Os feminismos que surgem cheios de força no Sul do planeta desempenham um papel fundamental tanto em tornar realista uma experiência revolucionária quanto em questionar as imagens e noções que temos da "revolução".
Veronica Gago, Esquerda.net, 18 de março de 2021
As revoltas dos últimos anos no Chile, e na América Latina em geral, voltaram a colocar em marcha a palavra “revolução” no continente. Com isto em mente, proponho neste texto caracterizar alguns pontos que permitem afirmar que o relançamento do confronto político que se vive na América Latina tem origem na revolução feminista.
Vou abordar seis pontos pelos quais penso que os feminismos que emergem cheios de força no Sul do mundo - e no Sul das grandes metrópoles - estão a desempenhar um papel fundamental. Desde logo devido à sua capacidade de tornar uma experiência revolucionária realista, enunciável, palpável, mas também devido à sua própria dinâmica, que nos obriga a questionar as representações e noções que temos da "revolução", seja para reavaliar coletivamente aquilo que evocamos e desejamos com esse termo, seja também para mostrar as dificuldades que ele coloca.
Dimensão de massas
Em primeiro lugar, a existência de um feminismo de massas parece-me uma característica do movimento que, pelo menos nos últimos cinco anos, deu ao feminismo um impulso novo. Essa dimensão tem a ver com a capacidade de produzir mobilizações com uma força inédita, capaz de ocupar ruas, praças, cidades simultaneamente em diferentes lugares do mundo. De as fazer durar, não como acontecimentos isolados mas como um processo político que procura as suas formas de crescimento, as suas zonas de repouso e mudança de ritmo, as suas datas de realização.
Essas mobilizações massivas são o resultado de um enorme trabalho político, de uma raiva que encontra força expressiva, de uma vivência quotidiana que se vê permanentemente problematizada (a massificação tem repercussões nas casas e nas camas, também aí ela acontece). E são também o resultado de uma inteligência política que se ocupa de alimentá-la (estou a pensar, por exemplo, no que alimentou a ação de Las Tesis, durante a revolta no Chile).
A dimensão de massas, de multidões, de maiorias, afirma uma dimensão revolucionária porque efetivamente confirma uma capacidade de “envolvimento” que não se reduz a pequenos grupos, porque não se deixa confinar como um setor e porque faz da sua expansividade uma política concreta. Especialmente quando sabemos que as condições das maiorias são as mais impiedosas. Assim, o facto de as imagens políticas da massificação terem no feminismo um papel decisivo revela uma componente revolucionária devido ao seu poder de interpelação, devido à sua capacidade de produzir uma experiência de subjetivação nas novas gerações, devido à sua fórmula organizacional que permite uma coordenação em grande escala.
Mas também porque essa massificação é uma filigrana de ações, convocatórias, debates, assembleias, reuniões, coordenações. Neste vai e vem, a relação entre a massificação e as lutas minoritárias é conjugada de modo novo. O minoritário - entendido como uma composição política que escarnece dos sujeitos historicamente legítimos da revolução - assume uma escala de massas como transmissor de radicalização dentro dessa maré transfeminista. Desse modo, desafia-se a maquinaria neoliberal de reconhecimento das minorias e pacificação da diferença. Mas a massificação também é trabalhada a partir de questões que costumam ficar desprezadas ou desconhecidas quando apenas se concebe a massificação em termos numéricos, quantitativos ou pela sua força homogénea e niveladora.
Violência neoliberal
O que é que se massifica nessa experiência coletiva de colocar o corpo na rua? Eu diria que um dos elementos é a caracterização concreta da violência neoliberal; o que, por sua vez, pode ser entendido como um elemento-chave do internacionalismo do movimento feminista (voltarei a este assunto mais adiante).
Trata-se de uma caracterização da violência neoliberal que ocorre de forma concreta, a partir da vivência quotidiana da desapropriação, precariedade e exploração, que permite compreender como esses tipos de violência funcionam como engrenagens imbrincadas com a violência machista. Trata-se, na minha opinião, de uma leitura da totalidade dessas violências, uma leitura sistémica e ao mesmo tempo apreensível no quotidiano.
