Considerações sobre a gênese e os efeitos do Estado suicidário
Vladimir Safatle, A Terra é Redonda, 23 de outubro de 2020
“E o corpo fazia-se planta, / e pedra, / e lodo, e coisa nenhuma”
(Machado de Assis)
É possível que, através dos impactos globais da pandemia, estejam a ocorrer mudanças fundamentais na forma de gestão social à qual estamos submetidos. Uma delas diz respeito a transformações no exercício do poder soberano através dos modos de gestão da morte e do desaparecimento. Como ocorreu em mais de uma vez, tais modificações começam na periferia do sistema capitalista global para, paulatinamente, servirem de modelos aos países centrais, principalmente em momentos de acirramento crônico de conflitos sociais como estes que estamos adentrando agora.
Tais modificações são pressionadas pela explicitação contemporânea da dimensão profundamente autoritária dos modelos de gestão neoliberal e sua incapacidade de preservar macroestruturas de proteção social e redistribuição em um cenário de acirramento de desigualdades e concentração. Nesse sentido, se quisermos compreender certas tendências imanentes ao modelo neoliberal em sua nova fase, devemos voltar os olhos a laboratórios de neoliberalismo autoritário, como os que estão a se desenvolver em países de inserção periférica, tais como o Brasil.
Podemos começar a descrever tais mudanças a partir da noção de deslocamento de paradigma. Pois, de fato, estamos a observar um deslocamento para fora do paradigma do que se convencionou chamar de “necropolítica”. Sabemos como tal discussão sobre necropolítica nasce da reflexão a respeito do poder soberano enquanto exercício da: “instrumentalização generalizada da existência humana e a destruição material de corpos humanos e populações”[i]. Não apenas o poder como gestão da vida e administração dos corpos, como descreve preferencialmente Foucault, mas principalmente decisão sobre a morte e o extermínio[ii].
Esta compreensão da soberania serviu-se, em larga medida, da maneira com que o nazismo e suas formas de gestão da morte assentavam-se, entre outros, na integração de tecnologias de sujeição social e destruição cujas raízes nos remetem à lógica colonial e a seu racismo constituinte. Como se o nazismo devesse também ser visto como parte da história da transposição das tecnologias de dominação colonial ao solo europeu, ao solo de países centrais do capitalismo mundial.
De fato, a dinâmica colonial assenta-se em uma “distinção ontológica” que se demonstrará extremamente resiliente, conservando-se mesmo após o ocaso do colonialismo como forma socioeconômica. Ela consiste na consolidação de um sistema de partilha entre dois regimes de subjetivação. Um permite que sujeitos sejam reconhecidos como “pessoas”, outro leva sujeitos a serem determinados como “coisas”[iii]. Aqueles sujeitos que alcançam a condição de “pessoas” podem ser reconhecidos como portadores de direitos vinculados, preferencialmente, à capacidade de proteção oferecida pelo Estado. Como uma das consequências, a morte de uma “pessoa” será marcada pelo dolo, pelo luto, pela manifestação social da perda. Ela será objeto de narrativa e comoção.
Já os sujeitos degradados à condição de “coisas” (e a degradação estruturante se dá no interior das relações escravagistas, embora ela normalmente permaneça mesmo depois do ocaso formal da escravidão) serão objetos de uma morte sem dolo[iv], que será vista como portadora do estatuto da degradação de objetos. Essa morte não terá narrativa, mas se reduzirá à quantificação numerária que normalmente aplicamos às coisas. Aqueles que habitam países construídos a partir da matriz colonial sabem da normalidade de tal situação quando, ainda hoje, abrem jornais e leem: “9 mortos na última intervenção policial em Paraisópolis”, “85 mortos na rebelião de presos em Belém”. A descrição se resume normalmente a números sem história.
Não é difícil compreender como esta naturalização da distinção ontológica entre sujeitos através do destino de suas mortes é um dispositivo fundamental de governo. Ele perpetua uma dinâmica de guerra civil não declarada através da qual aqueles submetidos à espoliação econômica máxima e às condições mais degradadas de trabalho e remuneração são paralisados em sua força de revolta pela generalização do medo diante do extermínio de estado[v]. Ela é assim o braço armado de uma luta de classe para a qual convergem, entre outros, marcadores evidentes de racialização. Pois trata-se de fazer passar tal distinção ontológica no interior da vida social e de sua estrutura cotidiana. Os sujeitos devem, a todo momento, perceber como o estado age a partir de tal distinção, como ela opera explicitamente e em silêncio.
Neste sentido, notemos como tal dinâmica necropolítica responde, após o ocaso das relações coloniais explícitas, às estratégias de preservação de interesses de classe, na qual o estado age, diante de certas classes, como “estado protetor”, enquanto age diante de outras como “estado predador”[vi]. Em suma, há de se insistir como a necropolítica aparece, assim, enquanto dispositivo de preservação de estruturas de paralisação de luta de classes, normalmente mais explícita em territórios e países marcados pela centralidade de experiências coloniais.
Mas devemos estar atentos à consolidação de contextos sócio-históricos nos quais o estado abandona, em absoluto, sua natureza protetora constituindo-se a partir do discurso do “deixar morrer”, da indiferença em relação às mortes que ocorrem em todos os setores das populações sob sua jurisdição. Ou seja, há situações nas quais a lógica do estado predador se generaliza para a integralidade do corpo social, mesmo que nem todos os setores deste corpo estejam no mesmo nível de exposição à vulnerabilidade. Nessas circunstâncias, como gostaria de defender, um fenômeno de outra natureza ocorre, que não se deixa ler completamente em uma lógica necropolítica.
Paul Virilio, em um texto no qual era questão a análise da especificidade dos regimes de violência no estado fascista, cunha o termo “estado suicidário” para dar conta dessa dinâmica singular[vii]. Esta era uma maneira astuta de andar na contramão do discurso liberal da igualdade entre nazismo e stalinismo ao insistir nos regimes de estruturação da violência como traço diferencial entre o estado fascista e outras formas de estados ditos totalitários, e mesmo de outras formas de estados coloniais. O termo “suicidário” se mostrará frutífero porque era a maneira de lembrar como um estado desta natureza não deveria ser compreendido apenas como o gestor da morte para grupos específicos, como vemos nas dinâmicas necropolíticas.
