As eleições parlamentares na Venezuela registraram uma elevada abstenção (quase 70%) e o PSUV teve 69% dos votos e 91% dos mandatos. A decisão da oposição de se abster e não participar favoreceu Maduro, destaca o analista.
Manuel Sutherland, Esquerda.net, 11 de dezembro de 2020
Segundo o Conselho Nacional Eleitoral da Venezuela (CNE), consulta feita a 11 de dezembro (posterior ao artigo), com 274 lugares atribuídos em 277, o PSUV elege 253 deputados, 91,34%. Veja os resultados completos*
Com uma altíssima abstenção, o Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV) venceu as eleições parlamentares. Apesar da impopularidade do governo, a decisão da oposição de não participar nas eleições acabou por favorecê-lo e assim reconquista a Assembleia Nacional e tira à oposição a única instituição que controlava desde 2015.
Felizes madrugadas de vitória! (…) Boas manhãs de vitória! (…) Temos uma nova Assembleia Nacional, tivemos uma tremenda e gigantesca vitória. Nicolás Maduro.
A 6 de dezembro, realizaram-se eleições para uma nova Assembleia Nacional (AN), o único poder do Estado que não respondia, desde 2015, ao Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV), hegemónico absoluto na política nacional. O partido liderado por Nicolás Maduro controla 19 dos 23 governadores, manda em 305 dos 335 municípios e tem 227 dos 251 deputados nas assembleias legislativas regionais. Todo esse poder contrasta com uma desaprovação à beira dos 90%, fruto de uma gestão desastrosa da economia, que registou o pior colapso da sua história na era Maduro (2013-2020).
Nestas circunstâncias, parecia que a derrota eleitoral do governo seria esmagadora. No entanto, aparentemente aconteceu o contrário. Apesar de uma altíssima abstenção, que rondou os 70%, o PSUV celebra uma “vitória” muito confortável, que lhe permite recuperar o controlo da AN. No entanto, este fracasso eleitoral da oposição foi vendido como um triunfo pelos seus publicitários, que afirmam ter alcançado uma abstenção histórica.
Neste cenário, surgem várias questões: com que percentagens o chavismo voltou a ganhar? É realmente uma vitória do governo? Como avaliar a estratégia abstencionista e insurrecional da ala radical da oposição? Quais são as perspetivas a curto prazo na crise política e os riscos de apatia e descontentamento? Vejamos.
Uma derrota evitável
O governo venceu com 68% dos 6,2 milhões de votos apurados. Com poucos deputados por eleger, o PSUV atingiu cerca de 185 mandatos, o suficiente para deter o controlo pleno da AN, ou seja, para impulsionar leis constitucionais e mudar a seu bel-prazer quase todo o quadro jurídico nacional. Grosso modo, dir-se-á que o chavismo obteve alguns votos mais do que em 1998, mas com um peso eleitoral que se multiplicou por dois e com todas as vantagens de ser governo por mais de duas décadas consecutivas. Se na última eleição parlamentar, em 2015, votaram cerca de 74% dos eleitores, agora apenas cerca de 30% o fizeram. Ou seja, a abstenção quase triplicou e só é comparável à de 2005, nos momentos mais críticos do governo Hugo Chávez, quando nenhum opositor se apresentou às eleições, com discursos semelhantes aos atuais sobre a falta de garantias para a oposição. Então a abstenção foi de 75% e o chavismo ficou com 97% das cadeiras.
No domingo passado, neste contexto de abstencionismo massivo, a aliança de oposição melhor colocada obteve mais de um milhão de votos. E no seu conjunto, a oposição que participou nas eleições, mortalmente dividida e atomizada, conseguiu obter cerca de 87 deputados [os resultados posteriormente divulgados são significativamente inferiores, veja na nota*], quase um terço da AN. Um dado que não deixa de ser bastante significativo tendo em conta a feroz campanha da oposição abstencionista para desacreditar quem se dispusesse a enfrentar o chavismo no seu terreno mais fraco: o eleitoral.
O total de votos do PSUV chega a 4,2 milhões. Ou seja, 25% menos que o obtido nas eleições parlamentares de 2015, mas com um padrão superior. Se comparados os supostos oito milhões de votos obtidos nas eleições para a Assembleia Nacional Constituinte em agosto de 2017, a sangria é de quase 50%. É por si só notório que, se toda a oposição tivesse ido votar, teria facilmente vencido as eleições.
É útil esta "vitória" do governo?
