Em fins de 2021, vários meios de comunicação espanhóis publicaram a mesma notícia. O Cercle d’Economia da Catalunha – uma organização empresarial que funciona como grupo de pressão na região – manifestava sua profunda preocupação com as políticas econômicas da Generalitat. O comunicado, divulgado pouco depois da paralisação da ampliação do Aeroporto Josep Tarradellas Barcelona-El Prat, em Barcelona, alertava sobre a perigosa “apologia ao decrescimento”, que levaria o conjunto da sociedade à ruína.
Rotulado como irresponsável e incompatível com uma sociedade próspera, no entanto, o texto não esclarecia em que consistia esse pensamento decrescentista. E isto é justamente o objeto de estudo de pesquisadores como Giorgos Kallis (Atenas, 1972).
Kallis é um economista, ambientalista político, pesquisador e ativista. Doutor em política ambiental pela Universidade do Egeu, reside desde 2010 em Barcelona, onde trabalha no Instituto Catalão de Pesquisa e Estudos Avançados.
Nas ruas de seu bairro, Gràcia, encontra não apenas ecos de uma cidade insular de sua Grécia natal, mas também o espaço necessário para seguir pensando. Publicou, entre outros títulos, Límites: Ecología y libertad (Arcadia, 2021), Decrescimento. Vocabulário para um novo mundo (Tomo Editorial, 2016) e The Case for Degrowth (Polity Press, 2020), que em breve terá sua edição em espanhol pela editora Icaria.
Cella Márquez Coello entrevista Giorgos Kallis, El Salto, 17 de fevereiro de 2022. A tradução é do Cepat.
Para alguns, o decrescimento é apenas “uma corrente de pensamento irresponsável”, para outros, uma realidade que já está aqui e a qual teremos que nos adaptar. Gostaria de começar perguntando sobre como devemos entender o termo. É uma teoria política? Uma forma de viver? Algo que está acontecendo?
São todas as opções. Mas “todas as opções” não é uma resposta satisfatória, e menos ainda vindo de um cientista. A melhor forma de entender o decrescimento é no sentido de um marco que nós, da comunidade de cientistas e ativistas, utilizamos para explicar as crises e propor soluções.
Tal marco sugere que o que conecta as diferentes facetas da atual crise ecológica, econômica e social é o propósito cego de mais e mais crescimento econômico, algo que está enraizado nas sociedades capitalistas.
Essa busca do crescimento é a causa das mudanças climáticas, a razão dos cortes de austeridade e o motivo do crescimento das desigualdades. A alternativa é planejar uma sociedade que faça mais com menos, uma sociedade que saiba como prosperar sem crescimento.
Nesse ano, a publicação do relatório ‘Os limites do crescimento’ completa cinco décadas. Elaborado pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts, em 1972, o documento alertava sobre a existência de um limite de carga para o planeta. Suas previsões se tornaram realidade? Em que ponto estamos agora?
É difícil dizer se as previsões se tornaram verdadeiras. Estamos entrando no cenário business as usual do relatório, que previa que o colapso começaria justamente agora [1]. Mas não sou um profeta e não posso dizer se viveremos um colapso no próximo ano ou dentro de vários anos.
Sou um cientista e o que sei é que estamos destruindo o clima, algo que na época do relatório não se sabia. E que, a não ser que limitemos o crescimento desde já, a vida no planeta se tornará inviável, mais cedo ou mais tarde.
Em um de seus livros mais informativos, ‘The case for degrowth’, busca desfazer o mito do crescimento perpétuo como algo inerente à condição humana. Em seu lugar, valoriza o trabalho de manutenção, tradicionalmente associado às mulheres e aos cuidados. Esquecemos desse papel?
É impossível que nos esqueçamos de manter, porque se fizéssemos isso não estaríamos aqui. Mas desacreditamos o valor desse trabalho, sem o qual nem nós, nem qualquer ser humano existiria. O capitalismo desvaloriza esse trabalho porque é crucial para o crescimento que o trabalho de cuidados se mantenha barato, como um suposto presente da natureza.
Também sugere que a pandemia pode ser uma oportunidade para desfazer esse mito do crescimento como qualidade humana, dada a capacidade da crise em modificar verdades estabelecidas. Hoje em dia, continua pensando o mesmo?
É difícil dar sentido a tudo o que aconteceu nesses dois últimos anos, ao menos enquanto ainda estivermos imersos nisso. Li vários filósofos pontificando esta ou aquela conclusão sobre a pandemia e considero bastante superficial. O que sei é que a era que está começando com essa pandemia não será a mesma que existia antes.
Vivemos em uma era de limites, mas não sabemos como nos limitar. Compreendemos esses limites como um obstáculo para a nossa liberdade, quando na verdade a liberdade requer limites. Talvez a pandemia possa catalisar uma mudança de pensamento, mas dado o caos de opiniões e comportamentos a nosso redor, também não tenho muitas ilusões.
É dito que é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo. É possível imaginar o fim do crescimento?
Sim, aparentemente é inclusive mais difícil imaginar o fim do crescimento, quando até mesmo os socialistas que imaginam o fim do capitalismo estão ansiosos em defender que o crescimento será inclusive mais rápido com o socialismo.
