A crise de 2008 não conseguiu pôr um fim à globalização. A fase da “conectividade” emergiu, com a China fornecendo a liderança política e o poder econômico. O Covid 19 matou essa conectividade, e a globalização, espera-se para o bem.
A pandemia de Covid 19 é a segunda grande crise da globalização em uma década. A primeira foi a crise financeira global de 2008-2009, da qual a economia global levou anos para parecer se recuperar. Não aprendemos nossas lições com a primeira, e talvez por isso o impacto da segunda tenha sido ainda mais maciço.
Trilhões de dólares de riqueza em papel viraram fumaça durante a crise de 2008, porém poucos choraram pelos atores financeiros descontrolados que tinham desencadeado a crise. Mais graves foram os impactos sobre a economia real.
Dezenas de milhões de pessoas perderam seus empregos, 25 milhões só na China, no segundo semestre de 2008. A carga aérea caiu 20% em um ano. As cadeias de abastecimento globais, muitas delas ancoradas na China, foram gravemente perturbadas.
The Economist lamentou, então, que a “integração da economia mundial esteja em retrocesso em quase todas as frentes”, acrescentando que “alguns críticos do capitalismo parecem felizes com isso, como Walden Bello, um economista filipino, que talvez possa afirmar ter cunhado a palavra [desglobalização] com seu livro, Desglobalização: Ideias para uma Nova Economia Mundial (publicado no Brasil, em 2003, pela Editora Vozes).
Desafiando a globalização
O que foi essa “desglobalização” com que o Economist estava tão preocupado?
Tratava-se, entre outras coisas, de fazer do mercado interno e não do mercado global novamente o centro de gravidade da economia. Para isso se propunha não só o uso de tarifas e quotas para preservar a indústria e a agricultura locais frente às corporações transnacionais, mas também pôr em prática uma política comercial ativista para construir a capacidade de apoiar a economia nacional de uma forma sustentável.
Mas não eram apenas propostas políticas específicas que os partidários da globalização temiam, mas a sua perspectiva fundamental, que questionava a própria base das relações sociais sob o capitalismo.
A desglobalização, escrevemos, “é, no seu cerne, uma perspectiva ética”. Ela prioriza valores acima dos interesses, cooperação acima da concorrência e comunidade acima da ‘eficiência'”.
Esta perspectiva traduz-se em uma “economia eficaz, que reforça a solidariedade social ao subordinar as operações do mercado aos valores da equidade, da justiça e da comunidade… Para usar a linguagem do grande pensador húngaro Karl Polanyi, a desglobalização tem a ver com o ‘reinserir’ a economia e o mercado na sociedade, em vez de ter a sociedade impulsionada pela economia e pelo mercado”.
A globalização se recupera
A desglobalização não foi a única forma alternativa de organizar a vida econômica que surgiu durante este período de crise. Mas, ao contrário dos receios do Economist, e para nossa consternação, todas foram postas de lado e, após o fosso da recessão em 2009, houve uma volta aos negócios como usual. Embora o mundo tenha entrado no que os economistas ortodoxos chamavam de “estagnação secular”, ou baixo crescimento com altas taxas de desemprego, a produção orientada para a exportação através das cadeias de abastecimento global e do comércio mundial retomou sua marcha adiante.
Na China, a maior parte do estímulo de US$ 585 bilhões destinado pelo governo durante a crise para gastos sociais foi desviada pelo lobby dominante das exportações, que canalizou os fundos para as empresas e governos locais das costas leste e sudeste do país, que se tornaram o centro de uma divisão global do trabalho “sinocêntrica” nas indústrias manufatureiras.
As emissões de carbono haviam desacelerado no auge da crise, mas agora retomaram sua trajetória ascendente. O tráfego aéreo de carga recuperou-se e as viagens aéreas cresceram de forma ainda mais espetacular. Após um declínio de 1,2% em 2009, as viagens aéreas cresceram anualmente em média 6,5% entre 2010 e 2019.
A “conectividade” no transporte, particularmente no transporte aéreo, deveria ser a chave para o sucesso da globalização. Como disse o diretor geral da poderosa Associação Internacional de Transporte Aéreo (IATA), “a diminuição da demanda por conectividade aérea coloca em risco empregos de alta qualidade, e a atividade econômica depende da mobilidade global… Os governos devem entender que a globalização tornou nosso mundo mais próspero social e economicamente. Inibir a globalização com protecionismo significará oportunidades perdidas”.
Para além do desejo de acelerar o fluxo de mercadorias através das cadeias de fornecimento globais, a procura de conectividade aérea foi alimentada pelo desejo da indústria global de linhas aéreas de lucrar com a explosão do turismo externo dos chineses. Em 2018, eles fizeram 149 milhões de viagens ao exterior, número superior aos de outros países, incluindo os Estados Unidos.
