No momento em que nos encontramos, a escassez de vacinas representa uma coisa só: violência sobre os países mais pobres. O Canadá já comprou, antecipadamente, doses de vacinas que chegarão para vacinar 5 vezes a sua população, enquanto a Nigéria ainda não viu sequer uma dose.
Bruno Maia, Esquerda.net, 7 de março de 2021
Solidariedade global e vacinas
Desde há cerca de 3 meses que a Organização Mundial do Comércio (OMC) discute uma proposta, apresentada por Índia e África do Sul, para suspender patentes de produtos médicos que combatam a Covid-19, pelo período em que durar a pandemia. A proposta não tem qualquer hipótese: Estados Unidos, União Europeia e Reino Unido estão contra. Ao seu lado, mais uma série de países ricos: Japão, Suíça, Canadá e Austrália. Face à escassez de vacinas, o objetivo era permitir que os países mais pobres pudessem utilizar a capacidade que têm para produzir as suas próprias vacinas, ou na ausência desta, negociarem preços que pudessem comportar. Mas isso não vai acontecer. Porque os países mais ricos não querem.
No momento em que nos encontramos, a escassez de vacinas representa uma coisa só: violência sobre os países mais pobres. O Canadá já comprou, antecipadamente, doses de vacinas que chegarão para vacinar 5 vezes a sua população, enquanto a Nigéria ainda não viu sequer uma dose. Austrália, Japão e Canadá representam 1% da população mundial mas já asseguraram mais vacinas de que toda a América Latina junta.
No início da pandemia, quando era politicamente frutuoso falar de solidariedade global, a Assembleia das Nações Unidas aprovou uma resolução em que apelava aos governos do mundo e à indústria farmacêutica que garantissem um “justo, transparente, equitativo, eficiente e atempado acesso e distribuição” de tratamentos e vacinas a todos os que deles necessitassem, especialmente os países mais pobres. Em Maio de 2020, 140 chefes de Estado e líderes, entre os quais Durão Barroso, assinavam um apelo conjunto em que se podia ler: “Este não é o tempo de permitir que os interesses das empresas e governos mais ativos sejam colocados acima da necessidade universal de salvar vidas, ou de deixar esta tarefa moral gigantesca às forças de mercado. O acesso às vacinas e tratamentos como bens públicos globais é do interesse de toda humanidade. Não podemos permitir que os monopólios, competição bruta ou nacionalismo míope se atravessem neste caminho”. De seguida, a própria Organização Mundial da Saúde (OMS), publicava o “Solidarity call to action”, um documento subscrito por dezenas de países, entre os quais Portugal, em que apelava às farmacêuticas a “partilha voluntária de conhecimento relevante, propriedade intelectual e dados que permitam a produção e distribuição em larga escala” de ferramentas como as vacinas.
O mecanismo Covax
A OMS parece conhecer bem o mundo onde se move! Apoiou, por isso, em parceria com governos e outras entidades, a criação do mecanismo “Covax”, cujo objetivo é distribuir vacinas pelos mais pobres do mundo. Até hoje, terá recebido 1,7 mil milhões de euros, com contribuições muito generosas do Reino Unido e do Canadá e com a promessa de Joe Biden doar o dobro do que foi angariado até agora. A União Europeia contribuiu com 96 milhões de euros... 5,8%! O maior bloco económico do mundo contribui com 6%! Mas mesmo com a doação dos norte-americanos, a Covax só conseguirá comprar vacinas para 10% dos países mais pobres. Muito aquém da meta dos 2 mil milhões a que se tinha proposto.
Winnie Byanyima, diretora da UNAIDS, o programa da ONU para o VIH/SIDA, que tão bem conhece a história horripilante da SIDA em África e das recusas das grandes farmacêuticas em colaborar com a distribuição de medicamentos antirretrovirais entre os mais pobres, afirmava há pouco: “Há um apartheid na vacinação. É uma discriminação e é realmente vergonhoso o que está a acontecer. Vemos os países ricos a discutirem entre si sobre quem vai receber que quantidade, enquanto outros países apenas podem ficar à espera a assistir, penso que é uma vergonha!"
