São Paulo, 20 de junho de 2023. Daniel Lopes entrevista Valesca.
Valesca é formado em Relações Internacionais pela USP, estudante de História, militante do RUA - Juventude Anticapitalista, da Insurgência e 3º vice-presidente da UNE pela Juventude Sem Medo.
Durante os anos de governo Bolsonaro a UNE ganhou papel de protagonismo nas lutas nas ruas ao incidir para a derrota do próprio bolsonarismo e do fascismo nas ruas.
Esse avanço se deu primeiro no Tsunami da Educação em 2019, mas seguiu durante a pandemia e nas mobilizações pelo Fora Bolsonaro, nos últimos anos do governo. Hoje, nessa nova etapa da conjuntura a partir da vitória e início do governo Lula, como a UNE se localiza?
Antes de falar do papel que a UNE cumpriu nos últimos anos, vale falar um pouco da vocação histórica da UNE. A gente, no RUA, na Juventude Sem Medo compreende a UNE muito mais do que apenas uma entidade que representa o conjunto dos estudantes, que fala em nome dos estudantes, mas que deve ser uma ferramenta de luta a ser apropriada pelos estudantes, para construir luta e impulsionar ela com os estudantes, não só em nome deles.
Acho que, inclusive, ao longo da história, os momentos em que a UNE foi mais decisiva, nos momentos que cumpriu um papel importante na disputa dos rumos do Brasil, foi quando ela foi uma ferramenta de luta. Foi assim lá no começo do século passado, na luta pela estatização do petróleo, que fazia total sentido há quase cem anos, na luta contra a ditadura militar, no Fora Collor, pelas diretas já. E mais recentemente, nesses exemplos que você citou.
Porém, durante os primeiros governos do PT, claro, em uma conjuntura que não havia uma extrema direita com peso de massas, e que a UNE, expressa em sua direção majoritária, cumpriu um papel não de independência, mas um papel de reprodução do governo, a entidade entrou em contradição com a luta dos estudantes.
No chão da universidade, a UNE acabava cumprindo um papel de pé de breque, de querer estancar essas lutas, ou querer que as lutas se limitassem a defender as políticas públicas dos primeiros governos Lula e Dilma, que tinham uma série de limitações e contradições. Ela não era uma ferramenta de lutas a serviço da transformação da educação. Mas, desde o golpe de 2016, se relocalizou.
Com o golpe, a UNE se tornou uma ferramenta de luta em unidade. Então, de 2016 até o momento que a gente está agora, com a derrota do Bolsonaro, teve uma importante ferramenta de luta. Ela voltou a cumprir esse papel histórico e decisivo.
Inclusive, nesses anos, ela inclusive ficou mais moralizada entre os estudantes. Os estudantes passam a conhecer mais a entidade, tem mais referência nela, ainda que em muitos lugares também o cotidiano dos estudantes da UNE não chegue.
Mesmo assim, segue como grande desafio o enraizamento da UNE, para que ela exista no dia a dia, no cotidiano, no chão da universidade. Considero que vivemos hoje um momento de encruzilhada, no melhor dos sentidos: derrotamos Bolsonaro eleitoralmente, o que é decisivo para a gente estar numa conjuntura que tenha a possibilidade de abrir novos caminhos, mas nada está dado. O bolsonarismo segue, a extrema-direita segue, inclusive enraizamento social e capacidade de mobilização , vide aí o 8 de janeiro, e a articulação da extrema-direita para fazer a CPI do MST e a tentativa de criminalização dos movimentos sociais.
Nesse sentido, quais os principais desafios para a entidade no próximo período?
Nós temos hoje, no Brasil, dois desafios.
O primeiro é derrotar, enterrar, botar na lata do lixo da história a extrema-direita no seio da sociedade. Então, a UNE tem que ser uma ferramenta para denunciar o golpismo, para defender que não haja anistia, para a responsabilização de todos os bolsonaristas, todos aqueles que cometeram crimes durante o desgoverno Bolsonaro.
E acho que o segundo papel da UNE é que ela tem que, ao mesmo tempo, conciliar isso com defender um programa radical de esquerda para a transformação da educação e do Brasil. Lula foi eleito, mas não adianta só a gente “fazer o L lá” e ir para casa, achar que agora é só deixar o Lula governar que tudo vai estar bom e perfeito. Porque, para derrotar o Bolsonaro, o governo do Lula teve que ser eleito numa coalizão muito ampla com setores também que têm interesses contraditórios ao interesse dos estudantes. O Ministério da Educação é bom exemplo, tem ali dentro setores ligados ao interesse do capital financeiro, dos grandes conglomerados da educação, Fundação Lemann, Todos Pela Educação, etc, que disputam a educação como mercadoria.
Num governo do Lula que é pressionado fortemente pela extrema-direita e pela direita tradicional, que tem setores como o União Brasil, de partidos do Centrão, com interesses muito alheios aos interesses do povo e que pressionam o governo, precisamos lutar pela aplicação do programa eleito pelas urnas.