Essa compreensão é corpórea, é situada e é simultaneamente coletiva sem ser abstrata. O que permite também dar força a uma maneira de rejeitar, de dizer basta aos modos filantrópicos e paternalistas com os quais se quer corrigir a precariedade, impondo formas conservadoras e reacionárias de subjetivação oleadas pelo medo.
Isto faz com que as iniciativas feministas sejam definidas como anti-neoliberais não apenas como afirmação ideológica, mas também a partir da prática concreta de sinalizar as fronteiras em que se combate o avanço do capital. Ou seja, conjugar a luta contra a privatização das pensões de reforma, contra o endividamento doméstico, contra os cortes nos serviços públicos, contra a redução de salários, etc. com a forma como esses elementos co-produzem a violência contra corpos marcados pelo seu género e raça não só dá um conteúdo concreto ao anti-neoliberalismo nas dinâmicas feministas, mas também questiona a própria narrativa neoliberal de que a concorrência se tornou uma mutação antropológica e, portanto, nada existe fora do seu comando omnipresente.
É precisamente a intersecção e o encadeamento desses conflitos que vão tecendo essa perspetiva sistémica, a ponto de (como vemos atualmente no Chile) questionar a constitucionalização do neoliberalismo, a normatividade que lhe é própria e que no nosso continente tem como origem as ditaduras militares.
É por isso que são - estão a ser - os feminismos do Sul do planeta que permitem também questionar as narrativas euro-atlânticas a partir das quais se costuma conceptualizar o neoliberalismo. Temos na nossa região mais de quatro décadas de transformações neoliberais que nos permitem ler várias coisas. Por um lado, afirmar a própria origem do neoliberalismo em termos de violência, associado às ditaduras e às formas de constitucionalização neoliberal que referi. Por outro, compreender as suas transformações posteriores à luz das lutas que o desafiaram e que permitem uma leitura heterodoxa das suas estratégias; ou seja, postular o que as lutas subvertem como aquilo que determina a orientação da sua transformação.
Falar do caráter polimórfico, da versatilidade e da capacidade combinatória do neoliberalismo leva a mostrar que a governação neoliberal se refere a uma racionalidade política que não se reduz ao aparelho de governo e que disputa as subjetividades como espaço estratégico de produção de governo.
Se o neoliberalismo precisa atualmente de aliar-se a forças conservadoras retrógradas – desde a supremacia branca até aos fundamentalismos religiosos, ou do inconsciente colonial até à mais desenfreada expropriação financeira - é porque a desestabilização das autoridades patriarcais e racistas põe em risco a própria acumulação de capital nos dias de hoje. Também aqui os feminismos mostram a sua capacidade de reavivar o antagonismo e a conflitualidade, pois atacam a estrutura de subordinação e exploração numa área sensível e estratégica: precisamente onde o neoliberalismo se articula com forças reacionárias no âmbito da família, sexualidade, acesso a subsídios sociais, trabalhos não remunerados, legislação anti-imigrantes, etc.
Transversalização
A caracterização acima descrita do neoliberalismo não é abstrata ou meramente analítica, mas permite uma enorme capacidade de alianças políticas e de contaminação e expansão das dinâmicas próprias das lutas feministas no interior de outras lutas. Não apenas como setor ou conjunto de reivindicações, mas na própria formulação das reivindicações, nas formas de organização do protesto e na ampliação dxs sujeitxs envolvidxs.
Estou a pensar tanto no modo como, nos protestos do Chile, a linha da frente tomou a seu cargo o cuidado e uma verdadeira infraestrutura de reprodução da revolta, como na experiência das jovens que desativam as granadas de gás lacrimogéneo no Peru ou na forma como, na Argentina, o diagnóstico feminista da crise pandémica apoiou a reivindicação do direito ao aborto como uma urgência.
Discutir a violência neoliberal como questão política que permite conectar, mapear e, portanto, identificar em que sentido a violência é - segundo Silvia Federici - uma força produtiva importante nos momentos de reedição da acumulação primitiva tem efeitos concretos. Luci Cavallero e eu temos falado, nestes meses de crise acelerada pela pandemia, de uma “violência proprietária”, precisamente porque, mais no que noutros momentos, na pandemia a propriedade se torna mais visível como a fronteira que atravessa todos os conflitos. Dissemos que essa batalha aparece concentrada nos territórios da reprodução social (que vão da habitação aos serviços de saúde, dos monopólios alimentares ao acesso a pensões de reformas) e no comando sobre o trabalho futuro que o endividamento doméstico procura controlar.
