A formação do pensamento crítico implica aquilo que alguns gostariam de descrever como balbúrdia, mas que é, como bem lembra João Carlos Salles em seu livro Universidade pública e democracia (São Paulo: Boitempo, 2020), o único anteparo real contra a barbárie. Uma vida sob dissenso é o que impõe dificuldade aos que procuram nos governar, ainda mais quando o som que eles conhecem não é som da assembleia aberta, mas dos tanques militares.
Vladimir Safatle, Blog da Boitempo, 08 julho de 2020
Em meio aos embates da Revolução Francesa, Condorcet dirá: “A função da educação pública é criar um povo insubmisso e difícil de governar”. A frase demonstra que a educação pública é peça fundamental em todo projeto de emancipação social, assim como explicita que tal emancipação não visa a criar um corpo social sem conflitos. Ao contrário, a formação do pensamento crítico implica aquilo que alguns gostariam de descrever como balbúrdia, mas que é, como bem lembra João Carlos Salles, o único anteparo real contra a barbárie. Pois a formação em direção ao que o autor chama de “condições ideais de argumentação” é baseada na vida sob dissenso. E uma vida sob dissenso é o que impõe dificuldade aos que procuram nos governar, ainda mais quando o som que eles conhecem não é som da assembleia aberta, mas dos tanques militares.
Dentre nós, João Carlos foi um dos que, de forma mais brilhante, conseguiu articular sólida carreira filosófica e ação institucional de longa duração, principalmente como reitor da Universidade Federal da Bahia (UFBA). É dessa dupla experiência que vem o fundamento de suas reflexões a respeito dos desafios da universidade brasileira, com suas exigências de descentralização e de pluralidade.
Essa capacidade de transitar em via dupla permitiu a João Carlos enxergar o que outros têm dificuldade e ver, a saber, que “conhecimento circula na internet; pesquisa pode ser feita em meios diversos; ensino pode escorrer bastante bem em instituições privadas; e prestação de serviços pode, aqui ou ali, fazer figura de extensão. Outra coisa, porém, é esse lugar especial de confrontação de saberes e gerações” que nós conhecemos por universidade pública.
Pois o desprezo de alguns pela universidade pública não vem de sua pretensa “lentidão”, de seu “isolamento” ou coisas do gênero. Vem do fato de sua autonomia mostrar à sociedade como é possível se constituir sem submeter-se nem ao governo, nem ao mercado; nem ao poder político, nem ao poder do capital. A universidade pública nos lembra do fato de que uma outra sociedade é possível, uma sociedade sem medo do verdadeiro confronto.
Em Universidade pública e democracia, o leitor encontra textos permeados por tal espírito. A reflexão mais ampla sobre o conceito de universidade caminha juntamente com discussões pontuais a respeito dos desafios de ser reitor de uma das maiores universidades brasileiras, assim como com a crítica precisa aos projetos de desmonte que vêm do atual desgoverno. Ao fim, temos um dos mais belos exemplos do que pode o saber em ação.
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Universidade pública e democracia reúne artigos escritos por João Carlos Salles ao longo da última década; em um estilo lapidar e com reflexões lúcidas, os textos abarcam os longos anos de militância na educação e apresentam análises da conjuntura atual. Filósofo e professor de lógica, faz uma defesa apaixonada de um modelo radicalmente democrático de universidade, enquanto, de um lado, retrata um projeto utópico de educação nacional e, de outro, elenca as iniciativas antidemocráticas e os ataques direcionados à educação pública dos últimos anos. O ponto alto da obra é o enfrentamento do Future-se, programa apresentado pelo governo federal em 2019.
O livro é dividido em três partes: na primeira, Salles desenvolve uma reflexão a respeito da universidade como instituição pública e democrática; na segunda, parte para sua experiência como professor e reitor da Universidade Federal da Bahia (UFBA); e, na terceira, faz uma análise dos atuais desmanches e ataques do governo à educação e à universidade, com especial atenção ao programa Future-se.
Com edição de Thais Rimkus, a obra conta ainda com prefácio de Fernando Cássio, texto de orelha de Vladimir Safatle e capa de Ronaldo Alves.
Um conjunto de ameaças atinge a aura da universidade, como se, enquanto projeto pleno, ela não mais interessasse às elites. As classes dominantes não mais parecem sentir a universidade pública como uma causa sua, estando especialmente insatisfeitas com a expansão do sistema e a mudança de composição de nossa comunidade. Vivemos, por causa disso, a imposição de um elenco de tragédias sucessivas. Por outro lado, traços de nosso ambiente interno mostram-se igualmente responsáveis por nos comprometer a aura, quando somos levados a ter vontades que não são as nossas e a viver medos dos quais, em sã consciência, nos envergonharíamos.
Podemos, então, ou assistir estupefatos à cumplicidade entre ameaças externas e internas, quando acenos de privatização do ensino e de redução do projeto de universidade são facilitados pela burocratização de nossas instâncias e o esvaziamento de nosso sentido; ou, ao contrário, podemos reagir — como, aliás, já temos feito. Nosso caminho é claro e consciente na afirmação e na defesa do projeto essencial de nossa universidade, com toda a sua força e a sua delicadeza.
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Vladimir Safatle é professor livre-docente do Departamento de Filosofia da USP, bolsista de produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), professor visitante das Universidades de Paris VII e Paris VIII, professor-bolsista no programa Erasmus Mundus. Escreveu A paixão do negativo: Lacan e a dialética (São Paulo, Edunesp, 2006),Folha explica Lacan (São Paulo, Publifolha, 2007), Cinismo e falência da crítica (São Paulo, Boitempo, 2008) e co-organizou com Edson Teles a coletânea de artigos O que resta da ditadura: a exceção brasileira (Boitempo, 2010), entre outros. Foi colunista da Folha de S.Paulo e da Revista CULT. Autalmente escreve para o El País – Brasil. Em 2012, teve um artigo incluído na coletânea Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas (Boitempo, 2012), publicada pela Boitempo Editorial em parceria com o Carta Maior.