José Correa Leite
O Brasil registrou na Sexta-feira Santa, 2 de abril, 70 238 novos casos de covid (e 2.922 novas mortes). Foi o recorde diário de novos casos, que ocorreu após vários dias com o número de mortes no país variando entre 3 e 4 mil e grande parte dos governadores e muitos prefeitos adotando medidas de distanciamento social aproveitando os feriados da Semana Santa. Este foi o esforço mais importante de restrição da mobilidade em quase um ano - esforço que já produziu um ligeiro declinio na média móvel das mortes. Mas sabemos que novos casos repercutem em mortes três a quatro semanas depois, caso haja leitos de Unidades de Tratamento Intensivo (UTIs) disponíveis - e menos tempo e mais mortes na hipótese deles não estarem disponíveis. Ao longo desta semana, o recorde do número de mortes diárias vinha sendo sucessivamente quebrado e no sábado, 3 de abril, o país já ultrapassava 330 mil óbitos. As perspectivas para as próximas semanas não são, pois, assustadoras, com o governo federal efetivamente bloqueando uma política de garantia de renda e várias autoridades subnacionais sucumbindo às pressões de comerciantes e já sinalizando a reabertura dos negócios.
Ao mesmo tempo, já tomaram a primeira dose da vacina 19,2 milhões de pessoas, o que representa 9% da população da população brasileira. O desenvolvimento de vacinas eficazes foi uma façanha das tecnologias médicas, impulsionada tanto pelo dinheiro e pelo poder quanto pelo desejo de pesquisadores de vencerem a doença. Mas seus benefícios vêm sendo fortemente concentrados, com importantes componentes geopolíticos - dos quais a China e a Rússia também vem se beneficiando. Mas mesmo os países da União Europeia ainda não conseguiram decolar campanhas massivas de vacinação e têm que recorrer a semi-lockdowns - como o que foi decretado ontem por Macron na França, bem menos rígido do que o recomendado pelos especialistas. A pandemia escala com força em muitas partes onde o distanciamento social foi afrouxado, inclusive na Índia, que atravessa uma mortal segunda onda.
Ora, a imprensa vem apresentando a pandemia como uma corrida entre as mutações e a vacinação. As mutações se dão ao acaso, mas a seleção natural favorece as variantes mais transmissíveis - a variante inglesa, a sul-africana, a californiana, a de Manaus… Mais tempo a doença corre sem controle, mais mutações ocorrem e parte delas tende a favorecer a difusão do vírus. Mas a equação mutação versus vacina é teórica: se as variantes espalham-se por cada vez mais partes, a vacina flui muito mais lentamente. Na prática, os problemas da propriedade intelectual, acessibilidade das tecnologias de ponta na área, escala de produção, estruturas de saúde pública e políticas de vacinação limitam as efetivação da promessa de que a vacinação promoveria a “volta ao normal”. E com as variantes, não haverá volta ao "normal" possível mesmo com a difusão da vacina. O normal terá que ser bem qualificado!
Grande parte da sociedade - inclusive setores da esquerda crítica - continuam se pautando pelo desejo e pelo “otimismo” das vacinas promovido pela imprensa e não pelo entendimento científico de que estamos frente não somente ao vírus, mas também à sua interação com as estruturas sociais que favoracem ou dificultam a difusão da pandemia. A vacina não é uma panaceia contra a pandemia. Toda pandemia é uma “sindemia” e entramos em uma era de aguçamento das crises sistêmicas do Antropoceno, da qual a explosão da covid-19 é uma expressão. Para além do número efetivo de mortes, a pandemia produz um estresse brutal sobre os serviços de saúde e a vida social - que procuram contê-la. Todos os anos morrem um número estimado de 5 a 9 milhões de pessoas de poluição do ar, mas a sociedade não se detem para enfrentar este problema, tratando-o em grande medida como uma fatalidade inevitável, um preço a pagar pela modernidade.
Já as pandemias criam uma reação diferente. As pessoas a veem, corretamente, como uma doença a ser vencida. E o esforço de contê-la desorganiza a dinâmica antes estabelecida na sociedade - para o horror de Bolsonaro, que gostaria de naturalizar as mortes pela doença. Mas mesmo passado o pior da pandemia, a dinâmica social que não voltará a ser o que era - justamente porque é expressão de uma crise sistêmica. A humanidade terá que aprender a conviver com a covid-19 e reforçar drasticamente seus esforços com saúde e educação públicas, redução das desigualdades e ampliação da estrutura de amparo social caso se queira "vencer" a pandemia. E está também aprendendo que terá, de alguma maneira, que colocar um freio no uso das redes sociais como canal de difusão consciente da ignorância, do ódio e dos fundamentalismos.