Ele era o ator contínuo de sua própria catástrofe, o cultivador de sua própria explosão, o organizador de um empuxo da sociedade para fora de sua própria auto-reprodução[viii]. Segundo Virilio, um estado dessa natureza se materializou de forma exemplar em um telegrama. Um telegrama que tinha número: Telegrama 71. Foi com ele que, em 1945, Adolf Hitler proclamou o destino de uma guerra então perdida. Ele dizia: “Se a guerra está perdida, que a nação pereça”. Com ele, Hitler exigia que o próprio exército alemão destruísse o que restava de infraestrutura na combalida nação que via a guerra perdida. Como se esse fosse o verdadeiro objetivo final: que a nação perecesse pelas suas próprias mãos, pela mão do que ela mesma desencadeou[ix].
A discussão sobre a natureza “suicidária” do estado fascista será retomada no mesmo ano por Michel Foucault, em seu seminário Em defesa da sociedade (em uma aproximação e profundamente equivocada com a violência do socialismo real) e anos mais tarde, de forma mais sistemática, por Deleuze e Guattari, em Mil Platôs. Diante do regime de destrutividade imanente ao fascismo e seu movimento permanente, Deleuze e Guattari irão sugerir a figura de uma máquina de guerra descontrolada que teria se apropriado do Estado, criando não exatamente um Estado totalitário preocupado com o extermínio de seus oponentes, mas um Estado suicidário incapaz de lutar pela sua própria preservação. Daí porque era o caso de afirmar:
“Existe, no fascismo, um niilismo realizado. É que, diferentemente do Estado totalitário, que se esforça por colmatar todas as linhas de fuga possíveis, o fascismo se constrói sobre uma linha de fuga intensa, que ele transforma em linha de destruição e abolição puras. É curioso como, desde o início, os nazistas anunciavam para a Alemanha o que traziam: núpcias e morte ao mesmo tempo, inclusive a sua própria morte e a dos alemães”.[x] […] Uma máquina de guerra que não tinha mais objeto a não ser a guerra, e que aceitava abolir seus próprios correligionários antes do que deter a destruição”.[xi]
Ao aprofundar tal ponto, Guattari dará um passo a mais e não verá problemas em afirmar que a produção de uma linha de destruição e de uma “paixão em abolição” pura se relacionaria com: “o diapasão da pulsão de morte coletiva que teria se liberado das valas da Primeira Guerra Mundial”[xii]. Isto lhe permitia afirmar que as massas teriam investido, na máquina fascista, “uma fantástica pulsão de morte coletiva” que lhes permitia abolir, em um “fantasma de catástrofe”[xiii], uma realidade que elas detestavam e à qual a esquerda revolucionária não teria sabido como fornecer outra resposta.
Deixando de lado os problemas complexos levantados por tal uso do conceito de pulsão de morte, lembremos como, segundo essa leitura, a esquerda nunca teria sido capaz de fornecer às massas uma real alternativa de ruptura, que passava necessariamente pela abolição do estado, de seus processos imanentes de individuação e de suas dinâmicas disciplinares repressivas[xiv]. Essa é a maneira que Guattari tem de seguir afirmações de Wilhelm Reich como: “O fascismo não é, como se tende a acreditar, um movimento puramente reacionário, mas ele se apresenta como um amálgama de emoções revolucionárias e de conceitos sociais reacionários”[xv]. A questão não poderia resumir-se apenas àquilo que o fascismo proíbe, mas há de se entender aquilo que ele autoriza, o tipo de revolta a que ele dá forma, ou ainda a energia libidinal que seria capaz de captar.
Isso nos lembra como haveria várias formas de destruir o estado e uma delas, a forma contrarrevolucionária própria ao fascismo, seria acelerando em direção a sua própria catástrofe, mesmo que ela custe nossas vidas. O estado suicidário seria capaz de fazer da revolta contra o estado injusto, contra as autoridades que nos excluíram, o ritual de liquidação de si em nome da crença na vontade soberana e na preservação de uma liderança “fora-da-lei” que deve encenar seu ritual de onipotência mesmo quando já está clara sua impotência. Dessa forma junta-se à noção do fascismo como uma contrarrevolução preventiva e uma forma de abolição pura e simples do estado através do chamado à autoimolação do povo a ele vinculado[xvi].
De certa maneira, esse topos do estado suicidário converge com análises feitas décadas antes a respeito da violência própria ao estado fascista, vindas da Escola de Frankfurt. Lembremos, por exemplo, do que diz Theodor Adorno em 1946:
“Nesse ponto, deve-se prestar atenção à destrutividade como o fundamento psicológico do espírito fascista (…) Não é acidental que todos os agitadores fascistas insistam na iminência de catástrofes de alguma espécie. Enquanto advertem de perigos iminentes, eles e seus seguidores se excitam com a ideia de ruína inevitável sem sequer diferenciar claramente entre a destruição de seus inimigos e de si mesmos (…) Este é o sonho do agitador: uma união do horrível e do maravilhoso, um delírio de aniquilação mascarado como salvação”.[xvii]
Ou seja, trata-se de falar da destrutividade como “fundamento psicológico” do fascismo, e não apenas como característica de dinâmicas imanentes de lutas sociais e processos de conquista e sujeição. Pois se fosse questão apenas de descrever a violência da conquista e perpetuação do poder, seria difícil compreender como se chega neste ponto em que não seria sequer possível diferenciar claramente entre a destruição de seus inimigos e de si mesmo, entre a aniquilação e a salvação. Para dar conta da singularidade desse fato, Adorno falará também, na década de 1960, de um “desejo de catástrofe”, de “fantasias de fim de mundo” que ressoam socialmente estrutura típicas de delírios paranoicos.[xviii]
Colocações como essas de Adorno visam expor a singularidade dos padrões de violência no fascismo. Pois não se trata apenas da generalização da lógica de milícias dirigidas contra grupos vulneráveis, lógica por meio da qual o poder estatal se apoia em uma estrutura paraestatal controlada por grupos armados. Também não se trata apenas de levar sujeitos a acreditarem que a impotência da vida ordinária e da espoliação constante será vencida através da força individual de quem enfim tem o direito de tomar para si a produção autorizada da violência. A esse respeito, sabemos como o fascismo oferece certa forma de liberdade, como ele sempre se construiu a partir da vampirização da revolta[xix]. Nem se trata de junção entre indiferença e violência extrema contra grupos historicamente violentados. Como os teóricos da necropolítica nos lembram, tal articulação não precisou esperar o fascismo para aparecer, mas está presente em todos os países de tradição colonial com suas tecnologias de destruição sistemática de populações[xx].
