A interseccionalidade das lutas, no Chile, é um desafio para a constituição da unidade de um processo com uma multiplicidade de atores
Vladimir Safatle, A terra é redonda, 5 de abril de 2022
Quando estava prestes a suicidar-se em meio à resistência contra uma tentativa de golpe de Estado, Salvador Allende fez um conhecido discurso à Radio Magallanes. Ele terminava com as seguintes palavras: “Sigam vocês sabendo que muito mais cedo que tarde se abrirão as grandes alamedas por onde passará o homem livre para construir uma sociedade melhor”.
As gravações desse discurso chegaram até nós. Em meio ao tom metálico das transmissões de outrora, ouve-se também o ruído branco das antigas emissões em mono, o que aumenta involuntariamente o caráter solitário da voz. Emitida diretamente do Palácio La Moneda sob bombardeio, essa poderia bem ser a voz de um trauma histórico, com sua força própria de produção de melancolia capaz de atravessar décadas. A via chilena para o socialismo terminara com bombas, suicídio e vozes solitárias.
Quando tomava posse como presidente do Chile, Gabriel Boric terminou seu discurso na sacada do mesmo Palácio La Moneda com a frase: “Estamos novamente abrindo as grandes alamedas por onde passará o homem e a mulher livre para construir uma sociedade melhor”. A repetição levou a multidão diante do Palácio às lágrimas. O gesto expressava uma aposta alta, que nenhum governo até então, desde o fim da ditadura de Pinochet, tivera a coragem de fazer. Tratava-se da aposta em uma suspensão do trauma e de uma retomada da história interrompida. Aposta ainda mais alta porque consistia também em dizer que os 48 anos que ligam as duas frases pronunciadas no mesmo lugar, pela mesma pessoa simbólica (o presidente do Chile), foram apenas a tentativa em apagar um processo histórico que agora retornava.
Que a primeira enunciação tenha sido como tragédia, isso é seguro. Mas a segunda seria como farsa ou como redenção? Se o desejo por trás do gesto de repetição era claro, o mínimo que se pode dizer é que não está claro o que concretamente esperar a partir dele, não está claro sua força performativa. Não foram poucos os que, na série de entrevistas feitas nos dias anteriores à posse, insistiram na diferença profunda entre os dois momentos históricos e no que representam os dois governos: o de Allende e o de Boric. Mas há de se lembrar que a política é atravessada pela ressurreição de espectros, ou ainda, que ninguém faz apelo a espectros impunemente. O que nos coloca necessariamente diante de um processo aberto que, ainda por cima, lidará com a pressão das dinâmicas de repetição histórica.
De toda forma, as diferenças históricas também existem e elas já podem ser sentidas, por exemplo, no programa de governo. Allende acreditava em uma espécie de “transformação gradual” do Chile em direção ao socialismo. “Transformação gradual” não significa exatamente o que se convencionou chamar de “reformismo”. Em seu caso, a distinção reformismos e revolução perde muito de sua função de distinção analítica. Não há notícia de reformista que tenha estatizado o sistema bancário, só para ficar em um caso mais evidente e um dos mais estruturais, juntamente com a nacionalização da indústria do cobre, base de toda economia chilena.
Já o programa de Gabriel Boric sequer compromete-se claramente com a criação de um sistema educacional público totalmente gratuito em um país no qual famílias precisam muitas vezes escolher qual dos filhos ou filhas estudar, já que os custos e a dívidas resultantes dele são altos. Algo que, diga-se de passagem, coloca seu programa, ao menos nesse ponto, até mesmo aquém do reformismo.
Nesse contexto, é digno de nota como na maioria de nossas entrevistas apareceu uma dicotomia clara entre “governo” e “processo”: “Não confio no governo, mas confio no processo” foi uma frase constante. E por “processo” não se deve entender apenas o processo constituinte pelo qual o Chile está passando. “Processo” indica também o campo de lutas em ação que acreditam ganhar um campo ainda maior com os avanços esperados pela nova Constituição ou com a possibilidade de se discutir transformações sociais a partir de alternativas reais aos modelos políticos e econômicos vigentes.
É certo que mesmo o governo se compreende mais como um “guardião” dos processos de mudança do que seu ator fundamental. Gabriel Boric falou mais de uma vez que a função do governo é impedir que o processo de mudança seja bloqueado. Alejandra Bottinelli, professora e militante, expressou bem tal situação em uma de nossas entrevistas ao falar que via nesse governo a função de “resguardar” o movimento que lhe levou ao poder.
Isso produz questões em aberto a respeito do que pode e do que quer esse governo. Terá ele a função de paralisar o processo insurrecional pelo qual o Chile estava a passar, oferecendo uma governabilidade de ‘acordos’ necessários diante de um Congresso Nacional dividido ao meio e de um poder econômico enormemente concentrado? Não são poucos os que acreditam nisso. Ou seria o governo um compromisso necessário para que o processo de transformação não se perca devido ao conflito certo com um Congresso dividido ao meio e um setor empresarial acuado que não teve receio em apoiar um candidato protofascista (José Kast) para tentar vencer as eleições presidenciais? Nesse sentido, os compromissos seriam uma estratégia para fortalecer novas condições mais favoráveis para o aumento gradativo de pressão, como se esse fosse, na verdade, um governo de “transição”?