Não apenas as companhias aéreas, mas grandes partes do setor de serviços de muitos países tornaram-se dependentes do enorme afluxo de turistas chineses, que gastaram mais de 130 bilhões de dólares no exterior em 2018. Na Tailândia, principal país visitado pelos turistas chineses, foram mais de 11 milhões em 2019, com o turismo responsável por 11% do PIB.
A extrema direita sequestra a desglobalização
No Norte global, os governos de centro-direita e centro-esquerda se concentraram em salvar as instituições financeiras às custas das pessoas, com grande parte da Europa, especialmente no Sul, marcada por economias em recessão e elevado desemprego, e com os Estados Unidos ainda tendo mais pessoas desempregadas até 2015 do que no início da crise financeira.
Enquanto as elites estabelecidas mantinham sua adesão à globalização inquestionável, personalidades e partidos radicais de direita viram nisso uma oportunidade de ouro para catalisar a amargura dos trabalhadores com continuidade do desemprego enquanto as corporações continuavam transferindo suas operações para a China ou as consignavam para subcontratadores chineses – como a Apple fez com a Foxxcon, notória por suas práticas trabalhistas predatórias.
Antes identificados com propostas econômicas neoliberais, muitos partidos de extrema direita se apropriaram oportunisticamente de partes da crítica antiglobalização sustentadas pela esquerda não-estabelecida, como apelos à proteção dos trabalhadores e a trazer de volta indústrias, mas dando-lhes uma tonalidade racista ou anti-migrante.
A deserção dos trabalhadores do Partido Democrático ou a sua alienação das eleições presidenciais de 2016 nos principais estados do Centro-Oeste dos EUA resultou na vitória de Donald Trump. E, no cargo, Trump cumpriu a sua promessa de abandonar o projeto favorito do presidente Obama, a área de livre comércio Parceria Trans-Pacífico (TPP).
Ainda mais radical foi o fato de seu governo rotular a China de “agressor econômico” e enraizar a situação nos EUA, não em políticas neoliberais fracassadas, mas em uma conspiração supostamente fomentada pela China, por corporações transnacionais e por elites intocáveis. “Morte pela China”, proclamou o título do influente livro do principal conselheiro econômico de Trump, Peter Navarro.
China, campeã da globalização e da conectividade
A China, por sua vez, aproveitou a retirada dos EUA para o nacionalismo econômico para se promover como a nova campeã da globalização.
Em Davos, em janeiro de 2017, o presidente Xi Jin Ping disse que “a economia global é o grande oceano do qual não se pode escapar”, e no qual a China “aprendeu a nadar”. Ele chamou os líderes políticos e corporativos mundiais a “se adaptarem e guiarem a globalização, amortecerem seus impactos negativos e oferecerem seus benefícios a todos os países e a todas as nações”.
Mais do que isso, Xi ofereceu-se para apoiar suas palavras com um megaprograma de trilhões de dólares: a Belt and Road Initiative (BRI) que evocava a lendária “rota da seda” através da qual o comércio entre a China e a Europa era realizado no início dos tempos modernos.
Este ambicioso programa que consiste na construção de barragens, estradas e ferrovias, na instalação de usinas de carvão e em empreendimentos extrativistas, foi orientado para promover o que Pequim chamou de “conectividade global”. Originalmente destinado a “ligar” a Ásia à Europa, o BRI foi aberto a todos os países em 2015, de modo que não havia mais um cinturão e uma estrada, mas várias rotas, incluindo uma “rota da seda polar”.
Enquanto a claque pró-globalização bateu palmas, outras foram mais céticas.
Alguns viam isso como uma maneira de exportar o problema do excesso de capacidade de produção que atrapalhava a indústria pesada chinesa, envolvendo os países em empréstimos para projetos massivos de capital intensivo. Focus on the Global South descreveu a iniciativa como “uma transferência, anacrônica para o século XXI, da mentalidade capitalista tecnocrática, socialista de estado e desenvolvimentista que produziu a barragem Hoover nos EUA, os projetos de construção massiva na União Soviética de Stalin, a barragem das Três Gargantas na China, a barragem Narmada na Índia e a barragem Nam Theun 2 no Laos. Todos estes são testamentos do que Arundhati Roy chamou de ‘doença do gigantismo’ da modernidade”.
