Enquanto estão em curso negociações para um diálogo com a oposição política, incluindo a sediciosa financiada pelos EUA, querem calar vozes potencialmente dissidentes no seio do chamado partido do povo.
Verzi Rangel, Esquerda.net, 2 de fevereiro de 2021
Criança junto a mural em Caracas que lembra Chávez - foto CLAE/estrategia.la
Nas redes sociais venezuelanas, espalhou-se o alerta dos militantes de esquerda sobre a decisão do Presidente Nicolas Maduro e a direção do Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV) de pôr fim a qualquer dissidência dentro das fileiras do partido no poder, o que significaria o enterro definitivo do caminho traçado pelo ex-presidente Hugo Chávez.
O anúncio de Maduro, via Twitter, de “consolidar uma grande aliança nacional e denunciar com nomes e apelidos os divisionistas onde quer que estejam” parece ditar o extermínio político de qualquer opinião da esquerda do chavismo que ponha em causa a “viragem estratégica” do seu projeto político, afundando-se numa aventura que antagoniza o legado ideológico e político de Chávez.
Este passo parece seguir-se ao da recuperação da Assembleia Nacional, que estava nas mãos da oposição radical e do autoproclamado presidente Juan Guaidó (hoje totalmente desvalorizado), que seguia os ditames do governo dos EUA para acabar – fosse de que forma fosse – com o governo constitucional venezuelano.
“Pretenderam criar um Estado paralelo e querem manter essa linha, inexistente, inválida e nula na Venezuela”, disse Maduro. Muito pelo contrário, acrescentou Maduro, o Estado nacional foi reforçado e as aspirações de um pequeno grupo político foram desbaratadas”. Logo em seguida começou a olhar para dentro da sua própria casa.
Agora, enquanto estão em curso negociações para um diálogo com a oposição política, incluindo a sediciosa financiada pelos Estados Unidos, querem calar vozes potencialmente dissidentes no seio do chamado partido do povo. Talvez se tivessem ouvido mais cedo, não se teria chegado a esta situação.
Alguns falam do “segundo enterro de Chávez”, da rendição aos planos e interesses da burguesia interna, para promover um contra-plano neoliberal, antinacional e antipopular, o que significaria a derrota estratégica da Revolução Bolivariana, anti-imperialista e anticapitalista.
Não haverá mais espaço para dar uma opinião diferente, para expor as ideias que sempre alimentaram a Revolução Bolivariana dentro do PSUV ou das organizações do Pólo Patriótico, agora que se conquistou a maioria parlamentar (93%) na recém-eleita Assembleia Nacional.
Mas antes das eleições parlamentares, o governo de Maduro ordenou a intervenção – através de decisões do Supremo Tribunal de Justiça – nas direções dos partidos chavistas Patria Para Todos, Movimiento Revolucionario Tupamaros, Unión Popular Venezolana. E fecharam os meios de comunicação públicos deste último partido, e em especial dos candidatos do Partido Comunista da Venezuela, integrante dessa coligação política.
Não há muito tempo, o atual presidente da Assembleia Nacional, Jorge Rodríguez, tinha afirmado que o PSUV é o maior e mais democrático partido da América Latina, mas parece que agora não aceita outras opiniões que não sejam dos maduristas.
Esta decisão não só contradiz frontalmente os recentes apelos à unidade nacional face à estratégia subversiva da direita golpista e dos seus mentores em Washington, como também aprofunda uma campanha de exclusões, perseguições, retaliações e repressão contra os setores internos e externos da dissidência chavista.
Esta perseguição, um apelo à intolerância e ao ódio, limitou-se inicialmente às injúrias e ataques contra quadros e organizações revolucionárias e ao uso de expressões pejorativas tais como divisionistas, traidores, desleais, esquerdistas tresloucados, idiotas úteis da direita, epítetos que ajudaram a criar um clima de intolerância e agressividade política e pessoal contra os setores do chavismo rebelde e contestatário.
O apelo feito através de redes sociais é para o restabelecimento da coexistência e tolerância no seio do partido do governo e do Estado e da sociedade venezuelanos, aprofundando a Democracia Participativa e Protagonista proposta por Chávez como base para o desenvolvimento pacífico do processo revolucionário venezuelano.
A Realidade
Não há necessidade de silenciar vozes para saber que o PIB venezuelano caiu cerca de 70% de 2013 até à data, e que a economia está em estagflação. Além disso, com o processo hiperinflacionário, o país teve variações de preços superiores a 50% ao mês. Em 2018 apenas, que foi o ano de pico, o país atingiu 130.060% de inflação, de acordo com os números oficiais.
Desde que Nicolás Maduro assumiu a presidência venezuelana após a morte de Hugo Chávez, o desenvolvimento da guerra económica teve vários momentos e elementos determinantes, desde um desabastecimento programado e seletivo de bens, em 2013, 2014, 2015 até 2016, que não foi produto de uma queda na produção, mas sim de uma alteração dos mecanismos de distribuição.
