O texto O autor como produtor, de Walter Benjamin, é um ensaio escrito em 1934, por ocasião de um conferência proferida pelo autor em Paris. O texto aborda a relação entre forma e conteúdo, refletindo sobre a relação do escritor (ou artista) com a sociedade. Benjamin aponta a diferença dos autores burgueses de esquerda (que se solidarizam com as questões da luta de classe no plano das ideias, mas não no plano da ação revolucionária) em relação aos autores progressistas e operativos (capazes de transformar os meios de produção).
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Il s'agit de gagner les intellectuels à la classe ouvrière, en leur faisant prendre conscience de l'identité de leurs démarches spirituelles et de leurs conditions de producteur.*
Ramon Fernandez
Conhecemos o tratamento reservado por Platão aos poetas em sua República. No interesse da comunidade, ele os exclui do Estado. Platão tinha um alto conceito do poder da poesia. Porém julgava-a prejudicial, supérflua numa comunidade perfeita, bem entendido. Desde então, a questão do direito à existência do poeta raramente tem sido colocada com essa ênfase; mas ela se coloca hoje. Não se coloca, em geral, nessa forma. Mas a questão vos é mais ou menos familiar sob a forma do problema da autonomia do autor: sua liberdade de escrever o que quiser. Em vossa opinião, a situação social contemporânea o força a decidir a favor de que causa colocará sua atividade. O escritor burguês, que produz obras destina das à diversão, não reconhece essa alternativa. Vós lhe demonstrais que, sem o admitir, ele trabalha a serviço de certos interesses de classe. O escritor progressista conhece essa alternativa. Sua decisão se dá no campo da luta de classes, na qual se coloca ao lado do proletariado. É o fim de sua autonomia. Sua atividade é orientada em função do que for útil ao proletariado, na luta de classes. Costuma-se dizer que ele obedece a uma tendência.
Eis a palavra de ordem. Em torno dela, há muito se trava um debate, que vos é familiar. Como ele vos é familiar, sabeis também que esse debate tem sido estéril. Ele não conseguiu libertar-se da enfadonha dicotomia por um lado por outro lado: por um lado devemos exigir que o autor siga a tendência correta, e por outro lado temos direito de exigir que sua produção seja de boa qualidade. Essa fórmula é atualmente insuficiente, na medida em que não conhecemos a verdadeira relação existente entre os dois fatores: tendência e qualidade. Obviamente, podemos postular, por decreto, a natureza dessa relação. Podemos dizer que uma obra caracterizada pela tendência justa não precisa ter qualquer outra qualidade. Podemos também decretar que uma obra caracterizada pela tendência justa deve ter necessariamente todas as outras qualidades.
A segunda formulação não é desinteressante. Mais do que isso: ela é verdadeira. Não hesito em aderir a ela. Mas, ao fazê-lo, recuso-me a aceitá-la como decreto. A afirmação deve ser provada. É para essa prova que rogo vossa atenção. Objetareis talvez que se trata de um tema excessivamente especializado, e mesmo acadêmico. Como promover, com essa prova, o conhecimento do fascismo? E, no entanto, é exatamente o que me proponho a fazer. Pois espero mostrar-vos que o conceito de tendência, na forma rudimentar em que ele aparece naquele debate, é um instrumento inteiramente inadequado para a crítica literária politicamente orientada. Pretendo mostrar-vos que a tendência de uma obra literária só pode ser cor reta do ponto de vista político quando for também correta do ponto de vista literário. Isso significa que a tendência politicamente correta inclui uma tendência literária. Acrescento imediatamente que é essa tendência literária, e nenhuma outra, contida implícita ou explicitamente em toda tendência política correta, que determina a qualidade da obra. Portanto, a tendência política correta de uma obra inclui sua qualidade literária, porque inclui sua tendência literária.