Meia dúzia de farmacêuticas irá deter todas as patentes das vacina contra a Covid-19. A Pfizer, primeira na corrida, prevê produzir 1,35 mil milhões de doses no ano de 2021. Só que já vendeu mil milhões aos países mais ricos. Traduzindo por miúdos: vendeu 82% do total da sua produção a 14% da população. E a Moderna, a segunda vacina a chegar ao mercado, já vendeu 780 milhões de doses das mil milhões que projeta produzir este ano – 78% da sua produção vendidos a 12% da população!
A União Europeia pode espernear com a AstraZeneca e as expectativas defraudadas na entrega de vacinas no primeiro trimestre. Mas enquanto continuar a fazer parte deste “bloco” de poderosos que bloqueiam qualquer tentativa de alargar ou anular as patentes na OMC, deixando mais de 80% da população mundial desprotegida, nunca será mais do que a embaixadora da pura soberba incompetente de quem nem contratos sabe redigir.
As vacinas foram pagas com dinheiros públicos
Continuamos com problemas na distribuição das vacinas contra a Covid-19. Os Estados mais ricos meteram muitos milhões no desenvolvimento destas vacinas. OS Estados Unidos, no total, terão colocado 12,5 mil milhões de dólares. A Moderna recebeu 2,5 mil milhões de fundos, o que, de acordo com a organização Public Citizen, corresponde praticamente a 100% dos custos do desenvolvimento da vacina. Os norte-americanos, para além do financiamento, ainda pré-compraram 600 milhões de doses à Moderna, garantindo um lucro de 8 mil milhões, três vezes mais do que o seu custo estimado. A Pfizer afirma não ter recebido subsídios mas é sabido que a sua parceira de negócio, a BioNTech, só da Alemanha recebeu 374 milhões de euros. A AstraZeneca, que concebeu a sua vacina em parceria com a Universidade de Oxford, “prometeu” comercializar a sua vacina sem fins lucrativos, enquanto durasse a pandemia. Só que os acordos que assinou especificam que a empresa pode, a seu desejo e independentemente da Organização Mundial da Saúde, declarar a pandemia terminada em Julho deste ano e começar a colher dividendos. Esta vacina recebeu mil milhões de dólares norte-americanos e 20 milhões de libras britânicas. Tanto investimento público e, no entanto, as farmacêuticas mantêm os direitos exclusivos sobre as vacinas, lucram com o negócio (15 mil milhões para a Pfizer e 5 mil milhões para a Moderna só em 2021) e mantêm um torniquete na distribuição, que está a atrasar o controlo da pandemia e a deixar os países mais pobres sem soluções.
As vacinas de mRNA não são uma inovação da indústria. Já há algumas décadas que se tentam produzir vacinas com mRNA, no entanto esta molécula era destruída pelo nosso sistema imunitário, porque a reconhecia como sendo “estranha”. É na Universidade da Pensilvânia que o grupo de Katilin Karikó desenvolve o conceito de modificação do mRNA – modificado para “escapar” às nossas defesas. Ao mesmo tempo, o grupo de Barney Graham do NIH, concebe o design da proteína vírica, que é produzida com a informação do mRNA e que, essa sim, estimula a nossa imunidade a produzir anticorpos contra o vírus SARS-Cov2. Ora, Karikó desenvolveu o seu trabalho na Universidade da Pensilvânia, financiada pelo governo norte-americano, e Graham no NIH, uma estrutura federal pública, também norte-americana. E mesmo o transportador do mRNA, as nanopartículas de lípidos, responsáveis por “depositar” o mRNA dentro das nossas células, foi um conceito desenvolvido no MIT (Massachusetts Institute of Technology). Moderna e a BioNTech viriam mais tarde a comprar a patente da modificação do mRNA, pagando 75 milhões de euros cada uma.
