No Reino Unido será possível administrar doses de diferentes vacinas à mesma pessoa para remediar a escassez. A decisão, criticada por médicos e cientistas, mostra que nem mesmo na Europa o acesso à vacinação é dado como certo. Para cerca de dois terços dos habitantes da Terra, porém, por enquanto nem se fala em vacinas, pois a produção de 2021 foi toda reservada pelos países ricos.
Andrea Capocci, Il Manifesto / IHU-Unisinos, 3 de janeiro de 2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Paradoxalmente, as áreas do mundo onde as vacinas são escassas são as que abrigam a maior capacidade de produzi-las. 60% da produção mundial de vacinas vem da Índia e a Rede de Fabricantes de Vacinas dos Países em Desenvolvimento, que reúne fabricantes da Ásia, América Latina e África, fornece 75% das vacinas distribuídas pela OMS. Expandir a produção das vacinas graças a essa indústria emergente é possível e em parte já está acontecendo. A empresa AstraZeneca firmou um acordo com o Serum Institute of India para um bilhão de doses, bem como com o Novavax, que ainda está em fase de teste. As demais empresas, como Pfizer / BioNTech e Moderna, por enquanto não pretendem colaborar com outras empresas para expandir a produção.
A Moderna se comprometeu a não patentear a vacina durante a pandemia, abrindo mão do monopólio e permitindo que outras empresas a produzam. No entanto, de acordo com a ONG “Médicos sem Fronteiras”, não basta o empenho porque “o know-how, a tecnologia e outros componentes do desenvolvimento e produção de vacinas ainda podem ser protegidos pelas regras de propriedade intelectual”, afirma a responsável pelas políticas de vacinas Kate Elder.
Para remediar a falta, a OMS iniciou o programa Covax para coletar doações internacionais, comprar 2 bilhões de doses das empresas farmacêuticas e repassá-las aos países em desenvolvimento. Apesar do apoio da Fundação Gates e da Global Alliance for Vaccine and Immunization (Gavi), o programa corre o risco de fracassar. Quem revelou isso foi uma reportagem da Reuters, que teve acesso a documentos internos da Gavi, nos quais “o risco de não conseguir criar uma estrutura Covax" é considerado "muito alto". O perigo advém da falta de recursos e das dificuldades dos fornecedores das vacinas consideradas de mais baixo custo (AstraZeneca, Sanofi, Novavax) em garantir o abastecimento. “Os países mais pobres correm o risco de ficar sem vacinas até 2024”, relata outro dos documentos da Gavi examinados.
Considerando que nem o mercado nem as instituições de caridade parecem em condições de garantir vacinas suficientes, a última estratégia disponível é contornar patentes. A OMS tentou fazer isso com boas maneiras, criando o "Covid-19 Technology Access Pool", um programa de compartilhamento voluntário de tecnologias e conhecimento por empresas e governos que pode ser acessado livremente para produzir vacinas e terapias anti-Covid. Porém, mais de seis meses após seu lançamento, o programa está desoladoramente vazio. Diante do fracasso das iniciativas voluntárias, no final de outubro os governos da África do Sul e da Índia se dirigiram à Organização Mundial do Comércio (OMC), à qual propuseram suspender patentes, segredos industriais e copyright sobre medicamentos e vacinas contra a Covid-19. A proposta ganhou mais da metade de consensos dos Estados membros. Mas não basta: decisões como essa na OMC são tomadas por maioria de três quartos ou, mais frequentemente, com o consenso de toda a organização. Os proponentes têm até o final de janeiro para chegar a um acordo, mas parece impossível demover a oposição dos EUA e da UE: as superpotências consideram que as regras do comércio internacional já são suficientemente flexíveis. É verdade que a OMC oferece aos estados a possibilidade de conceder "licenças compulsórias", ou seja, não aplicar patentes unilateralmente para enfrentar específicas crises sanitárias.
Mas, de acordo com os defensores da suspensão, o procedimento para aplicar licenças obrigatórias é muito longo e complexo e, essencialmente, inaplicável. A negociação lembra o que, no final dos anos 1990, viu-se as empresas farmacêuticas e os governos da África do Sul e da Índia (sempre eles) se oporem na questão das patentes que limitavam o acesso aos medicamentos anti-Aids nos países pobres. Graças à mobilização global do "povo de Seattle", as empresas farmacêuticas foram derrotadas naquela disputa.
Mesmo na ausência de um movimento daquela magnitude, uma centena de movimentos e associações gostariam de pelo menos mudar a posição da UE e lançaram uma Iniciativa dos Cidadãos Europeus intitulada "No profit on pandemic": é uma proposta de lei popular dirigida à Comissão Europeia para que "os direitos de propriedade intelectual, incluindo patentes, não impeçam a acessibilidade ou disponibilidade de qualquer vacina ou tratamento futuro contra a Covid-19". Se a proposta atingir um milhão de assinaturas na UE, a Comissão terá de considerar a proposta e, eventualmente, traduzi-la em nova normativa.