Creio poder prometer-vos que essa afirmação se tornará mais clara a seguir. No momento, reconheço que poderia ter escolhido outro ponto de partida. Parti do debate estéril sobre a relação entre a tendência e a qualidade de uma obra literária. Poderia ter partido do debate ainda mais antigo e não menos estéril sobre a relação entre forma e conteúdo, sobretudo na literatura política. Essa problemática não tem hoje boa reputação, e com toda justiça. Ela é considerada o caso exemplar da tentativa de abordar fenômenos literários de modo antidialético, através de estereótipos. Bem. Mas qual seria o tratamento dialético da mesma questão?
O tratamento dialético dessa questão, e com isso entro em meu tema, não pode de maneira alguma operar com essa coisa rígida e isolada: obra, romance, livro. Ele deve situar esse objeto nos contextos sociais vivos. Direis, com razão, que nossos companheiros o fizeram repetidamente. É verdade. Somente, muitas dessas tentativas partiram diretamente para grandes perspectivas, e com isso permaneceram vagas. Sabemos que as relações sociais são condicionadas pelas relações de produção. Quando a crítica materialista abordava uma obra, costumava perguntar como ela se vinculava as relações sociais de produção da época. É uma pergunta importante. Mas é também uma pergunta difícil. Sua resposta não é sempre inequívoca. Gostaria, por isso, de propor uma pergunta mais imediata. Uma pergunta mais modesta, de voo mais curto, mas que em minha opinião oferece melhores perspectivas de ser respondida. Em vez de perguntar: como se vincula uma obra com as relações de produção da época? É compatível com elas, e portanto reacionária, ou visa sua transformação, e portanto é revolucionária? – em vez dessa pergunta, ou pelo menos antes dela, gostaria de sugerir-vos outra. Antes, pois, de perguntar como uma obra literária se situa no tocante as relações de produção da época, gostaria de perguntar: como ela se situa dentro dessas relações? Essa pergunta visa imediatamente a função exercida pela obra no interior das relações literárias de produção de uma época. Em outras palavras, ela visa de modo imediato a técnica literária das obras.
Designei com o conceito de técnica aquele conceito que torna os produtos literários acessíveis a uma análise imediatamente social, e portanto a uma análise materialista. Ao mesmo tempo, o conceito de técnica representa o ponto de partida dialético para uma superação do contraste infecundo entre forma e conteúdo. Além disso, o conceito de técnica pode ajudar-nos a definir corretamente a relação entre tendência e qualidade, mencionada no início. Se em nossa primeira formulação dissemos que a tendência política correta de uma
obra inclui sua qualidade literária, porque inclui sua tendência literária, é possível agora dizer, mais precisamente, que essa tendência literária pode consistir num progresso ou num retrocesso da técnica literária.
Certamente terei vossa aprovação se passar agora, de modo só aparentemente abrupto, para condições literárias muito concretas: as russas. Gostaria de pedir vossa atenção para Sergei Tretiakov, e para o tipo do escritor "operativo", por ele definido e personificado. Esse escritor operativo proporciona o exemplo mais tangível da interdependência funcional que existe sempre entre a tendência política correta e a técnica literária progressista. É apenas um exemplo: reservo-me o direito de mencionar outros. Tretiakov distingue entre o escritor operativo e o informativo. A missão do primeiro não é relatar, mas combater, não ser espectador, mas participante ativo. Tretiakov ilustra essa missão com episódios autobiográficos. Quando na época da coletivização total da agricultura, em 1928, foi anunciada a palavra de ordem: "Escritores aos colcoses!", ele viajou para a comuna Farol Comunista e em duas longas estadias realizou os seguintes trabalhos: convoca ção de comícios populares, coleta de fundos para a aquisição de tratores, tentativas de convencer os camponeses individuais a aderirem aos colcoses, inspeção de salas de leituras, criação de jornais murais e direção do jornal do colcós, reportagens em jornais de Moscou, introdução de rádios e de cinemas itinerantes, etc. Não é surpreendente que o livro Os generais, redigido por Tretiakov depois dessas atividades, tenha exercido uma forte influência sobre o desenvolvimento posterior da economia coletivizada.