Pesquisa e inovação no setor farmacêutico
Por que razão tem o mundo de ficar refém de meia dúzia de farmacêuticas? Um dos argumentos utilizados pela indústria e pelos Estados para aceitarem as patentes e uma posição de oligopólio protegido com exclusividade de produção e comercialização, é o facto do desenvolvimento de uma nova molécula ficar muito dispendioso. Um novo medicamento leva, em média, 14 anos desde que é concebido até chegar ao mercado e estar disponível para os doentes. Não é o caso destas vacinas, a urgência em controlar a pandemia levou entidades reguladoras a emitir sucessivas autorizações de emergência para as colocar no mercado o mais rapidamente possível. Também não se pode dizer que a investigação científica seja o maior investimento das farmacêuticas: estas empresas gastam aproximadamente o dobro em marketing do que o que investem em investigação. E isso representa apenas 1/5 dos dividendos.
O mito da “inovação científica” que tem que ser paga às farmacêuticas está há muito destruído pelos factos. Num trabalho desenvolvido nos EUA (Funding Health Sciences Research: A Strategy to Restore Balance. Washington, DC: The National Academies Press), demonstrava-se que, de todas as novas moléculas e dispositivos introduzidos na prática clínica, 51% provinham do sector público e apenas 45% eram de origem privada. Entre 2010 e 2016 foram aprovados pela FDA, a entidade reguladora dos medicamentos no EUA, 210 novos medicamentos e todos eles, todos, receberam financiamento público. Ao todo, o governo federal norte-americano gastou 100 mil milhões de dólares no desenvolvimento destas novas moléculas. De acordo com o British Medical Journal, cerca de 85-90% dos novos produtos introduzidos pela indústria farmacêutica nos últimos 50 anos, trouxeram poucos ou nenhuns benefícios em saúde e alguns chegaram mesmo a provocar dano. A industria aloca a quase totalidade dos seus recursos para desenvolver moléculas não-inovadoras, cópias de outras já existentes no mercado, acrescentando-lhes pequenas variações que lhes conferem discretas vantagens. Depois investem avidamente na sua promoção e marketing.
Vacina da Pfizer: estudo de caso
A Pfizer foi a primeira empresa a colocar uma vacina contra a Covid-19 no mercado. Irá produzir um total de 1350 milhões de doses este ano, no entanto, já “pré-vendeu” mil milhões (82%) a um conjunto restrito de países (ricos) que representam apenas 14% da população mundial. A farmacêutica propagandeia não ter recebido qualquer fundo público para produzir a sua vacina (ao contrário das restantes), só que o seu produto resulta de uma parceria com outra empresa, mais pequena, a BioNTech. E a BioNTech recebeu fundos públicos, precisamente 375 milhões de euros da Alemanha e 100 milhões do Banco de Investimento Europeu.
O primeiro anúncio de uma vacina contra esta pandemia surgiu em Novembro, pela boca do CEO da Pfizer, que confirmou uma eficácia superior a 90% nos ensaios clínicos com humanos sem, no entanto, tornar os resultados públicos. Passariam semanas até conhecermos esses resultados. Mas passaram menos de 24 horas até o mesmo CEO ter vendido ações da empresa no valor de 5,56 milhões de dólares, aproveitando o efeito do anúncio que o próprio tinha feito. Aparentemente, a venda das ações estaria planeada há meses. O que não estava nos planos de ninguém era o anúncio de resultados de ensaios clínicos, sem que os mesmo estivessem prontos...
A Pfizer é uma das maiores farmacêuticas do mundo. Atualmente só fica atrás da Johnson & Johnson, em termos de lucros: 52 mil milhões de dólares em 2019. Aos seus acionistas, a empresa já prometeu lucros de 15 mil milhões em 2021, só com a venda da nova vacina. Sobre partilhar a patente da vacina para aumentar a produção da mesma, o CEO tem apenas a dizer que: “Nesta altura, acho que não faz sentido... e seria perigoso”!
Mas quem é a Pfizer, afinal? Talvez seja mais fácil responderem a esta pergunta: lembram-se do filme “O fiel jardineiro”? Um filme de 2005, de Fernando Meirelles, com o Ralph Fiennes e a Rachel Weisz (óscar para melhor atriz secundária), no qual a personagem de Rachel é assassinada em África por estar envolvida numa investigação secreta a uma multinacional farmacêutica, que estava a fazer ensaios clínicos muito pouco éticos de um medicamento novo em africanos, manipulando os seus resultados e dos quais resultaram a morte de várias pessoas. Pois essa multinacional chama-se Pfizer e a história é verdadeira...