No entanto, se Adorno fala de “fundamentação psicológica” é porque faz-se necessário compreender a violência, principalmente, como dispositivo de mutação psíquica. Uma mutação que teria como eixo de desenvolvimento certa generalização da destrutividade às formas de relação consigo, com o outro e com o mundo. Neste horizonte, a psicologia é chamada para quebrar a ilusão econômica dos indivíduos como agentes maximizadores de interesses. Ao contrário, seria necessário não ignorar investimentos libidinais em processos nos quais os indivíduos claramente investem contra seus interesses mais imediatos de autopreservação.
Esse diagnóstico de uma corrida em direção ao autossacrifício, em um processo no qual a figura do Estado protetor dá lugar a um Estado predador que se volta inclusive contra si mesmo, Estado animado pela dinâmica irrefreável de autodestruição de si e da própria vida social, não era exclusivo dos frankfurtianos. Ele podia ser encontrado também nas análises de Hannah Arendt. Basta lembrarmos como, em 1951, Arendt falava do fato espantoso de que aqueles que aderiam ao fascismo não vacilavam mesmo quando eles próprios se tornavam vítimas, mesmo quando o monstro começava a devorar seus próprios filhos[xxi].
Esses autores eram sensíveis, entre outros, ao fato de a guerra fascista não ter sido uma guerra de conquista e estabilização. Ela não tinha como parar, dando-nos a impressão de estarmos diante de um “movimento perpétuo, sem objeto nem alvo” cujos impasses só levavam a uma aceleração cada vez maior. Arendt falará da “essência dos movimentos totalitários que só podem permanecer no poder enquanto estiverem em movimento e transmitirem movimento a tudo o que os rodeia”[xxii]. Há uma guerra ilimitada que significa a mobilização total do efetivo social, a militarização absoluta em direção a um conflito que torna permanente.
Ainda durante a guerra, Franz Neumann fornecerá uma explicação funcional para tal dinâmica da guerra permanente. O chamado “Estado” nazista seria, na verdade, a composição heteróclita e instável de quatro grupos em conflito perpétuo por hegemonia: o partido, as forças armadas e seu alto comando aristocrata prussiano, a grande indústria e a burocracia estatal:
“Desprovidos de qualquer lealdade comum e preocupados apenas com a preservação de seus próprios interesses, os grupos no poder se separarão assim que o Líder produtor de milagres encontrar um oponente digno. Atualmente, cada parte precisa das outras. O exército precisa do partido porque a guerra é totalitária. O exército não pode organizar a sociedade “totalmente”; isso é deixado para o partido. O partido, por outro lado, precisa do exército para vencer a guerra e assim estabilizar e até aumentar seu próprio poder. Ambos precisam de indústria monopolista para garantir expansão contínua. E todos os três precisam da burocracia para alcançar a racionalidade técnica sem a qual o sistema não poderia operar. Cada grupo é soberano e autoritário; cada um está equipado com poderes legislativos, administrativos e judiciais próprios; cada um é, portanto, capaz de realizar rápida e implacavelmente os compromissos necessários entre os quatro”. [xxiii]
Ou seja, apenas a continuação indefinida da guerra permitia a essa composição caótica de grupos soberanos e autoritários encontrar certa unidade e estabilidade. Não se tratava, assim, de uma guerra de expansão e fortalecimento do Estado, mas de uma guerra pensada como estratégia de adiamento indefinido de um Estado em rota da desagregação, de uma ordem política em regime de colapso. E para sustentar tal mobilização contínua com sua exigência monstruosa de esforço e perdas incessantes, faz-se necessário que a vida social se organize sob o espectro da catástrofe, do risco constante invadindo todos os poros do corpo social e da violência cada vez maior necessária para pretensamente imunizar-se de tal risco[xxiv]. Ou seja, a única forma de adiar a desagregação da ordem política, a fragilidade tácita da ordem, consistiria em gerenciar, em um movimento de flerte contínuo com o abismo, uma junção entre chamados à autodestrutividade e reiteração sistemática de heterodestrutividade[xxv].
Não será por acaso que encontraremos, décadas depois, alguns analistas a sugerirem a figura do estado fascista como um corpo social marcado por uma doença autoimune: “A última condição na qual o aparelho protetor se torna tão agressivo que ele se volta contra seu próprio corpo (que ele deveria proteger) levando-o à morte.”[xxvi]
A presença sistemática da tópica da proteção como imunização contra a degenerescência do corpo social seria, na verdade, expressão da consciência dos antagonismos profundos a atravessarem uma sociedade em dinâmica de radicalização de lutas de classe e de sedição revolucionária, como era o caso da sociedade alemã da década de 1920, com seu partido comunista em ascensão. Desde Hobbes, sabemos como o recurso à tópica da imunização contra as “doenças do corpo social” é mobilizado em situações de sublevação revolucionária[xxvii]. Não seria diferente em uma contrarrevolução preventiva como o fascismo. Essa imunização exigirá a aceitação, por todos os atores da ordem, da militarização da sociedade e da transformação da guerra em única situação possível de produção da unidade do corpo social e de expansão econômica imperialista em escala planetária.
Mas devemos nos perguntar se esta noção de estado suicidário deveria se restringir apenas ao fascismo e, em especial, ao nazismo alemão. Ela teria alguma força explanatória para descrever a lógica da violência em formas políticas outras? E, caso a resposta seja afirmativa, o que tal simetria com o estado suicidário fascista poderia significar?
Se aceitarmos, com Wolfgang Streeck, que o capitalismo contemporâneo, com sua articulação entre baixo crescimento contínuo, endividamento crônico e explosão da desigualdade, entrou em um processo irreversível de decomposição, por não conseguir garantir nenhuma forma de estabilidade sistêmica, sem no entanto existir por enquanto alguma outra alternativa consolidada para substitui-lo[xxviii], não poderíamos defender que tal horizonte terminal pediria alguma forma de mutação generalizada na relação entre proteção e governo, a fim de permitir certa possibilidade de estabilização na decomposição? Não seria necessário certa forma de “normalização” da decomposição de macroestruturas sociais e, por consequência, de desinvestimento nas expectativas de proteção dirigidas ao estado, o que implica aceitação tácita do aumento exponencial do nível generalizado de risco diante da morte? E, por fim, tal desinvestimento não exigiria certa forma de mutação dos afetos que sustentam o corpo social, como por exemplo a implosão de toda solidariedade genérica, além de certa mutação psíquica estrutural a partir da generalização de identificação a figuras ou processos que legitimam a violência de tal implosão da solidariedade?
