Lana de Holanda*
O que é “cisgênero”? O que é uma pessoa “cis”? Eu sei que são muitos termos novos que vão surgindo através da militância, e algumas pessoas não estão acostumadas com esses termos, e acabam ficando, muitas vezes, confusas. Mas essas palavrinhas são necessárias e eu vou te explicar.
Um valor muito importante pra mim, enquanto militante e pessoa política, e que tento seguir sempre que possível, é a pedagogia. Pedagogia não quer dizer simplismo, pobreza na escrita ou desleixo teórico. Pedagogia quer dizer acesso. Pedagogia é o compartilhamento e a troca, sendo construídos da forma mais humana possível, entendendo as limitações, os pesos e as dores que podem estar tanto do lado de quem comunica, mas sobretudo do lado de quem recebe a comunicação.
Digo isso, inicialmente, antes de entrar no assunto em si, porque provavelmente existirão outras dezenas, ou até mesmo centenas, de explicações na internet sobre o termo “cisgênero”/”cis”. Algumas explicações serão muito melhores do que a minha. Mas é importante ressaltar que, quando eu escrevo, eu não me vejo numa competição. Eu me vejo num exercício político, de oferecer o pouco que sei, para que outras pessoas cresçam enquanto questionadoras e articuladoras sociais, assim como eu cresci e cresço. Por isso tento, ao máximo possível, ser pedagógica.
Por fim, gosto de pensar na pedagogia engajada, de Paulo Freire e trilhada também por bell hooks. Uma pedagogia que problematiza, não apenas para que a gente possa ter uma visão crítica da realidade, mas, sobretudo, para que a gente possa transformá-la.
Então vamos ao assunto: se você tem alguma proximidade com estudos de gênero, ou se você simplesmente constrói algum coletivo feminista ou LGBT, ou talvez apenas tenha contato com qualquer pessoa que seja militante de esquerda, você provavelmente já ouviu a palavra “cis”, que é a abreviação de “cisgênero” ou “cisgênera”. Mas o que é isso? E para que usar, afinal?
A pessoa cis é aquela que reivindica ter o mesmo gênero que lhe registraram quando ela nasceu. Ou seja, cis é aquela pessoa (homem ou mulher) que está em conformidade com o gênero que lhe foi atribuído ao nascer. Maria nasceu com vagina, foi declarada uma “menina”, e assim ela se sente, em conformidade com esse papel. Portanto, Maria é uma mulher cisgênera.
Já a pessoa transgênero é o oposto disso. A pessoa trans é aquela que se reivindica com um gênero diferente do que lhe registraram no nascimento. A mulher trans ou travesti é aquela pessoa que nasceu e foi registrada homem, porém se percebe e se reconhece mulher. Por exemplo: Lana nasceu com pênis, foi identificada como um menino, mas ela se reivindica e se posiciona socialmente como menina.
Algo importante, que precisamos ter em vista, é que gênero é uma construção social. Ser trans não é algo sobre ter “nascido no corpo errado”. Isso é folclore. Pessoas com vagina podem preferir rosa e bonecas e pessoas com pênis podem preferir azul e futebol, mas isso não se dá, obviamente, por uma questão biológica. É uma construção social, feita e nutrida, para manter de pé as estruturas patriarcais e capitalistas. Portanto, ao me reconhecer e reivindicar mulher, mesmo tendo nascido com um pênis, eu não estou dizendo que nasci no corpo errado. Eu estou afirmando que essa estrutura não me comporta e que eu não caibo (por fatores sociais, emocionais, diversos) na caixinha que foi separada pra mim a partir da minha genitália.
Pessoas cis são aquelas que vão permanecer no lugar que se esperava para elas, em relação às suas identidades de gênero. Pessoas trans vão cruzar esse lugar, se locomovendo para outro onde poderão ser quem são, de forma mais plena. Porém, as pessoas cisgêneras não serão todas iguais, exercendo suas identidades masculinas ou femininas com o mesmo vigor, o mesmo padrão. Isso é impossível. Existirão diversas nuances possíveis, tanto dentro da cisgeneridade quanto dentro da transgeneridade.