Que não seja o Arthur Lira, que não seja a Faria Lima, que não seja o Campos Neto a ditarem as políticas do governo, mas que seja a luta do povo e dos estudantes.
Na toada das lutas sociais e principalmente das lutas na rua, após o golpe, da criação da Juventude Sem Medo enquanto o grupo de aglutinação de forças sociais a partir da Frente Povo Sem Medo e a partir dos movimentos amplos que se formaram após 2016, mas enfim, 2018 também, 2020 até a Frente Fora Bolsonaro transformaram as pautas e lutas políticas do que era o governo eleito em 2003 para hoje.
Nesse sentido, qual a disputa na UNE hoje? O que a Juventude Sem Medo tem a protagonizar e a conquistar junto aos estudantes?
Estamos num momento em que a UNE está se relocalizando nessa nova conjuntura.
Foi uma ferramenta de luta importante na derrota do Bolsonaro e agora precisamos seguir na luta por uma entidade que seja potência para a luta dos estudantes. Nesse sentido, a Juventude Sem Medo segue tendo um papel estratégico. A UNE não pode incorrer em dois grandes perigos: um deles é virar governo no sentido de reproduzir, ser um veículo de reprodução da política institucional do governo acriticamente. O governo atual é amplo, de frente ampla, com uma coalizão que inclui setores da direita. Portanto, a UNE precisa de independência em relação ao governo para ser capaz de defender o governo contra a extrema direita e apoiar as medidas progressivas apresentadas pelo governo, como o reajuste das bolsas, conquistado após anos de luta do movimento estudantil, e outras políticas progressistas já implementadas nos primeiros meses de governo.
No entanto, a UNE também precisa ter independência para pressionar e cobrar o governo, como afirmou o próprio Lula. A governabilidade de Lula não estará atrelada à UNE se tornar uma parte incorporada do governo que desenha políticas públicas alinhadas à direita. A governabilidade capaz de levar o Brasil a transformações importantes e resolver os problemas reais da vida do povo e dos estudantes será construída a partir da mobilização e da luta social, que foi crucial para derrotar Bolsonaro e continua sendo importante para deslocar a correlação de forças no Brasil à esquerda.
Eu acredito que esse é o papel que a UNE pode cumprir e que os setores do PSOL, da Frente Povo Sem Medo e da Juventude Sem Medo podem contribuir.
Ela não pode ser uma base acrítica do governo, mas sim uma base que apoie tudo o que for ao encontro dos interesses dos estudantes, ao mesmo tempo em que é uma ferramenta de luta independente para enfrentar os interesses dos tubarões do ensino, do agronegócio, do garimpo. A UNE deve lutar contra o Marco Temporal e denunciar os perigos do Arcabouço Fiscal, incluindo a importante centralidade de uma política de expansão das universidades que leve em consideração o contexto atual em 2023.
Que destine, principalmente, a maior parte do orçamento da educação para as universidades públicas. Nos últimos anos, o maior investimento foi no ensino privado, que é gerido por conglomerados educacionais com ações abertas na bolsa de Nova York, que servem mais aos interesses dos investidores do que aos interesses dos estudantes. É necessário que a UNE esteja do lado de uma educação transformadora, crítica, libertadora, pública e gratuita de qualidade.
Além disso, defendemos um programa de metas progressivas para aumentar as vagas nas universidades públicas. Sem destinar nenhum centavo para esses tubarões da educação. As metas devem ser progressivas, à medida que as vagas nas universidades públicas forem aumentando, os estudantes que ingressam atualmente nas universidades privadas por meio de políticas públicas como o ProUni e FIES devem ser transferidos gradualmente para as universidades públicas, até que a grande maioria ou todos os estudantes brasileiros estudem em universidades públicas.
Essas instituições devem receber investimentos não apenas para a entrada dos estudantes, Não só para os estudantes entrarem, mas também para garantir políticas de permanência, como restaurantes universitários, creches na universidade e moradia universitária. Além disso, a implementação de cotas trans nas, vestibular indígena e cotas na docência.
Essas medidas são necessárias para transformar tanto o conteúdo quanto os profissionais que atuam na educação. Acredito que somente assim conseguiremos verdadeiramente revolucionar a educação no Brasil.
No entanto, não podemos cair no erro de sermos sectários, acreditando que a radicalidade se baseia em gritar mais alto ou em heroísmo individual. Estamos em um momento que demanda unidade e a construção de sínteses. A Juventude Sem Medo tem como base a independência, a unidade e a relação com os movimentos sociais.
Devemos quebrar as fronteiras do que está dentro e fora da universidade, superando os limites impostos pelos muros acadêmicos. Nossa perspectiva é transformadora e libertadora, buscando um país que não deixe ninguém para trás.