Note-se que o argumento do Streeck não exige que macroestruturas sociais tenham, de fato, funcionado como dispositivo de estabilização social e limitação da pauperização. Elas precisam apenas conseguir preservar a crença de que lutas políticas que respeitem marcos institucionais possam, em algum momento, produzir condições para que princípios gerais de redistribuição ocorram. Pois há de se terminar de vez com um dos maiores contos de fadas da política contemporânea. O chamado “Estado do bem-estar social” produziu sua pretensa limitação da pauperização apenas em certos países centrais do capitalismo e, mesmo nesses casos, o fez preservando lógicas de dominação colonial até o final dos anos sessenta e transferindo precariedade para massas de imigrantes pobres.
Mas é verdade que ele conseguiu levar setores significativos da classe trabalhadora organizada a acreditarem que as lutas políticas no interior do horizonte institucional da democracia liberal poderiam levar a mudanças estruturais na renda e na partilha de riquezas. Aqueles, por sua vez, ligados nesse momento a políticas de transformação revolucionária ainda eram capazes de partilhar horizontes claros e hegemônicos de ação coletiva, fato que começa a declinar efetivamente com o fim do ciclo de revoluções (sendo a última na Nicarágua, em 1979). Assim, chega-se na situação atual, na qual o problema da construção de macroestruturas sociais de proteção e cooperação efetiva não é mais sequer posto como problema central para forças políticas de aspiração revolucionária.
Levando essas questões em consideração, seria o caso de defender que há algo de paradigmático na noção de estado suicidário e que parece retornar atualmente em laboratórios mundiais do neoliberalismo autoritário, como o Brasil. Mas, agora, tudo se passa como se o estado suicidário retornasse como modelo de “funcionamento normal” de uma situação em crise perpétua. Pois trata-se de defender a tese de que catástrofes humanitárias, como essa produzida pelo governo brasileiro diante da pandemia (segundo país do mundo em número de mortos, mesmo diante de subnotificações evidentes; ausência total de políticas federais de proteção de populações; ausência completa de luto e comoção social pelas mortes), funcionam como parte de uma política de pressão em direção a modificações paradigmáticas no exercício do poder.
Tais modificações podem indicar recomposições globais mais profundas visando a adaptação aos processos socioeconômicos capitaneados pelo horizonte neoliberal e seu horizonte reduzido de expectativas. Por sua vez, elas indicam uma consolidação da indiferença e da desafecção como afeto social fundamental, elementos fundamentais para a generalização de mutações psíquicas como as descritas, cada um a sua maneira, por Adorno e Guattari.
Insistamos, inicialmente, em algumas especificidades da situação brasileira a fim de compreender sua posição privilegiada para analisar tal fenômeno. Como lembrará Celso Furtado, o Brasil foi um país criado a partir da implantação da célula econômica do latifúndio escravagista primário-exportador em solo americano[xxix]. Antes de ser uma colonização de povoamento, tratava-se de desenvolver, pela primeira vez, uma nova forma de ordem econômica vinculada à produção exportadora e ao uso massivo de mão-de-obra escrava.
Lembremos como o império português será o primeiro a se engajar no comércio transatlântico de escravos, chegando à posição de quase-monopólio em meados do século XVI, tendo sido 35% de todos os escravos transportados para as Américas direcionados para o Brasil. Sendo o latifúndio escravagista a célula elementar da sociedade brasileira, e o Brasil o último país americano a abolir a escravidão, não será estranho concebê-lo como o maior experimento da necropolítica colonial da história moderna.
Tal característica permitiu ao Estado brasileiro desenvolver uma tecnologia de desaparecimento, de extermínio e de execução de setores vulneráveis da população (índios, pobres, pretos) que se demonstrará resiliente em sua história, criando as condições técnicas para a gestão de uma “contrarrevolução permanente”[xxx]. Tecnologia essa que se desenvolverá de forma exponencial na ditadura militar (1964-1984), através do uso sistemático de técnicas de “desaparecimento forçado” contra opositores do regime, em uma adaptação das práticas de “guerra revolucionária” desenvolvidas nas lutas coloniais na Indochina e Argélia[xxxi].
Tendo sido o Brasil um dos raros casos na América Latina de país sem justiça de transição e julgamento de crimes da ditadura militar, tais dispositivos puderam permanecer nas práticas normais dos aparatos policiais do Estado durante o período pós-ditadura até os dias atuais[xxxii]. Como exemplo do impacto de tal permanência, o Brasil é o único país na América Latina em que os casos de tortura policial aumentaram em relação aos casos na época de ditadura militar[xxxiii].
Não deve, pois, ser visto como um acaso que um país com tais estruturas sociais sirva de laboratório para o desenvolvimento do neoliberalismo autoritário, agora não mais sob uma capa ditatorial, como ocorreu no Chile de Pinochet, mas em ambiente pretensamente “democrático”[xxxiv]. Sabemos como a reconstrução da vida social pela racionalidade neoliberal exige a reconfiguração das relações sociais a partir da exigência de garantia e realização de uma concepção singular de “liberdade individual”.
Essa liberdade exige, por sua vez, uma sociedade que implodiu todas suas relações, atuais e potenciais, de solidariedade genérica. Implosão essa que não verá problemas em defender uma concepção de liberdade que, em certas circunstâncias “excepcionais”, se realizará como desengajamento completo de proteção diante da morte iminente de setores expressivos da população marcados por relações históricas de espoliação. O solo para o florescimento de tal concepção de liberdade precisa ser marcado pela violência reiterada e pela indiferença sistemática.
Lembremos de alguns traços fundamentais da liberdade dentro da ideologia neoliberal. Sabemos como o neoliberalismo não é apenas uma ideologia de políticas econômicas, mas também um horizonte ético (organizado de forma violenta através da intervenção maciça do estado na despolitização da vida social) que visa submeter todas as exigências de justiça a imperativos de liberdade. De fato, a liberdade aparece como eixo fundamental de legitimação tanto de ações governamentais quanto de modos de relação consigo.