Em 1996, a Pfizer enviou uma equipa para Kano, na Nigéria, onde estava a ocorrer um surto de meningite. A empresa queria testar um antibiótico novo, o Trovan, e viu o surto como uma oportunidade. Desenhou ensaios clínicos para comparar o seu novo antibiótico com o antibiótico clássico – o ceftriaxone. Só que um “whistleblower” dentro da empresa revelou que a Pfizer não tinha pedido consentimento aos doentes para o fazer – vários pais vieram afirmar que não faziam ideia de que os seus filhos estavam a receber um medicamento “experimental”. Deste ensaio resultou a morte de 11 crianças e mais terão ficado com paralisia cerebral. Mais tarde apurou-se que a empresa administrava doses reduzidas de ceftriaxone às crianças, numa tentativa de diminuir a sua eficácia, aumentando os resultados positivos do seu produto, por comparação. A Pfizer acabou a pagar indeminizações na ordem dos 75 milhões de dólares à população de Kano. “Fast-forward” duas décadas e quando rebentou o escândalo da “Wikileaks”, alguns documentos secretos tornados públicos, demonstravam que a empresa tinha contratado uma equipa de investigadores para “descobrirem” provas de corrupção do Ministro da Justiça nigeriano, com o intuito de o chantagearem a abandonar o processo judicial contra a Pfizer.
Mas esta história horripilante não é a única que acompanha a empresa. Em 2016, no Reino Unido, a Pfizer foi condenada pela Autoridade da Concorrência a pagar a maior multa alguma vez passada por aquele organismo, por ter inflacionado artificialmente o preço de um medicamento anti-epiléptico, a fenitoína, para o qual detinha posição dominante de mercado. De um ano para o outro a companhia aumentou o preço do medicamento em 2600%. A Pfizer também é dona de uma vacina contra a pneumonia provocada por pneumococos, uma infeção que afeta especialmente crianças vulneráveis, em países pobres. Entre 2001 e 2015, o preço da vacina aumentou 68 vezes e, segundo os Médicos Sem Fronteiras, morrem todos os anos 1 milhão de crianças com esta pneumonia, por falta de acesso à vacina. Em 2009, a Pfizer voltava a bater recordes, tendo sido multada nos Estados Unidos em 2,3 mil milhões de dólares, a maior multa da história norte-americana, por ter promovido ilegalmente um medicamento destinado a tratar artrites, o Bextra, publicitando o uso não autorizado noutras doenças, a prescrição de doses 8 vezes superiores ao aprovado e por ter pago prémios indevidos a médicos prescritores.
Negócios... que não servem para nada!
Que tipo de negócios são estes, em que multinacionais detêm o monopólio de um produto, não têm de lidar com concorrência de mercado, são financiadas diretamente pelos Estados, lucram com o trabalho desenvolvido por instituições públicas e seus investigadores, garantem contratos de promessas de compra na ordem dos milhares de milhões e nem sequer podem ser legalmente responsabilizadas se falharam as promessas feitas? Só pode ter um nome: parasitismo! O povo paga a produção do produto e depois ainda paga o produto. Como negócio, é uma maravilha.
E o mais trágico nesta história nem é a ganância e a falta de solidariedade dos países mais ricos. É mesmo o facto de sabermos que se não protegermos o resto do mundo, novas mutações acumular-se-ão e farão ricochete nos países mais ricos. Já dizia o presidente da OMS: “se não vacinarmos todo o mundo, daqui a um ano voltamos à estaca zero”. Nessa altura, as vacinas não terão servido para nada. Tantos milhões e tanta soberba deitados ao lixo. Mas haverá quem tenha ganho: a Pfizer que já anunciou lucros de 15 mil milhões aos seus acionista para o final do ano e a Moderna que os estima em 5 mil milhões!
Bruno Maia é médico neurologista português, ativista pela legalização da cannabis e da morte assistida