A "vitória" do governo era esperada. Duas máquinas o moviam com infinitos recursos financeiros e mediáticos. Por um lado, o próprio partido no poder pressionou a sua base política, ameaçando com a recusa de caixas de comida aos que não votassem. Por outro lado, Juan Guaidó e a "comunidade internacional" fizeram esforços hercúleos para impedir que a sua própria base de oposição votasse, evitando assim que os opositores do governo votassem contra Maduro e o PSUV. É conhecido que o ex-candidato presidencial Henrique Capriles, que havia ameaçado participar nas eleições de 6 de dezembro, teve de renunciar a tal iniciativa por pressões que se transformaram em ameaças vigorosas: de sanções económicas a congelamento de bens nos Estados Unidos. Assim, com intimidações contra quem quisesse votar contra o governo, as eleições pareciam uma brincadeira de crianças para o PSUV, que literalmente correu sozinho.
Como era esperado, logo após vários países latino-americanos terem ignorado a eleição de domingo passado, a União Europeia rejeitou o resultado e pediu a Maduro que trace um caminho para a reconciliação nacional. É muito fácil ver que o chavismo se recusou a aceitar a proposta de supervisão e acompanhamento da UE porque isso poderia estimular uma participação que lhe teria dado uma derrota sem atenuantes. A sua tarefa era promover ações que incentivassem a abstenção do voto na oposição, o que conseguiu com enorme sucesso. Mesmo no dia das eleições, ele encarregou-se de cometer irregularidades eleitorais desnecessárias e grosseiras para incitar os abstencionistas. Desde os polémicos "pontos vermelhos", onde o "cartão nacional" é scaneado como forma de controle dos que votam no PSUV, até à mudança repentina, no próprio dia da eleição, do local de votação de Maduro e da sua esposa, da sua localização original no popular bairro de Catia para o forte militar Tiuna.
O governo não se preocupa com a conversa banal sobre a "legitimidade". De facto, respondeu assinalando que noutras partes do mundo há muita abstenção (por exemplo, nas eleições parlamentares na Roménia) e que em 1993 Rafael Caldera venceu as eleições presidenciais com apenas 17,66% dos eleitores, pouco menos dos 20% obtidos pelo governo nestas últimas eleições, e ninguém questionou a sua legitimidade. Em sua defesa, o Poder Executivo argumenta que, apesar da recusa dos observadores internacionais da UE, mais de 1.500 observadores nacionais e internacionais juntaram-se e foram deslocados para os centros eleitorais do país.
Passada a polémica das eleições, o governo assegura que finalmente poderá ter apoio legal às suas políticas econômicas, que passam por uma abertura e uma busca frenética de investimentos estrangeiros a qualquer preço. Espera-se que sejam aprovadas leis que visem a privatização expressa de valiosos ativos estatais, um processo que já foi avançado sotto voce. Também se planeiam aberturas massivas, endividamento e normas que garantam o investimento vantajoso de empresários iranianos, turcos, russos e chineses. A intenção é sobreviver no dia a dia. Cada hora que permanecem no poder é lucro.
A insurreição imaginária
Num aziago 20 de maio de 2018, a ala maioritária da oposição decidiu abster-se nas eleições presidenciais. A tática tinha sido usada já nas citadas eleições parlamentares de 2005, nas quais, previsivelmente, o chavismo ficou com o controlo total do parlamento e promoveu com toda a serenidade as leis que tornariam mais fácil a governação sem qualquer contrapeso. Em maio de 2018, argumentou-se que o regime tinha excluído da batalha eleitoral candidatos históricos da oposição. Por essa e outras irregularidades, a oposição decidiu abster-se para pressionar por condições eleitorais ótimas. O resultado é conhecido de todos.
Venezuela: Partido do Governo recupera maioria em eleições com 31% de participação
Desde 23 de janeiro de 2019, quando o deputado e presidente da AN Juan Guaidó se autodeclarou presidente da República interino, numa praça durante um comício, a via eleitoral e a luta democrática contra o regime de Maduro passaram a ser considerados colaboracionismo. Em fevereiro de 2019, as sondagens diziam que Guaidó tinha cerca de 80% de aceitação popular. Os governos aliados dos Estados Unidos e vários outros europeus aplaudiram-no. A 23 de fevereiro, uma insurreição sui generis foi provocada por um cavalo de Tróia atípico: a ajuda humanitária internacional. Esta entraria "sim ou sim" pela fronteira colombiana. O plano era que o povo atacasse os camiões e o Exército se juntasse ao levantamento popular. Este plano foi um fracasso rotundo: não se pôde fazer entrar uma caixa numa fronteira porosa onde o contrabando de gasolina e alimentos é imenso diariamente.