Exigências de justiça, sejam elas exigências de justiça redistributiva ou justiça de reparação social, devem se submeter à defesa intransigente da liberdade, dirão os neoliberais. De certa forma, podemos mesmo dizer que a racionalidade das ações econômicas não é analisada em termos de maior produção de riqueza e bens a um maior número de pessoas, de segurança social ou de equidade, mas a partir de sua capacidade de realizar socialmente a liberdade. E se nos perguntarmos a respeito do que se entende por liberdade, neste contexto, encontraremos a liberdade como expressão de indivíduos proprietários, como exercício da propriedade de si.
É com tal articulação em mente que devemos ler, por exemplo, o início do texto que apresentava os objetivos da Sociedade Mont Pélérin, primeiro grupo formado para a difusão dos ideais neoliberais, nos anos 1940:
Os valores centrais da civilização estão em perigo […] O grupo defende que tal desenvolvimento tem sido impulsionado pelo crescimento de uma visão da história que nega todo padrão moral absoluto e por teorias que questionam a desejabilidade do império da lei.[xxxv]
De onde se seguia a exortação para explicar a pretensa crise atual a partir de suas “origens morais e econômicas”. Esta dupla articulação é extremamente significativa. A referida visão da história que negaria todo padrão moral absoluto e que estaria em crescimento seriam as ideologias coletivistas e socialistas que recusam o primado da propriedade privada. Estamos nos anos 1940, o comunismo está em expansão e mesmo os países capitalistas adotam modelos híbridos, como o escandinavo, ou então modelos caracterizados por fortes doses de intervencionismo estatal de natureza keynesiana.
O trecho acima é interessante porque mostra de que maneira a recusa do primado da propriedade privada e da competividade não é compreendida apenas como um equívoco econômico que poderia trazer ineficiência e atraso, mas principalmente como uma falta moral capaz de colocar em perigo os valores centrais da civilização ocidental. É por isso que sua defesa deverá ser não apenas assentada em sua pretensa eficácia econômica diante dos imperativos de produção de riqueza, mas por meio da exortação moral dos valores imbuídos na livre iniciativa, na “independência” em relação ao Estado e na pretensa autodeterminação individual.
Devemos realizar a obrigação moral de uma sociedade de indivíduos livres da tutela de quem quer que seja, capazes de usufruir de sua propriedade como bem entender e seguros de que violações a tal direito fundamental serão prontamente punidos. Pois o direito à propriedade privada seria “a mais importante garantia para a liberdade”, como dirá Hayek. Isto nos explica por que, na “sociedade livre”, o indivíduo teria sempre a possibilidade de escolha (econômica), ao contrário dos chamados modelos “coletivistas” em que se “isenta o indivíduo da responsabilidade”, não sendo possível “deixar de ser antimoral nos seus efeitos, por mais elevados que sejam os ideais que o geram”[xxxvi]. Como vemos, as decisões são justificadas em termos de “responsabilidade”, de “maioridade”, de “independência”. Quer dizer, os termos são todos morais, e não econômicos.
“Muito maior que a própria vida é nossa liberdade”. Essa afirmação não é de Hayek, mas do atual presidente do Brasil ao justificar sua análise de que as políticas de restrição a circulação e atividades adotadas para o combate contra a pandemia seriam um “atentado à liberdade”. Deixando de lado a contradição elementar de que uma liberdade sem vida não é liberdade alguma, há a realização, mais ou menos consequente, da concepção neoliberal de “responsabilidade”, “maioridade” e “independência”. Vimos algo parecido quando manifestantes norte-americanos saíram às ruas com um cartaz onde se via uma máscara dentro de um sinal de proibido e se lia “meu corpo, minhas regras”. O mesmo raciocínio serviu de base para manifestantes alemães exigirem o “direito de se infectarem”.
A lógica é clara e não há como negar certa consistência. Sendo “liberdade” algo que alguns compreendem como a propriedade que tenho sobre mim mesmo, ninguém poderia me obrigar a portar uma máscara médica, a ficar em casa ou a cuidar de meu corpo, a não ser que ele tenha meu consentimento para isto. Afinal, como disse o Sr. Bolsonaro em outra ocasião: “se eu me infectar, o problema é meu”.
Poderíamos contra-argumentar dizendo que, mesmo admitindo a liberdade como propriedade de si que se encontra na base da ideologia neoliberal, deveríamos relativizá-la afirmando que: “o exercício de minha propriedade de si deve estar submetida ao respeito pelo risco à vida do outro”. No entanto, sempre haverá os que perguntarão (e, novamente, com certa consistência): mas quem decide quais são os “riscos relevantes” ao outro? Por que devo admitir que o estado ou cientistas que se colocam como sábios oraculares decidiram o que é “risco relevante”? Ou seja, quem tem a autoridade reconhecida para definir o que afeta meu corpo sem que eu mesmo tenha consentido em reconhecer tal autoridade?
Notemos como a generalização de uma lógica desta natureza responde pela percepção de que as macroestruturas de proteção social estão em declínio e que uma saída possível seria o deslocamento massivo de responsabilidade e ação para microestruturas, como famílias e indivíduos. Este não era, afinal, o slogan maior de Margareth Thatcher: “não há esse negócio de sociedade, há apenas indivíduos e famílias”? Mas, se esse for o caso, como exigir do estado proteção em momentos excepcionais, como aqueles que são produzidos por pandemias? Não seria, na verdade, uma “falta moral” que indica falta de coragem e disposição para o trabalho e luta? Melhor seria, então, descrever a práticas de confinamento e isolamento como “covardia”, como foi sistematicamente o caso no Brasil.
Dessa forma, em nome da defesa da liberdade e da decomposição de macroestruturas de proteção social, o estado pode submeter as populações a uma dinâmica propriamente suicidária, posto que se baseia na indiferença em relação ao aumento brutal dos riscos de “morte violenta”, para falar como Hobbes. Claro que tal risco é minorado pelo acesso ao mercado, ou seja, o acesso a sistemas privados de saúde e de proteção. A certeza do acesso privilegiado a tais sistemas estabelece uma partilha diferenciada de riscos, ainda que não possa anular o aumento geral a exposição do risco de morte.