Podeis admirar Tretiakov e, no entanto, julgar que seu exemplo não é muito significativo em nosso contexto atual. Os trabalhos que ele realizou, direis, são os de um jornalista ou de um propagandista, e pouco têm a ver com a literatura. Ora, escolhi o exemplo de Tretiakov deliberadamente para mostrar-vos como é vasto o horizonte a partir do qual temos que repensar a ideia de formas ou gêneros literários em função dos fatos técnicos de nossa situação atual, se quisermos alcançar as formas de expressão adequadas às energias literárias do nosso tempo. Nem sempre houve romances no passado, e eles não precisarão existir sempre, o mesmo ocorrendo com as tragédias e as grandes epopéias. Nem sempre as formas do comentário, da tradução e mesmo da chamada falsificação tiveram um caráter literário marginal: elas ocuparam um lugar importante na Arábia e na China, não somente nos textos filosóficos como literários. Nem sempre a retórica foi uma forma insignificante: ela imprimiu seu selo em grandes províncias da literatura antiga. Lembro tudo isso para transmitir-vos a idéia de que estamos no centro de um grande pro cesso de fusão de formas literárias, no qual muitas oposições habituais poderiam perder sua força. Darei um exemplo para ilustrar a esterilidade dessas oposições e a possibilidade de sua superação dialética. Nossa fonte continuará sendo Tretiakov. O exemplo é o jornal.
"Várias oposições, na literatura, que em épocas mais afortunadas se fertilizavam reciprocamente, transformaram se em antinomias insolúveis", escreve um autor de esquerda. “Assim há uma disjunção desordenada entre a ciência e as belas letras, entre a crítica e a produção, entre a cultura e a política. O jornal é o cenário dessa confusão literária. Seu conteúdo é a matéria, alheia a qualquer forma de organização que não seja a que lhe é imposta pela impaciência do leitor. Essa impaciência não é só a do político, que espera uma informação, ou a do especulador, que espera uma indicação, mas, atrás delas, a impaciência dos excluídos, que julgam ter direito a manifestar-se em defesa dos seus interesses. O fato de que nada prende tanto o leitor a seu jornal como essa impa ciência, que exige uma alimentação diária, foi há muito utilizado pelos redatores, que abrem continuamente novas seções, para satisfazer suas perguntas, opiniões e protestos. Com a assimilação indiscriminada dos fatos cresce também a assimilação indiscriminada dos leitores, que se veem instantaneamente elevados à categoria de colaboradores. Mas há um ele mento dialético nesse fenômeno: o declínio da dimensão literária na imprensa burguesa revela-se a fórmula de sua renovação na imprensa soviética. Na medida em que essa dimensão ganha em extensão o que perde em profundidade, a distinção convencional entre o autor e o público, que a imprensa burguesa preserva artificialmente, começa a desaparecer na imprensa soviética. Nela, o leitor está sempre pronto, igual mente, a escrever, descrever e prescrever. Como especialista - se não numa área de saber, pelo menos no cargo em que exerce suas funções, ele tem acesso à condição de autor. O próprio mundo do trabalho toma a palavra. A capacidade de descrever esse mundo passa a fazer parte das qualificações exigidas para a execução do trabalho. O direito de exercer a profissão literária não mais se funda numa formação especializada, e sim numa formação politécnica, e com isso trans forma-se em direito de todos. Em suma, é a literalização das condições de vida que resolve as antinomias, de outra forma insuperáveis, e é no cenário em que se dá a humilhação mais extrema da palavra - o jornal - que se prepara a sua redenção."