A alternativa a empreendermos esta mutação civilizacional face ao neoliberalismo é a corrosão do aumento constante da expectativa média de vida da humanidade, que veio crescendo desde a virada para o século XX, corrosão que certamente será distribuida de forma muito desigual pelo mundo. O ano de 2020 já viu a expectativa de vida cair em vários países; isso se manterá em 2021. Observamos processos de regressão deste tipo, em menor escala, na década de 1990, na África com expansão do vírus do HIV (visível no gráfico abaixo) e na Rússia com o colapso dos empregos e dos sistemas de saúde públicos após o fim da URSS. Esta é a expressão gráfica mais sintética do que significa crise de civilização: as pessoas passam, em média, a viver menos e pior. E todos sabemos que a pandemia não é a ameça maior que a humanidade enfrenta, que a crise climática a sombreia!
Uma questão decisiva da “sindemia” é a da sociedade querer fazer as mudanças necessárias para lutar contra a doença ou se deixar sucumbir por ela e pagar o preço em mortos. Paises tão diversos como Austrália e Nova Zelândia, Coréia do Sul e Taiwan, Vietnã e Islandia mostraram capazes de enfrentar a pandemia. Mas outros fracassaram estrondosamente. Mesmo nos EUA, o país que mais apostou na vacinação em massa, o vírus continua mordendo o calcanhar. A atuação enérgica do governo Biden reduziu as mortes de um patamar de quatro mil por dia para menos de mil mortos, mas ainda assim são mil mortos todos os dias. E, na última semana, o número médio de novos casos subiu 20%, em parte pelas variantes, em parte porque parcelas da população não tomam cuidado, em parte porque certos setores sociais não querem se vacinar. O país parece ingressar em uma quarta onda, enquanto vários governadores - republicanos mas também alguns democratas - promovem a reabertura dos negócios e, no caso dos republicanos, inclusive proibem prefeitos de obrigarem o uso de máscaras. A coesão social parece ser um fator decisivo para enfrentar a pandemia.
A desconfiança em se vacinar segue forte nos EUA, mas é grande também em países como a França, o Japão e a Rússia. Isso significa que por várias partes as vacinas só se difundirão associadas a mecanismos de pressão institucional como atestados obrigatórios - e a oficialização destes certificados de vacinação está se tornando uma demanda crescente de setores econômicos que pressionam pela reabertura, como turismo, entretenimento, companhias aéreas... Tudo isso coloca no radar uma acirrada “guerra cultural” em torno da vacinação, na qual sempre restarão setores mais arredios.
No caso do Brasil, como a vacinação vai se dar muito lentamente, reduzindo o número de mortes inicialmente entre a parcela mais velha da população, a primeira a ser (além de profissionais da saúde e povos indígenas...), a doença continuará grassando no restante, o que já está produzindo o seu rejuvenescimento. Pessoas mais jovens tendem a lutar por mais tempo contra a doença, ocupando por mais tempo leitos de UTI, mesmo se ao final sucumbirem ao vírus. Sem um real lockdown, inseparável em nosso país da garantia de renda básica, cresce a fadiga do isolamento ou da propaganda do isolamento e mesmo setores que se precaviam podem terminar se descuidando. Ao mesmo tempo, o bolsonarismo e correntes fundamentalistas sabotam o esforço dos governadores: hoje o ministro do STF Kassio Marques Nunes, indicado por Bolsonaro, proibiu restrições a cultos e missas em todo o país promovidos por governadores e prefeitos. Previsões de especialistas falam de 500 a 600 mil mortos acumulados no final do primeiro semestre e mais de cem mil mortos só em abril!
Vemos o desespero com a situação se ampliar em setores das elites e aumentar a pressão pela privatização da vacina: os juízes em trabalho remoto querem ter prioridade, os empresários querem comprar - felizmente até agora as empresas produtoras não estão oficialmente vendendo para particulares no Brasil. Por enquanto, empresários terão que viajar para Dubai ou outras partes dos Emirados Árabes Unidos ou ainda para o Paquistão, gastando muito em “férias de vacinas”, se quiserem se imunizar...
A vacinação só começará a escalar no Brasil - e é bom qualificar isso: a vacinação para as pessoas entre 20 e 49 anos, que são as grandes transmissoras da doença - a partir do segundo semestre. Todavia, com Bolsonaro e setores evangélicos contra e as novas variantes, nem mesmo isso vai “resolver”. Os EUA talvem seja um laboratório que simula de forma aproximada as possibilidades para o Brasil. Mas se a eleição de Biden representa uma reação que expressa as melhores alternativas - dentro do sistema - de resposta à crise pandêmica, com Bolsonaro vamos seguir trilhando as piores. Assim, mesmo que descartemos as projeções mais alarmistas de mortos se acumulando nos hospitais, continuaremos a ter milhares de mortos por covid-19 todos os dias pelos meses vindouros.
3 de abril de 2021