Ela define um impacto diferente de risco de acordo com classes sociais, criando curvas completamente diferentes de contágio e morte entre as classes abastadas e as classes pobres[xxxvii]. No entanto, ela não elimina a naturalização de um novo nível de exposição social à morte para a integralidade da população e a aceitação de tal aumento por parcelas significativas da população, e esse é o dado fundamental aqui.
Tal processo exige dinâmicas de desafecção que não podem ocorrer caso a sociedade esteja engajada em lutos públicos e comoção cívica. Para tanto, faz-se necessário produzir a desaparição sistemática dos corpos mortos. Isto se dá através de contrainformação (trabalho sistemático do governo para desacreditar os números de mortos, já subnotificados), da simples negação (afirmar que os mortos classificados como mortos por covid são, na verdade, vítimas de outras doenças), da recusa explícita em sensibilizar-se com mortos (declarações contínuas de autoridades federais, principalmente do presidente da república, de que “a vida segue”, “todo mundo morre”), entre outras estratégias. A tática militar do “desaparecimento forçado” retorna como política no governo das populações.
Notemos como se repete uma situação que vimos anteriormente com as análises de Neumann a respeito do estado nazista. Na ocasião, vimos como o recurso a uma guerra permanente, com seus chamados constantes ao sacrifício e à catástrofe, aparecia como resposta a um Estado em desagregação, que nasce após a impossibilidade da democracia liberal dar conta dos conflitos sociais que se radicalizavam. O que aparece em seu lugar é um aparato atravessado pela luta contínua entre grupos, em equilíbrio completamente instável e que precisa da guerra interna e externa como condição de sobrevivência.
Por sua vez, o diagnóstico de perda da capacidade da mediação de conflitos pelos aparatos institucionais da democracia liberal é cada vez mais evidente. Essa perda não é derivada de alguma forma de “regressão populista” devido à pretensa mobilização de afetos identitários. Ela é fruto das limitações imanentes da democracia liberal e de suas promessas redistributivas não cumpridas. Neste horizonte, um caminho que se consolida é a aceitação do colapso de toda macroestrutura de proteção e o fortalecimento de microestruturas como horizonte de apoio. No caso brasileiro, tal processo foi impulsionado por meio da constituição de auxílios financeiros de transferência direita de renda, financiados, na verdade, pela decomposição sistemática dos orçamentos destinados a políticas públicas universalistas (em educação, saúde pública, pesquisa, entre outros). A lógica segue o princípio de que o estado já fez sua parte transferindo auxílios emergenciais, agora cada indivíduo deve exercer sua capacidade individual de sobrevivência.
O complemento desse processo pode ser a radicalização da lógica da propriedade de si, sem que o aumento do risco em relação à morte por desengajamento do estado seja capaz de parar tal processo. Assim, podemos dizer que entramos em uma lógica suicidária sem a necessidade de uma guerra efetiva. Caso mostre-se eficaz, tal lógica pode tender a ser a norma em outros horizontes de aplicação de políticas neoliberais. Mas talvez, dessa forma, o neoliberalismo tenha nos mostrado o que muitos de nós já sabíamos, mas lutamos para esquecer, a saber, que a economia não passa da continuação da guerra civil por outros meios.
No entanto, há uma última peça a ser acrescentada na compreensão dos motores que impulsionam tal dinâmica suicidária. Vimos como em Franz Neumann aparece a tópica da violência da guerra fascista enquanto modo contrarrevolucionário de defesa contra a decomposição imanente da unidade política diante da radicalização da luta de classe. Essa lógica da violência como modo de defesa não deve, no entanto, responder apenas a decomposições macro-estruturais vinculadas ao horizonte político do estado. Ela deve também vincular-se ao que poderíamos chamar de “decomposições micro-estruturais”, ou seja, essas que ocorrem nos níveis das normas sociais que procuravam gerir a sexualidade, os corpos, as relações de reprodução no interior da família, entre outros. É a articulação entre modos de defesa referentes a esses dois níveis de decomposição, é a ressonância entre os dois processos que potencializa as dinâmicas suicidárias próprias ao fascismo. Há uma coordenada histórica de junção entre esses dois níveis de decomposição necessária para o ressurgimento do fascismo. E sua ressurgência contemporânea pode nos explicar muito a respeito do lugar em que estamos atualmente.
Tais decomposições a nível micro-estrutural, ou seja, tais impossibilidades de reprodução material das formas hegemônicas de vida a nível micro-estrutural foram tematizadas pelos frankfurtianos no início dos anos trinta através da tópica do “enfraquecimento do Eu”, do “declínio da autoridade paterna” e da consolidação da “família autoritária” como reação desesperada ao colapso do patriarcado. Elas estão presentes, nesse mesmo momento histórico, nas reflexões de Jacques Lacan sobre o “declínio da imago paterna” e da consolidação do Eu como instância rígida, de agressividade, de desconhecimento que mais se assemelha a generalização de uma personalidade autoritária.
Em todos esses casos, tratava-se de insistir que as formas de individuação deviam lidar com um colapso ligado à impossibilidade histórica de sustentar a ilusão de que a identidade, a unidade sintética e a integridade do Eu moderno não seria resultante da internalização de um “sistema de cicatrizes” e segregações. Daí a impossibilidade de sustentar a produção de tal identidade através das estratégias tradicionais de identificações paternas normalizadoras. Processos históricos permitiram a explicação da natureza profundamente repressiva e segregacionista da individualidade moderna, de sua psicologia e de suas instituições de reprodução[xxxviii].
Uma estratégia transformadora consistiria em assumir tal decomposição e tomá-la como motor da emergência de formas de subjetividade por vir. Mas outra estratégia possível passa pela internalização de um mecanismo de defesa contra tal enfraquecimento. Ele consistirá em desenvolver identificações narcísicas, defendendo os lugares sociais de autoridade abalados, defendendo a irredutibilidade de “indivíduos e famílias” a partir de uma lógica narcísica. A fragilidade do Eu será compensada através da identificação especular a uma imagem narcísica, rígida de si elevada ao lugar de autoridade. Uma autoridade, ao mesmo tempo, viril e caricata, fálica e cínica, misto de brutalidade e auto-derrisão, já que seria impossível anular a consciência histórica de seu ocaso. Assim, teremos o que Adorno chamava de: “o alargamento da própria personalidade do sujeito, uma projeção coletiva de si mesmo, ao invés da imagem de um pau cujo papel durante a última fase da infância do sujeito pode bem ter decaído na sociedade atual”[xxxix].