Ao mesmo tempo, vemos também como, na crise, a divisão entre proprietárixs e não proprietárixs se aprofunda através de lógicas familiaristas, as quais vinham sendo fortemente questionadas em favor da construção de espacialidades feministas. Discutir a propriedade é um tema que esta revolução feminista fez avançar, colocando a questão do significado do dispositivo da propriedade para os corpos das mulheres e os corpos com capacidade de gerar. Parece-me, uma vez mais, que este debate não fica confinado, mas que, pelo contrário, se relaciona com um debate sobre a propriedade que é mais amplo e que efetivamente nos põe a pensar e ensaiar outras formas não extrativistas de relacionamento com os corpos e territórios.
A batalha pela propriedade de que estamos a falar joga-se na reivindicação específica de usos coletivos e públicos de bens e serviços que tornam possível (ou não) a reprodução da vida pessoal e coletiva. Com a reprodução vista como uma esfera estratégica sobre a qual se constrói a espoliação neoliberal e o endividamento doméstico, a socialização dos seus meios e recursos surgiu como um dos elementos comuns ao nível global. Na maioria dos países, a financiarização dos direitos sociais (que significa o acesso a eles através de dívidas e em benefício de bancos e empresas) foi a segunda fase após a privatização das infraestruturas públicas e a asfixia das economias auto-geridas.
Assim, os domínios de luta podem ser compreendidos, em grande medida, à luz da dinâmica feminista de politização da esfera da reprodução, identificada como despojos de guerra da violência neoliberal: de quem são os serviços públicos, a quem pertence a produção de alimentos e remédios, de quem são as habitações, que ameaças estão em curso contra o acesso à educação, de quem são as fortunas, que dívidas estão a ser criadas e que reformas fiscais a crise exige? E, para além disso, não temos dito que a ordem sexual está associada à propriedade privada sobre corpos e territórios? Assim, a grande questão sobre quem vai pagar pela crise envolve atualmente a discussão da propriedade.
Atualizar a noção de classe
Contra a oposição "identidade versus classe" ou "temática do poder versus temática da exploração" com a qual muitas vezes se tentam encurralar as lutas atuais, as revoltas feministas expressam, mobilizam e propagam uma mudança na composição das classes trabalhadoras e no que se entende como trabalho, ultrapassando os limites atuais das suas classificações e hierarquias.
A dimensão de classe dos feminismos entra em jogo quando se fala em trabalho reprodutivo, desde a violência que sustenta a apropriação extrativista contra determinados corpos e territórios até à prática da greve, que põe em evidência não uma substituição e dissolução da questão da exploração, mas sim uma reformulação do modo como essa exploração se organiza quando os papéis de género e os privilégios racistas são postos em causa como parte do triângulo indissolúvel entre capital, patriarcado e colonialismo (para citar a imagem de Raquel Gutiérrez Aguilar).
Diversas análises salientam uma nova articulação entre patriarcado e capitalismo, expressa como uma nova articulação entre produção e reprodução e que estaria a definir o sentido da transformação do capitalismo neoliberal. Assim, é fundamental agregar a dimensão financeira à análise da reprodução social com a qual o feminismo insiste há décadas. Não apenas por ser um lugar concreto onde a moralidade e a exploração se entrelaçam, mas também porque é nesse plano que se acelera a forma de mercado mundial.
Na América Latina, o endividamento das economias domésticas, das economias não assalariadas, das economias historicamente consideradas não produtivas, entendido a partir de uma leitura feminista da dívida, permite compreender os dispositivos financeiros como verdadeiros mecanismos de extração de valor, de confinamento das vidas e de atribuição de tarefas de acordo com os papéis de género, segundo a lógica do relançamento de um processo de colonização.
