O Ministério do Meio Ambiente e o IBAMA exoneraram Renê Luiz de Oliveira e Hugo Loss, responsáveis por operações contra crimes ambientais no país. Os dois foram demitidos depois de ordenarem ações que fecharam garimpos ilegais nas terras indígenas Apyterewa, Cachoeira Seca, Trincheira Bacajá e Ituna Itatá, no Sul do Pará. Nestas operações foram destruídos mais de 70 tratores, pás carregadeiras e outros equipamentos. A perseguição aos defensores da natureza estimulou a agressividade dos grupos criminosos, registrando-se nos primeiros meses deste ano tentativas de emboscadas contra os fiscais do IBAMA em Uruará, na Transamazônica paraense e no Parque Estadual Guajará-Mirim, em Rondônia. Além destes ataques, a invasão de territórios indígenas e quilombolas, por parte de garimpeiros e todo tipo de intrusos, se multiplicou, espalhando o vírus por áreas que deveriam estar protegidas.
O desmantelamento das estruturas da FUNAI segue de forma acelerada. No governo Bolsonaro, a FUNAI passou do Ministério da Justiça para o Ministério da Família, da Mulher e dos Direitos Humanos, dirigido pela “terrivelmente evangélica” Damares Alves. A responsabilidade sobre a demarcação de terras indígenas e pareceres sobre o licenciamento ambiental de projetos que impactam as terras indígenas, passou da FUNAI para a Secretaria de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, cujo secretário, Luís Antônio Nabhan Garcia é presidente licenciado da UDR, que tem indígenas, quilombolas e camponeses sem terra no rol de seus inimigos.
Tudo isso é um estímulo a ataques e invasões de garimpeiros e fazendeiros não só às terras indígenas como também aos quilombolas. Recentemente, na Chapada dos Veadeiros, em Goiás, áreas quilombolas de cerrado nativo, correspondente a 1400 campos de futebol foram postas abaixo por funcionários de duas fazendas vizinhas.
Desassistidos pelo Estado, sem planos de emergência e extremamente vulneráveis, as populações indígenas, quilombolas e ribeirinhas são o alvo de uma nova ofensiva contra suas terras e o seu direito de existir, onde a pandemia é apenas mais uma arma, de caráter bacteriológico, no arsenal do governo, dos latifundiários, garimpeiros e empresas de mineração. Como disse o Ministro do Meio-Ambiente, Ricardo Salles, “o governo precisa aproveitar o momento onde a mídia só fala do covid-19 para ir passando a boiada”.
Os Povos Defendem a Amazônia
Como ocorreu no passado, o coronavírus está sendo instrumentalizada para promover o etnocídio e o ecocídio, em diversas regiões, com particular destaque para a Amazônia. Estes sinais também são percebidos nos demais países que compõem a Panamazônia.
É por isso que diversas redes, movimentos sociais e articulações de povos indígenas, com atuação na região, como o Fórum Social Panamazônico (FOSPA), Rede Eclesial dos Povos da Amazônia (REPAM) e a Coordenadora das Organizações Indígenas da Bacia Amazônica (COICA) e seu capítulo brasileiro, a COIAB estão organizando uma Assembleia Mundial pela Amazônia, evento/processo virtual que ocorrerá nos dias 18 e 19 de julho focado em três objetivos: exigir dos governos a execução de programas concretos de apoio aos povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos e moradores das cidades amazônicas atingidos pela pandemia; uma campanha mundial de boicote às empresas e produtos frutos da destruição da Amazônia; e realização de ações de caráter mundial que difundam os perigos pendentes sobre a Amazônia e seus povos.
Como uma espiral, a Assembleia Mundial pela Amazônia pretende se desenvolver como um espaço aberto onde possam se congregar centenas de organizações com lutas concretas no terreno amazônico e outras tantas forjadas na solidariedade com a Amazônia e suas populações.
Na verdade, a Assembleia Mundial pela Amazônia é uma espécie de grande trincheira onde vão se agrupando todos e todas com consciência de que na Amazônia se trava uma batalha decisiva para os destinos da Humanidade. Por sua natureza e pela riqueza cultural e espiritual dos seus povos a Amazônia é um território onde a construção de um mundo igualitário e não predatório pode hoje ser concretamente experimentado. Se o ecocídio e o etnocídio triunfarem na região, as esperanças para a Humanidade se tornarão ínfimas.
A Assembleia Mundial pela Amazônia pretende mobilizar todas e todos para essa batalha urgente e necessária.