Adorno explora tal traço para falar da estrutura de identificação com os dirigentes fascistas. Pois o líder fascista não se constituiria à imagem do pai, mas a partir da imagem narcísica do sujeito. Por esta razão, ele mobilizará o conceito de ‘pequeno grande homem’: “uma pessoa que sugere, ao mesmo tempo, onipotência e a ideia de que ele é apenas mais um do povo, um simples, rude e vigoroso americano, não influenciado por riquezas materiais ou espirituais”[xl]. Alguém que não se constitui a partir da imagem de um ideal normativo, mas que aparece à cena da onipotência com as mesmas roupas que nós, com as mesmas inabilidades, quem pretensamente falaria “como nós”, com as mesmas raivas e “explosões”.
Daí a imagem conhecida, fornecida por Adorno, de que Hitler seria uma mistura de King Kong e barbeiro de subúrbio. Mas enquanto imagem narcísica, trata-se de uma compensação fantasmática da impotência real, uma defesa fóbica e fragilizada através da construção de ideais que deslizam continuamente da onipotência à impotência em um movimento que, se levado ao extremo, só poderá se realizar de uma forma, a saber, através do autossacrifício do sujeito como estratégia desesperada de sustentação de ideais.
Autossacrifício como única maneira de preservar ideais narcísicos e seus mecanismos de defesa, como se a impotência de tais ideais em realizar o que prometiam devesse ser mascarada através da transposição de tal impotência ao próprio sujeito, que se vê como indigno diante da própria imagem de si. Algo próximo àquilo que Durkheim um dia descreveu como dinâmica de “suicídio altruísta”. O ponto central é: a auto-destruição é feita, paradoxalmente, tendo em vista a preservação de si, a preservação de uma projeção superegoica e fantasmática de si.
Difícil não lembrar aqui das palavras de Jacques Lacan anos depois do final da Segunda Guerra: “Ficou agora claro como as potências sombrias do supereu se coligaram com os abandonos os mais vis da consciência para levar os homens a uma morte aceita pelas causas as menos humanas, e tudo o que aparece como sacrifício não é necessariamente heroico”.[xli]
Essa tópica do sacrifício às “potências sombrias do supereu” continuará presente em Lacan décadas depois, quando ele voltar ao “drama do nazismo” para falar do desejo de sacrifício a um outro que parece se colocar na posição de um “Deus obscuro”[xlii], desejo este do qual pretensamente poucos sujeitos seriam capazes de escapar. Dificuldade em escapar vinda do fato do último estágio da individualidade moderna ser sua realização terrorista como personalidade autoritária fascista.
Realização cujo movimento consequente não será outro que o suicídio. Assim, contrariamente à tese corrente de que a preservação do indivíduo seria o esteio contra o fascismo, há de se explorar a tese de que as ilusões autárquicas, unitárias e identitárias da individualidade moderna só poderem se realizar como violência social. Violência essa que, devido a estratégias narcísicas de compensação psíquica, consolidam um processo de implosão suicidária do corpo social.
Vladimir Safatle é professor titular do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo. Autor, entre outros livros, de Dar corpo ao impossível. O sentido da dialética a partir de Theodor Adorno (Autêntica). Publicado originalmente no site da n-1 edições.
Notas
[i] MBEMBE, Achille. Necropolítica. Trad.: Renata Santini. São Paulo: n-1 edições, 2018, pp. 10-11.
[ii] Ver FOUCAULT, Michel; História da sexualidade vol. I, São Paulo: Paz e Terra, 2015.
[iii] A respeito da distinção ontológica entre “pessoas” e “coisas” nas relações escravagistas, ver ESPOSITO, Roberto; As pessoas e as coisas, São Paulo, Rafael Copetti, 2016.
[iv] “De fato, a condição de escravo resulta de uma tripla perda: perda de um ‘lar’, perda de direitos sobre seu corpo e perda de estatuto político. Essa tripla perda equivale a uma dominação absoluta, uma alienação de nascença e uma morte social (que é expulsão fora da humanidade).” (Ibid., p. 27).
[v] Sobre o tópico da guerra civil como situação social “normal”, ver sobretudo: PELBART, Peter Pál. “Da guerra civil”, Arquivos Brasileiros de Psicologia, vol. 70, 2018. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/arbp/v70nspe/16.pdf.
[vi] Sobre a figura do “estado predador” ver, por exemplo: CHAMAYOU, Grégoire. La chasse à l’homme, Paris: La fabrique, 2010.
[vii] VIRILIO, Paul. L’insécurité du territoire. Paris : Galilée, 1976.
[viii] FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 311: “Tem-se, pois, na sociedade nazista, esta coisa, apesar de tudo, extraordinária: é uma sociedade que generalizou absolutamente o biopoder, mas que generalizou, ao mesmo tempo, o direito soberano de matar. […] De sorte que se pode dizer isto: o Estado nazista tornou absolutamente co-extensivos o campo de uma vida que ele organiza, protege, garante, cultura biologicamente, e, ao mesmo tempo, o direito soberano de matar quem quer que seja – não só os outros, mas os seus próprios. […] Temos um Estado absolutamente racista, um Estado absolutamente assassino e um Estado absolutamente suicida.”
[ix] A centralidade da lógica do autossacrifício na coesão do corpo social fascista foi salientada por autores como: ZIEMER, Georg. Education for death. Oxford University Press, 1941; MARCUSE, Herbert. “State and individual under national socialism”, In: Technology, war and fascism, London: Routledge, 1998; e NEOCLEOUS, Mark; “Long live death! Fascim, resurrection, immortality”, February 2005, Journal of Political Ideologies 10 (1): 31-49.
[x] DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix. Mil platôs. Trad.: Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34, 2012, 2a. red., v. 3, p. 123.
[xi] Ibid, p. 125.
[xii] Ver: GUATTARI, Félix. La révolution moléculaire. Paris : Les prairies Ordinaires, 2012, p. 67. O uso do conceito psicanalítico de pulsão de morte nesse contexto não é sem levantar problemas devido à multiplicidade imanente ao conceito freudiano, que descreve processos de destruição, de destino, de estranhamento e de jogo infantil, entre outros. Mas isso será assunto para outro texto.