Em 2019, apesar do agravamento da guerra comercial entre a China e os Estados Unidos, a globalização não só parecia ter se recuperado da crise financeira dez anos antes, como estava com vento fresco nas velas. Apesar do aumento dos seus custos de produção, a China seguia adiante, a oficina indiscutível do mundo devido a uma maior conectividade com o resto do mundo.
Mais e mais países estavam comprando a promessa de conectividade da Belt and Road Initiative (BRI). As viagens aéreas estavam em alta, com executivos corporativos, autoridades governamentais e ONGs de primeira linha unidas pela conectividade, o que também trouxe um aumento exponencial dos turistas chineses para todas as partes do mundo, fazendo os destinos locais felizes e pedindo mais.
Conectividade corona
Então o vírus.
A conectividade aérea torna-se o meio para a transmissão de um vírus que parece mover-se na velocidade da internet. A economia global para não só por causa dos bloqueios para deter o vírus, mas também porque as linhas de produção da China param, expondo a loucura de se ter cadeias de produção baseadas no princípio de localizá-las onde os custos unitários de produção são mais baixos, que é a razão de ser da globalização.
Os custos da subcontratação de tanta produção na China são agora dolorosamente revelados pela falta de equipamentos médicos essenciais como os kits de teste Covid 19, seringas e até simples máscaras faciais nos Estados Unidos e na Europa, para não dizer no resto do mundo atingido pela pandemia.
No entanto, se há alguma coisa de boa nesta tragédia, é talvez que ela tenha acontecido hoje e não mais tarde, quando o BRI poderia muito bem ter consequências ainda mais fatais. Como Sonia Shah apontou recentemente no The Nation, os vírus saltando de seus hospedeiros animais, a quem não trazem nenhum dano, para os humanos, a quem eles trazem, tem se tornado cada vez mais frequentes porque os humanos estão invadindo os habitats da vida selvagem através do desmatamento das florestas.
60% dos patógenos microbianos que surgiram nas últimas décadas provêm de animais, e dois terços destes provêm da vida selvagem. A Federação Mundial de Vida Selvagem aponta que o BRI afetará negativamente cerca de 1.700 pontos fulcrais (hotspots) de biodiversidade e cerca de 265 espécies que já estão em risco. Entre os animais que enfrentam uma possível extinção ou desestabilização do BRI estão o raro orangotango Tanapuli, tigre de Sumatra, pangolim de Sunda, raposa voadora de asas brancas, ratazana de cauda esguia, gatos civeta raros, águia filipina e veado filipino.
Muitos destes animais servem como hospedeiros de vírus que libertam espécies como o Novo Coronavirus.
Contragolpe
O que muitas vezes é esquecido é a “vingança” da vida selvagem para a perturbação de seus habitats. Os vírus que saltam dos seus hospedeiros para os humanos é uma das formas de contragolpe. Existem outras.
De acordo com um estudo publicado na Current Biology, a rede de estradas, ferrovias e tubulações do BRI poderia introduzir mais de 800 espécies invasoras alienígenas – incluindo 98 anfíbios, 177 répteis, 391 aves e 150 mamíferos – em vários países ao longo de suas muitas rotas e infraestruturas, desestabilizando seus ecossistemas.
Como mostrado inúmeras vezes, a natureza tem uma forma de punir aqueles que perturbam os arranjos de vida que existiram por eras – e a ironia é que os humanos, através de processos como a globalização e a conectividade, ajudam a facilitar este contragolpe.
Se continuar, o contragolpe do BRI pode muito bem ser mais severo do que o do Covid 19.
A crise financeira de 2008 não conseguiu pôr um fim à globalização. Em vez disso, surgiu uma nova fase da globalização, a da “conectividade”, emergiu com a China fornecendo a liderança política e o poder econômico. O Covid 19 matou a conectividade, e a globalização, espera-se que para o bem.
Mas a grande questão é: o que irá substituir a globalização como novo “paradigma”?
A extrema-direita tem apostado numa versão nacionalista da desglobalização, que se preocupa em manter os imigrantes afastados e as “minorias” submetidas. Liberais e social-democratas estão exaustos e não têm nada de inspirador a oferecer. Os progressistas têm uma riqueza de ideias, entre elas o ecossocialismo, o decrescimento, a desglobalização, a soberania alimentar, o “Bem viver” e modelos emancipatórios inspirados no neomarxismo e no feminismo.
Existem sinergias emocionantes entre estas perspectivas. O desafio é criar a base que fará delas uma força material.
(*) Walden Bello é um acadêmico de sociologia e administração pública filipino, ex-deputado em seu país e ex-coordenador da ONG internacional Focus on the Global South. O artigo foi publicado em 25/3/2020, em:
https://www.counterpunch.org/2020/03/25/covid-19-and-the-death-of-connectivity/