Em meio a tais questões, a opinião de Daniel Jadue tem um lugar de destaque. Jadue é prefeito de Recoleta, municipalidade pobre do conglomerado de Santiago. Ela era o candidato natural da frente da coligação Apruebo Dignidad à presidência do Chile. Sua derrota nas primárias frente a Gabriel Boric foi uma surpresa. Hoje, ele vocaliza uma posição de tensionamento no interior da coalização de governo. Diante da configuração atual, Daniel Jadue acredita que mesmo os pontos do programa de governo mais polêmicos devem passar por negociações e chegar ao Congresso bastante modificados.
O Partido Comunista Chileno conta atualmente com 12 deputados em um Congresso de 155, um número extremamente significativo. Daniel Jadue acredita que “há bastantes companheiros e companheiras, fundamentais para a vitória desse governo, que não estão dispostos a pagar o mesmo custo”. Por “mesmo custo” Jadue se refere à participação do Partido Comunista no segundo governo de Michele Bachelet, ocasião na qual, em nome da governabilidade, o partido se viu obrigado a muitas vezes aceitar e apoiar propostas que batiam frontalmente com seu próprio programa. O que justifica porque ele insiste que “os comunistas não estão dispostos a pagar sempre a fatura da unidade”.
Daniel Jadue reconhece que esse será um governo em disputa, como teria sido o segundo governo Bachelet: “mas há uma diferença importante. No governo Bachelet a hegemonia estava do lado das forças conservadoras, enquanto agora a hegemonia está do lado das forças transformadoras”. Essa nova hegemonia faz o Partido Comunista apostar principalmente em duas mudanças de alto impacto: a criação de um sistema de proteção social inexistente no Chile capaz de liberar o ser humano da “ditadura do salário” e o fim do sistema de previdência privada e de capitalização, base dos lucros bancários no país.
No entanto, por mais paradoxal que isso possa inicialmente parecer, Daniel Jadue não propõe para tanto uma maior capacidade de negociação da esquerda, mas sim aquilo que ele chama de “desinstitucionalização”: “Passamos de uma esquerda que estava sempre nas ruas e alijada das instituições de poder, para uma esquerda que está em todas as instituições de poder e não coloca mais o pé na rua”. No seu caso, colocar o pé na rua significa retomar o que se entende por “disputa das consciências”.
Para descrever esse processo de disputa e suas estratégias, Daniel Jadue explica como o Partido Comunista saiu, em 2000, de 2% dos votos em Recoleta para 65%, em 2020: “As pessoas tinham uma desconfiança inconsciente em relação à política e era necessário inicialmente deslocá-las para a posição de uma confiança consciente. Para tanto, precisávamos mudar algo na vida delas antes de falarmos de política”. A mudança nas condições de vida abriu espaço para a unidade de organização e luta por valores. Ou seja, a estratégia consistiu em retirar, por um momento, o que seria a consolidação ideológica para que ela viesse com força em um segundo momento. Pois o próximo passo era tornar a confiança consciente em consciência de vanguarda, em uma clara adaptação de um modelo leninista de estratégia. Isso foi feito levando a cidadania a ocupar todos os espaços políticos existentes: juntas de vizinhos, centros de estudantes, centro culturais, centros desportivos.
Isso pode explicar elementos importantes do processo de enraizamento local que a esquerda chilena foi capaz de desenvolver. Daí a insistência em compreender os poderes locais como base para as lutas que virão, principalmente no interior dos embates para a aprovação do texto constitucional em setembro de 2022.
Mas nesse ponto aparece novamente uma dicotomia que parece marcar também as estratégias da experiência chilena. Ao ser indagado sobre as diferenças entre os dois momentos da história chilena que iniciaram esse texto, momentos encarnados nos nomes de Allende e Boric, Daniel Jadue é taxativo: a distinção seria estrutural porque faltaria à esquerda atual uma noção de unidade como ferramenta fundamental de lutas: “esse é um problema sério que limita a capacidade transformadora dos processos políticos”.
Incomoda a Jadue uma certa transversalidade do que ele também chama de “políticas identitárias” que poderiam inclusive se acomodar a posições liberais. Por mais que possamos ler em livros universitários sobre a interseccionalidade das lutas, é certo que no Chile ela é vivenciada de forma dramática e vista como desafio para a constituição da unidade de um processo com uma multiplicidade de atores que vão desde comunistas históricos a mapuches, feministas, autonomistas, sindicalistas, entre tantos outros. Esse talvez seja o momento necessário de tensionamento para a construção do que o presente pode entender por “unidade popular”. Procurar formas de aggiornamento dessa tensão talvez será uma das maiores inovações da experiência chilena.
*Vladimir Safatle é professor titular de filosofia na USP. Autor, entre outros livros, de Maneiras de transformar mundos: Lacan, política e emancipação (Autêntica). Publicado originalmente na revistaCult.