[xiii] Ibid., p. 70: “Todas as significações fascistas retomam uma representação composta de amor e morte, Eros e Thanatos tornando-se um. Hitler e os nazistas lutavam pela morte até, e inclusive, a morte da Alemanha. E as massas alemãs aceitaram segui-lo até sua própria destruição”.
[xiv] Tal diagnóstico aproxima-se, à sua maneira, de posições de Marcuse como: “O Nacional Socialismo acabou com traços fundamentais que caracterizam o estado moderno. Ele tende a abolir toda separação entre estado e sociedade ao transferir as funções políticas para os grupos sociais atualmente no poder. Em outras palavras, o Nacional Socialismo tende ao autogoverno direto e imediato dos grupos sociais predominantes sobre o resto da população. Ver: MARCUSE, Herbert. Technology, war and fascismo. London: Routledge, 1998, p. 70.
[xv] REICH, Wilhelm. La psychologie de masses du fascisme [Paris : Payot, 2001, p. 17, originalmente publicado em La Critique Sociale nº 10, novembre 1933]. Nesse mesmo ano, tal ponto foi abordado por Georges Bataille em “La structure psychologique du fascisme”, Critique Sociale, nº 7, janvier 1933.
[xvi] Sobre o fascismo como contrarrevolução preventiva, ver: MARCUSE, Herbert. Counterrevolution and revolt. Boston: Beacon Press, 1972.
[xvii] ADORNO, Theodor. “Antissemitismo e propaganda fascista”, In: Ensaios de psicologia social e psicanálise. São Paulo: Unesp. 2015, p. 152.
[xviii] ADORNO, Theodor. Aspekte der neues Rechtradikalismus, Frankfurt: Suhrkamp, 2019, p. 26. Adorno e Horkheimer já haviam insistido no fascismo como patologia social de cunho paranoica em ADORNO, Theodor e HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.
[xix] “A rebelião contra a lei institucionalizada torna-se ausência de lei e liberação da força bruta a serviço dos poderes atuais”. HORKHEIMER, Max. Eclipse of reason. London: Continuum, 2007, p. 81.
[xx] Não por acaso, tecnologias de gestão da violência social, como campos de concentração e segregação foram desenvolvidas, inicialmente, em situações coloniais. Ver, por exemplo: ROUBINEK, Eric; “A ‘fascist’, colonialismo? National socialismo and italian fascist colonial cooperation, 1936-1943”, In: CLARA, Fernando e NINHOS, Claudia; Nazi Germany and Southern Europe, 1933-945, Pallgrave, 2016.
[xxi] ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, p. 434.
[xxii] ARENDT, Hannah. Ibid.
[xxiii] NEUMANN, Franz. Behemoth: the structure and practice of national socialism, 1933-1944. Chicago: Ivan R. Dee, 2009, p. 397-398.
[xxiv] Daí o sentido de afirmações como essas de Goebbels: “No mundo da fatalidade absoluta no interior do qual se move Hitler, nada tem mais sentido, nem o bem nem o mal, nem o tempo nem o espaço, e o que os outros homens chamam de ‘sucesso’ não pode servir de critério (…) É provável que Hitler terminará em catástrofe (HEIBER, Helmut 2013. Hitler parle à ses géneraux. Paris: Tempus Perrin, 2013, p. 324.)
[xxv] Ver BALIBAR, Etienne. « La pulsion de mort au-delà du politique ? » (Mimeo)
[xxvi] ESPOSITO, Roberto. Bios: biopolitics and philosophy. University of Minessota Press, 2008, p. 116.
[xxvii] Ver HOBBES, Thomas. Leviatã,
[xxviii] STREECK, Wolfgang. How will capitalismo end? Essays on a failing system. London: Verso, 2015.
[xxix] FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
[xxx] Ver FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1987.
[xxxi] Ver DUARTE-PLON, Leneide. A tortura como arma de guerra: da Argélia ao Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. FRANCO, Fábio; Governar os mortos (no prelo).
[xxxii] Ver SAFATLE, Vladimir e TELLES, Edson. O que resta da ditadura? São Paulo: Boitempo, 2010.
[xxxiii] SIKKINK, Kathryn & MARCHESI, Bridget. (2015). “Nothing but the truth: Brazil’s truth commission looks back”. Foreign Affairs, 26, fev.
[xxxiv] Sobre tal desenvolvimento, assim como sobre as relações entre neoliberalismo e fascismo, ver CHAMAOYOU, Grégoire. La société ingouvernable. Paris: La Fabrique, 2018.
[xxxv] Apud MIROWSKI, Philip. The road from Mont Pelerin: the making of the neoliberal thought. Harvard University Press, 2015, p. 25.
[xxxvi] HAYEK, Frederick. The road to serfdom. University of Chicago Press, 2007, p. 217.
[xxxvii] Segundo estudos realizados na cidade de São Paulo, entre os meses de maio de junho a soroprevalência de infecção pelo vírus SARS-CoV-2 é 2,5 vezes maior nos distritos de população mais pobre (Projeto SoroEpi MSP: https://www.monitoramentocovid19.org/).
[xxxviii] As causas históricas para o esgotamento da crença na organicidade da unidade do Eu e de sua identidade são várias. A pressão por igualdade real vinda dos movimentos comunistas colabora para colocar em questão as bases segregacionistas e coloniais da individualidade moderna (este é um tópico importante abordado por REICH, Wilhelm; La psychologie de masses du fascisme, op. cit.). O “bolchevismo sexual” (termo de guerra criado pelos nazistas) alertava a família alemã contra os efeitos pretensamente destruidores da igualdade de gênero e do desencantamento comunista da família. As decomposição das ordens tradicionais, em uma chave que nos remete ao “sofrimento de indeterminação” descrito por Durkheim, também deve ser lembrada (Cf. DURKHEIM, Emile; Le suicide, Paris: PUF). A ascensão da expressão descentrada no campo da estética também não deve ser negligenciado, ainda mais para um regime que levava tão a sério a “Entartete Kunst”. Ou seja, estamos diante de um fenômeno multifatorial.
[xxxix] ADORNO, Theodor; Ensaios de psicologia social e psicanálise, São Paulo: Unesp, 2015, p. 418.
[xl] Idem, p. 421.
[xli] LACAN, Jacques; Autres écrits, Paris : Seul, 2001, p. 120.
[xlii] LACAN, Jacques; Séminaire XI, Paris : Seul, 1973, p. 247.