Quando se acreditou que a frustrada tentativa de assassinato de Maduro com um drone carregado de explosivos, em 4 de agosto de 2018 na Avenida Bolívar, era a mais ousada tentativa subversiva, acordamos em 30 de abril de 2019 com uma tentativa de golpe de Estado cívico-militar liderado por Guaidó. O jovem "presidente" assegurava ter tomado, ou estar dentro, da base aérea de La Carlota, localizada no coração de Caracas. Poucas horas depois, e sem um único tiro, a sedição foi esmagada. Vários militares renderam-se, alegando que haviam sido enganados e outros fugiram para embaixadas estrangeiras naquela mesma tarde. Ninguém se responsabilizou pelo embaraçoso golpe de Estado, que acabou por ser amplamente ridicularizado nas redes sociais. Em 2018 já tínhamos assistido ao massacre do grupo armado chefiado por Óscar Pérez, ex-comando policial famoso por disparar contra o Supremo Tribunal de Justiça e roubar armas de alto calibre no forte de Paramacay. A subestimação do poder militar e policial do governo bolivariano é realmente assombrosa. Em 2019, aconteceu mais uma nova aventura insurrecional de índole militar. Na tarde de 26 de junho, o governo declarou sarcasticamente que havia frustrado outra tentativa de levantamento militar. Nesse dia, foram presos mais de 30 militares, acusados de "traição à pátria", acusação generosamente proferida por juízes chavistas.
No meio da pandemia de 2020, entre 3 e 4 de maio, optou-se por uma tentativa foquista com tonalidades de farsa no coração da baía de Macuto e Chuao: um par de barcos de pesca com cerca de 22 pessoas pobremente armadas irromperam com apetrechos militares e sólidas convicções para libertar os 30 milhões de venezuelanos vítimas do atual regime. Ali estavam ex-militares armados, havia uniformes, equipamentos e todos tinham os seus documentos de identidade verdadeiros. Entraram no litoral central em plena luz do dia, a poucos quilómetros do maior porto do país e de uma base naval, numa área densamente povoada. A incursão resultou num combate sangrento onde morreram vários jovens rebeldes. O governo capturou mesmo ex-militares norte-americanos numa operação que foi vista como uma paródia da Baía dos Porcos, em pequena escala.
O abandono da luta eleitoral parece empurrar a oposição para as formas mais inverosímeis de aventureirismo político. Entre farsas e tragédias, o mar de fracassos insurrecionais justapõe-se. As sedições parecem cair no terreno preferido de um governo de índole militar e policial que, com o apoio de outros regimes (Cuba, Rússia, China, Irão), especialistas em controle social e luta anti-subversiva, contorna essas iniciativas com extrema facilidade. Os fracassos são tão estrepitosos que, por serem embrionários, as pessoas consideram-nos irreais ou mesmo inventados pelo próprio governo.
As piadas sobre a esterilidade deste tipo de iniciativas enchem as redes sociais e a frustração apodera-se de milhares de venezuelanos que acabam simplesmente por votarem com os pés e deixarem o país. Cada motim leva a um profundo sentimento de derrota e tristeza; numa sensação de derrota imanente e uma vocação para o descalabro que abate a moral das bases da oposição e as coloca no campo da espera por um falso milagre: uma invasão de tropas norte-americanas que libertem a população do comunismo. Uma possibilidade mil vezes negada por todos os porta-vozes oficiais dos Estados Unidos, que repetidamente negaram tal possibilidade sangrenta. Eles até zombaram de ativistas propensos a "exigir" uma invasão libertadora que os coloque no poder, chamando às suas propostas de "realismo mágico".
Trata-se de um caminho de derrotas contínuas que, por um lado, justificam a insistência na via insurrecional, abandonando a luta democrática eleitoral (devido, segundo eles, a todas as injustiças, vantagens e artimanhas que o governo comete neste terreno); e que, por outro lado, explicita por que a oposição decidiu abster-se e continuar numa rota de confronto que claramente parece condenada à derrota. A consulta de 12 de dezembro, promovida por Guaidó, aparece como a mais grave manifestação de impotência que protagonizaram em anos.
2021: entre a apatia e o descontentamento?