Uma coisa que vai ficando nítida aqui, ao pensarmos com cuidado sobre identidade de gênero, é que ela não é a mesma coisa que orientação sexual. São questões diferentes, que podem se esbarrar e cruzar em alguns momentos, mas que, definitivamente, são diferentes. Uma mulher cisgênera pode ser lésbica, e ainda assim ela continua sendo cis. Uma mulher trans/travesti pode, também, ser lésbica ao se relacionar com outra mulher (cis ou trans). Ou ser heterossexual, ao se relacionar com um homem. Ou, ainda,uma mulher trans/travesti pode ser bissexual. A mesma coisa com homens trans, que podem ser gays, bissexuais ou héteros. E continuam sendo homens.
A sua orientação sexual existe a partir da definição da sua identidade de gênero, não o contrário. Por exemplo, eu mesma sempre me relacionei sexualmente com homens. Antes de iniciar meu processo de transição de gênero eu era lida e identificada socialmente como gay. Um homem que se relacionava afetiva e sexualmente com outros homens. A partir do momento que eu começo transicionar, a mudança da minha identidade de gênero interfere também, diretamente, em como é lida e entendida, socialmente, minha orientação sexual. Se passo a me identificar e a ser identificada, de alguma forma, como uma mulher, mas mantenho a exclusividade do meu desejo sexual nos homens, então automaticamente também sou identificada enquanto heterossexual.
Mas é claro que, em muitas ocasiões, os homens cis que se relacionarem com mulheres trans e travestis, não serão vistos como heterossexuais, apesar de estarem se relacionando com mulheres. Isso porque a cisgeneridade é não só um lugar, mas também uma estrutura de poder na nossa sociedade. Crescemos entendendo que o normal é ser cis. Tão normal, tão naturalizado, que na maioria das vezes não é nem nomeado. O “trans” é visto, apontado, estudado. O “cis” não, pois é entendido hegemonicamente como o normal. Então o homem cis que se relaciona com uma mulher trans vai acabar sendo considerado um pária no mundo da masculinidade, não sendo digno de ser reconhecido como um hétero (que também é um lugar de poder) e , portanto, será apontado e acusado de ser gay. Ainda um crime bárbaro.
Essa naturalização do “cis”, enquanto o “trans” ainda é digno de espanto, de invisibilização e também de criminalização, nos empurra, cada vez mais para a necessidade de nomearmos o “cisgênero”. Nomearmos esse normal para que desnormalizado ele seja. Para que seja complexificado, estudado e entendido com profundidade. Não só enquanto uma identidade, mas enquanto parte de uma estrutura cissexista que nos permeia e penetra o tempo todo - do nascimento, das brincadeiras, dos relacionamentos, das políticas, das artes, dos afetos, da economia, da solidariedade, da educação, da representatividade, da perpetuação através de nossos filhos e futuras gerações.
É urgente a nomeação do “cis” não para uma acusação. Não existe absolutamente nada de errado em ser uma pessoa cisgênera. O que está errado, há séculos, são as estruturas patriarcais, alinhadas com as estruturas racistas e capitalistas, de desenvolvimento econômico excludente e predatório, que sempre seleciona corpos e identidades para a rejeição, a opressão, a exploração e a morte. E uma das formas que temos para causar rachaduras nessas estruturas, principalmente na capitalista, que é a que alimenta, impulsiona e sustenta todas as outras, é nomearmos o que não é dito, é apontarmos as violências não explícitas, é jogarmos luz sobre os rejeitos que foram naturalizados.
Quando você está se referindo a uma mulher trans, essas palavras sempre vêm juntas: “mulher” e “trans”; determinando quem aquela pessoa é, como ela se identifica e qual sua identidade de gênero. No caso de uma pessoa cisgênera, quando usamos apenas a palavra “mulher” para falar dela, estamos automaticamente dizendo (mesmo que sem querer), que ela é mais mulher que a outra, a trans. Estamos também colocando um status de “normal” nela, e dizendo que a transgênero não é “normal”, afinal esta precisa sempre ser demarcada pela sua identidade de gênero, ao contrário da cis que, aparentemente, não precisa.
Todo mundo possui identidade de gênero. Umas trans, outras cis.
*Lana de Holanda (@transcomunista no Instagram) é militante ecossocialista,
feminista e antirracista da Insurgência no Rio de Janeiro.