Eu posso imaginar o fim do crescimento, mas o assunto não é conseguir imaginar ou não, mas começar a colocar em prática alternativas que possam nos ajudar a imaginar. Não podemos imaginar o que não existe.
Uma crença popular em relação ao decrescimento é a de que é uma posição antitecnológica. De fato, é assim? Qual seria o seu posicionamento em relação ao potencial da tecnologia para mitigar os efeitos da crise climática e de recursos?
O que é a tecnologia? Se por tecnologia entendemos as ferramentas que utilizamos para fabricar coisas, nada pode se antitecnológico. O decrescimento constitui uma crítica a tecnologias específicas e, sobretudo, à crença de que todos os problemas têm uma solução tecnológica.
Isso não significa ser contra as tecnologias em geral. As tecnologias de energias renováveis, por exemplo, são vitais. Os trens e as bicicletas, também. A questão é quais tecnologias, para quem e como.
Em 2015, a primeira grande encíclica do Papa Francisco afirmou que as mudanças climáticas são um “assunto moral” para a Igreja Católica. As posições decrescentistas encontram apoio em setores religiosos?
A encíclica Laudato Si’ foi um texto brilhante. Recordou nossos limites como humanos. Esta não é só uma ideia ecológica, é uma sabedoria que vários movimentos espirituais e religiosos mantêm há séculos. A melhor coisa da religião é justamente isso: o lembrete de nossa fragilidade e nossa interconectividade como humanos.
Ultimamente, vemos muitas notícias que podem ser relacionadas ao alcance dos limites de extração do planeta: aumento do preço dos combustíveis, falta de chips e de componentes tecnológicos... No entanto, na maioria dos casos, aparecem ligadas a crises conjunturais. Considera que os meios de comunicação informam corretamente a respeito da situação global em que vivemos?
Não é fácil entender as causas por trás do aumento dos preços da energia atualmente. Eu sou cético em relação às afirmações que culpam a transição para as energias renováveis, primeiro porque não vejo que tal transição esteja em andamento. Segundo, porque por trás dos combustíveis fósseis existe grande interesse em divulgar essa mensagem.
Eu desejaria ver histórias nos meios de comunicação que nos alertassem acerca da complexidade do momento em que vivemos e da tragédia de nossas decisões, em vez de contos simplificados onde tudo é preto ou branco.
Você também falou sobre alguns problemas que o uso do termo decrescimento pode acarretar, especialmente em contextos não ocidentais. Falar em reverter o crescimento pode fazer pensar automaticamente em pobreza. É possível utilizar outro termo que não tenha essa conotação?
“Bens comuns” é um bom termo. Fala de nossa interdependência e de nossa habilidade humana em cooperar. A cooperação é um atributo indispensável para a nossa sobrevivência como seres humanos.
Dito isso, penso que vale a pena manter a palavra “decrescimento” na medida em que nos lembra que não podemos querer nosso bolo inteiro e, ao mesmo tempo, comê-lo. E que nós no Norte Global, começando com nossos cavalheiros do 1% e 0,1%, temos que diminuir dramaticamente nossa produção e nosso consumo, bem como nosso uso de energia e recursos.
Até agora, não encontrei uma palavra melhor para manter esse lembrete sobre a mesa e evitar sugerir que existam saídas cômodas diante de uma situação que é realmente terrível.
Quando falamos sobre a crise climática e de recursos, parece reinar o negacionismo cotidiano, inclusive entre a população informada. É uma questão de escala porque o problema é muito complexo para ser assimilado? Ou simplesmente há uma categórica recusa em mudar nosso modo de vida?
Talvez o último. Talvez, inclusive, a suspeita de que essa crise, como qualquer outra, será utilizada por aqueles que estão no topo para gerar lucro e controlar as pessoas que estão na base. Mas não entendo muito bem porque diz que o negacionismo prevalece.
A maior parte das pesquisas mostra que a imensa maioria das pessoas aceita que há uma mudança climática e que algo precisa ser feito com urgência a esse respeito. A população simplesmente não vê nada sendo feito e desconfia quando os governos dizem que ela precisa pagar pela transição, enquanto o 1% faz viagens à lua. Eu não culpo as pessoas por isso.
O que diria a uma pessoa que é abertamente contra o decrescimento como projeto, como análise e como modificação dos ritmos vitais? É possível um decrescimento global que não conte com o seu apoio?
Não espero que todos concordem em tudo, e isso é saudável, faz parte da essência da democracia. Eu simplesmente pediria a essa pessoa que ouvisse o que temos a dizer sem preconceitos, estando aberta a mudar sua mentalidade, se o que dizemos vai ganhando sentido na medida em que nosso mundo muda.
Jamais uma mudança social contou com 100% de apoio. Mas gostaria de convencer essa pessoa para que apoiasse uma mudança que é necessária. É claro, eu também estaria aberto a ouvir o que ele ou ela tem a dizer. Sempre estou aberto a mudar minhas ideias.
Nota
[1] O relatório, encomendado pelo Clube de Roma ao MIT, em 1972, apresentava vários cenários possíveis para a humanidade. Entre eles, o chamado “business-as-usual” (em que nenhuma medida é tomada e tudo permanece “como até agora”) previa um colapso econômico, ambiental e demográfico antes de 2070.