Parecia expectável que uma grande parte da oposição continuaria no caminho da abstenção a 6 de dezembro. Quase sem iniciativa, o "presidente interino" Guaidó prometeu, para contrabalançar as eleições "fraudulentas", uma consulta popular online a 12 de dezembro. Com um conselho nacional eleitoral nacional paralelo composto apenas pelos seus aliados mais íntimos, apresentaram-se à população através de Telegram e outra app, com perguntas(link is external) como(link is external): “Exigem a cessação da usurpação da Presidência por Nicolás Maduro (…)? Rejeita o evento de 6 de dezembro (…) e ordena que sejam dados os passos necessários perante a comunidade internacional para resgatar a democracia (…)?”. Estas perguntas são tão grosseiramente óbvias que fazem rir até os oponentes mais radicais. Perguntar o que é axiomaticamente aceite pelas suas bases parece um ato que apenas põe em evidência a própria falta de tática e estratégia.
A oposição argumenta que não valia a pena participar e ganhar as eleições, já que o governo tinha anulado o anterior Parlamento por meio de uma argúcia jurídica do Supremo Tribunal de Justiça que o declarou em desacato. No entanto, a própria evolução da oposição de Guaidó e a sua presidência "interina", incluindo os seus abraços a Donald Trump, o seu discurso no G-20, a gestão proveitosa de lucrativas empresas do país no estrangeiro (Citgo, Monómeros) e os milhares de milhões de dólares recolhidos como "ajuda para a luta democrática", foi possível porque a oposição participou nas eleições parlamentares de 2015 e Guaidó conseguiu obter 90.000 votos. Essa vitória da oposição permitiu-lhe presidir ao Parlamento e levar a cabo todas as suas campanhas internacionais de motins e revoltas. Se ele se tivesse abstido em 2015, Guaidó não existiria no imaginário político e o governo teria transitado com total tranquilidade no período 2015-2020. Com uma oposição abstencionista, o governo nem sequer precisa de cometer fraudes e pode mostrar-se muito mais aberto e "democrático" do que na verdade é.
No final do próximo ano, haverá eleições para alcaides e governadores. O governo conta com um novo auge na campanha abstencionista que lhe permita ganhar outras eleições sem concorrência. Talvez seja por isso que, sendo tão abertamente repressivo, deixa Guaidó empreender as suas campanhas políticas sem lhe tocar num fio de cabelo. É de esperar que o próprio Maduro incentive a abstenção do voto na oposição e promova o seu imobilismo. Mas o que a própria oposição faz nada mais é do que vestir um colete de cimento antes de se atirar ao rio. Nem é preciso dizer que o governo bolivariano jamais oferecerá condições eleitorais ótimas. Se a oposição quer realmente assumir o seu papel, terá de lutar de mãos dadas no único terreno em que tem vantagem: o campo eleitoral, enquanto estiver aberto de uma forma ou de outra. No final de contas, a única grande vitória da oposição contra o governo foi nas urnas.
Artigo de Manuel Sutherland, publicado em Nueva Sociedad, a 9 de dezembro de 2020. Tradução para português de Carlos Santos para esquerda.net
PSUV tem mais de 90% dos lugares da Assembleia Nacional
Segundo comunicado do Conselho Nacional Eleitoral da Venezuela (CNE) divulgado a 8 de dezembro (www.cne.gob.ve/web/sala_prensa/noticia_detallada.php?id=3895), com 98,68% dos votos contados, registaram-se 6.251.080 votos válidos, representando, 30,5% dos eleitores inscritos.
Os votos nos partidos e coligações foram:
- Gran Polo Patriótico, coligação liderada pelo PSUV; 4.276.926 votos; 69,43%
- Alianza Democrática, coligação composta por Acción Democrática, Copei, Cambiemos, El Cambio e Avanzada Progresista; 1.095.170 votos; 17,72%
- Alianza Venezuela Unida; coligação composta por Venezuela Unida, Primero Venezuela e Voluntad Popular Activistas; 259.450 votos; 4,15%
- Alianza Popular Revolucionária, coligação composta por Partido Comunista de Venezuela (PCV) e outras organizações de esquerda; 168.743 votos; 2,7 por ciento;
- Outras organizações 405.017 votos.
Composição da Assembleia Nacional, com 274 dos 277 mandatos
De momento, em 11 de dezembro de 2020, está divulgada a distribuição de 274 mandatos dos 277 lugares que terá a Assembleia Nacional. A distribuição desses lugares é a seguinte:
PSUV – 253 mandatos – 91,34%
Acción Democrática – 11 mandatos – 3,97%
Avanzada Progresista – 3 mandatos – 1,08%
El Cambio – 3 mandatos – 1,08%
Primero Venezuela – 2 mandatos – 0,72%
Copei – 1 mandato – 0,36%
Partido Comunista de Venezuela (PCV) – 1 mandato – 0,36%