É também verdade que o ataque dos EUA à estatal Petróleos de Venezuela (PDVSA) teve várias consequências, uma vez que ao cair a produção, com um mínimo de 400.000 barris em 2020, também caíram as exportações e as receitas em divisas estrangeiras, e consequentemente o país ficou com menos recursos para importar bens de consumo, insumos, matérias-primas e peças sobressalentes para a produção, e não só a petrolífera.
O impacto, assinala a economista pró-governamental Pasqualina Curcio, também afetou a possibilidade de honrar os compromissos da dívida externa porque reduziu-se a entrada de moeda estrangeira, afetando as reservas internacionais, as nossas poupanças. Portanto, à medida que diminuíam, era preciso usar a reserva. Desta forma, as reservas internacionais passaram de cerca de 20 mil milhões de dólares em 2013 para cerca de 6 mil milhões na atualidade.
Os ataques à moeda venezuelana começaram em 2006, quando o bolívar foi cotado a um preço que que não era o verdadeiro, o principal ataque foi desferido a partir de 2013, até se tornar mais agudo em 2017, o que gerou uma depreciação da moeda de cerca de um milhão de milhões por cento.
Não há erro no número: em 2012, um dólar equivalia a oito bolívares, e hoje equivale a 1.500.000 bolívares soberanos, quer dizer, a 150 mil milhões do bolívar antes da reconversão de 2018.
Vale a pena recordar que em dezembro de 2019 o senador norte-americano Richard Black deixou claro que havia uma política imperial contra a moeda venezuelana: “Desmonetizámos a moeda deles, e, através do sistema bancário internacional, fizemos com que o bolívar deixasse de ter valor. Depois, fomos e dissemos: ‘Vejam como este governo é mau, a sua moeda não vale nada’. Bem, não foram eles, fomos nós que lhes tornámos a moeda inútil”.
O esbracejar do afogado
O governo de Maduro desenvolveu várias respostas. Em 2016, face ao desabastecimento, foram criadas as Comissões de Abastecimento e Produção Local, que permitiram a distribuição de alimentos subsidiados pelo Estado. Do mesmo modo, em 2018 foi criado o Petro, que nasceu como criptomoeda, para contornar o bloqueio do sistema financeiro... mas logo foi proibido de circular nos Estados Unidos por ordem executiva de Donald Trump.
Não faltaram os planos de títulos grandiloquentes, como o sancionado em agosto de 2018 quando foi anunciado o Plano de Recuperação Económica e Prosperidade, que incluía um aumento salarial de quase 3.700%, o qual se deteriorou num mês devido ao ataque sistemático ao bolívar, que perdeu 100% do seu valor em relação ao dólar, enquanto o controlo cambial era flexibilizado.
“Isto foi feito na esperança de que o investimento estrangeiro privado viesse, porque uma das desculpas era que eles não tinham onde trocar livremente moeda estrangeira”, explica Curcio. No entanto, “os investimentos não chegaram necessariamente, porque estão a observar a situação de estagflação que gera instabilidade no momento de investir".
Em outubro passado, o governo de Maduro, pouco antes das eleições parlamentares, aprovou a Lei Antibloqueio, com o objetivo de atrair capital privado – não investimento público – mas a sua eficácia tem sido muito limitada. Muitos economistas duvidam da sua eficácia e receiam que as divisas desapareçam devido ao cenário de câmbio livre.
Deschavizar
Embora os analistas alertem para uma linha oficial ir suprimindo dos média as referências ao líder da Revolução Bolivariana Hugo Chávez, que tinham servido como um grande guarda-chuva sob o qual o PSUV e o Pólo Patriótico estavam abrigados, o imaginário coletivo parece não o esquecer e nas redes sociais um breve clip de 48 segundos de um vídeo do antigo presidente tornou-se viral, o que é entendido como uma resposta enérgica a Maduro.
Nele, Chávez salienta: "Deixemo-nos de sectarismos. (...) Vamos vestir-nos de humildade. Digo isto a todos os militantes do nosso partido e especialmente àqueles de nós que ocupam posições de representação ou de direção, no Estado tal ou na região tal. Ninguém tem motivos para se arvorar em caudilho, porque aqui mando eu, porque aqui faz-se o que eu mando, porque aqui faz-se o que eu digo...”.
“Não! Vistamo-nos de humildade. E o partido também não pode tomar essa atitude de mandão. Vamos abrir-nos...”.
Ámen.
Álvaro Verzi Rangel é sociólogo venezuelano, codirector do Observatório sobre Comunicação e Democracia e analista do Centro Latino-Americano de Análise Estratégica (CLAE).
Publicado originalmente em Estratégia(link is external)
Tradução de Luis Leiria para o Esquerda.net.