Esta perspetiva é útil para compreender a forma que assume a recomposição da clássica luta operária fora das suas coordenadas habituais (um enquadramento assalariado, sindical, masculino), para pensar como a expansão do sistema financeiro é, por um lado, uma resposta a uma sequência específica de lutas e, por outro, uma dinâmica de contenção que organiza uma vivência específica da crise atual (sob propostas de inclusão financeira).
Por fim, esta perspetiva permite ainda compreender como o endividamento maciço das populações - na sua maioria não assalariadas, migrantes, femininas - exige um tipo específico de disciplina e, eventualmente, de criminalização. É toda uma outra forma de caracterizar atualmente a questão do trabalho a partir de uma perspetiva feminista e de compreender as formas de exploração do momento neoliberal. Também aqui considero existir um sentido preciso de como a subjetivação de massas que as revoltas feministas estão a desencadear é uma componente chave desta batalha contra o neoliberalismo para transformar o infinito, para neutralizar todos os limites, no sentido do utópico infinito financeiro.
Internacionalismo
A dimensão transnacional da revolução feminista, a sua capacidade de combinar movimento, tendências e intensidades diversas numa escala mundial, está a ser a possibilidade de um novo internacionalismo. Sabemos que a coordenação é difícil, mas também fecunda. Sabemos que as sínteses que vão sendo alcançadas (de ações, conceitos, reivindicações) têm conteúdos programáticos que surgem da revolta e do seu imaginário político.
É igualmente a colocação de uma pergunta política que talvez possa ser formulada do seguinte modo: como continuar a manter na primeira linha que a violência sexista é impensável sem violência económica? Como acabar com a extração de rendas (financeiras, imobiliárias, agrárias das transnacionais do agronegócio e responsáveis pelo colapso ecológico)? Que capacidades de reapropriação da riqueza coletiva estão a ser desenvolvidas? Como podemos manter uma espacialidade das lutas que seja simultaneamente local e nacional com impacto transnacional? Ao longo da sequência das greves feministas estas questões foram ganhando densidade e hoje, face à crise, tornam-se urgentes.
Reformular a relação entre lutas e instituições
Por último, este importante ponto daria só por si todo um artigo, mas considero útil o conceito de realpolitik revolucionária que podemos pedir emprestado a Rosa Luxemburgo (e, em particular, a recuperação feita por Friga Haugg). É uma forma de interligar as transformações quotidianas com o horizonte da mudança radical, num movimento aqui e agora, de entrelaçamento mútuo, numa política de baixo para cima. É necessário continuarmos a acompanhar o desenvolvimento desta relação em processos concretos, ir fazendo balanços coletivos, avaliarmos por onde avança a disputa em cada lugar.
Assim, a teleologia do “objetivo final” altera-se, não porque deixe de existir ou fique enfraquecida, mas porque entra noutra relação temporal com a política quotidiana, impregnando de dinâmica revolucionária cada ação concreta e pontual. A oposição torna-se complementaridade em termos de radicalização de uma política concreta que os feminismos estão a fazer nas ruas, nas camas e nas casas.
Mas também cria uma temporalidade estratégica, que é o atual desdobramento do movimento. Consegue trabalhar sobre as contradições atualmente existentes sem esperar pela emergência de sujeitxs completamente libertados, ou sem esperar pelas condições ideais das lutas, ou sem depender de um espaço único que totalize a transformação social. Apela ao poder de rutura de cada ação e não limita a rutura a um momento final espetacular de uma acumulação estritamente evolutiva. Isto implica uma outra espessura para a noção do feminismo como revolução quotidiana, porque questiona como a orientação de cada crise é determinada por práticas concretas e isso dá-nos uma pista preciosa para a política feminista: uma política que não pode estar abaixo de uma pragmática vitalista, desejosa por tudo revolucionar e por isso mesmo capaz de reinventar o realismo. Uma realpolitik revolucionária.
Uma versão deste texto foi apresentada na Conferência Internacional sobre Materialismo Histórico.
Verónica Gago é Professora na Universidade de Buenos Aires (UBA) e na Universidade Nacional de San Martín (UNSAM) e Investigadora do Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas (CONICET), da Argentina. Faz parte do Conselho Consultivo da Jacobin América Latina. Artigo publicado em Jacobin America Latina. Traduzido por Paulo Antunes Ferreira para o esquerda.net.