Espero ter demonstrado que a tese do intelectual como produtor precisa recorrer ao exemplo da imprensa. Porque é nela, pelo menos na soviética, que se percebe que o processo de fusão, já mencionado, não somente ultrapassa as distinções convencionais entre os gêneros, entre ensaístas e ficcionistas, entre investigadores e vulgarizadores, mas questiona a própria distinção entre autor e leitor. Nesse processo, a imprensa é a instância decisiva, e por isso é dela que tem que partir qual quer análise do intelectual como produtor. Mas não podemos demorar-nos excessivamente nessa instância. Porque na Europa Ocidental a imprensa não constitui um instrumento de produção válido nas mãos do escritor. Ela pertence ainda ao capital. Mas, como por um lado o jornal representa, do ponto de vista técnico, a posição mais importante a ser ocupada pelo escritor, e por outro lado ela é controlada pelo inimigo, não é de admirar que o escritor encontre as maiores dificuldades para compreender seu condicionamento social, seu arsenal técnico e suas tarefas políticas. Um dos fenômenos mais decisivos dos últimos dez anos foi o fato de que um segmento considerável da inteligência alemã, sob a pressão das circunstâncias econômicas, experimentou, ao nível das opiniões, um desenvolvimento revolucionário sem, no entanto, poder pensar de um ponto de vista realmente revolucionário seu próprio trabalho, sua relação com os meios de produção e sua técnica. Estou me referindo, é óbvio, à chamada inteligência de esquerda, e limito-me aqui à fração que podemos designar como inteligência burguesa de esquerda. Os movimentos político literários mais importantes surgidos na Alemanha no último decênio partiram dessa fração. Seleciono dois desses movimentos, o "Ativismo" e a "Nova Objetividade", para mostrar que a tendência política, por mais revolucionária que pareça, está condenada a funcionar de modo contrarrevolucionário enquanto o escritor permanecer solidário com o proletariado somente ao nível de suas convicções, e não na qualidade de produtor.
A palavra de ordem que resume as exigências do "Ativismo" é logocracia, ou reinado da inteligência. A expressão pode ser facilmente traduzida por "reinado dos intelectuais" (Geistige). Com efeito, o conceito de intelectual ganhou terreno no campo da inteligência de esquerda e domina seus manifestos políticos, de Heinrich Mann a Döblin. Podemos observar imediatamente que esse conceito foi cunhado sem levar em conta a posição da inteligência no processo produtivo. O teórico do ativismo, Hiller, não concebe os intelectuais como “membros de certos ramos profissionais", mas como "representantes de um certo tipo caracteriológico". Esse tipo caracteriológico se situa naturalmente, enquanto tal, entre as classes. Abrange um número arbitrário de existências privadas sem oferecer a mínima base para sua organização. Quando Hiller repudia a figura do líder partidário, ele admite que esse líder tem muitas qualidades; ele pode "ser mais bem informado em temas importantes... falar uma linguagem mais próxima do povo... combater mais corajosamente" que o intelectual, mas uma coisa é certa: "ele pensa deficitariamente". É provável, porém de que serve isso, se do ponto de vista político o que conta não é o pensamento individual, mas a arte de pensar na cabeça dos outros, como disse Brecht? O ativismo tentou substituir a dialética materialista pela categoria, indeterminável em termos de classe, de senso comum. Seus intelectuais representam, na melhor das hipóteses, um estamento. Em outras palavras: o princípio utilizado para definir essa coletividade é reacionário; não é de admirar, portanto, que ela não haja nunca exercido uma influência revolucionária.
Mas o princípio desastroso que serviu para constituir tal coletividade continua vivo. Pudemos dar-nos conta disso quando apareceu, há três anos, Wissen und Verändern (Saber e mudar), de Döblin. Esse texto surgiu, como se sabe, a título de resposta à pergunta de um jovem – Döblin o chama Sr. Hocke - que se dirigiu ao célebre autor com a pergunta: "O que fazer?". Döblin o convida a aderir à causa socialista, mas sob condições problemáticas. O socialismo, segundo Döblin, significa "liberdade, união espontânea dos homens, recusa de toda coação, indignação contra a injustiça e a violência, humanidade, tolerância, opiniões pacíficas". Qualquer que seja a validade dessa definição, Döblin faz de tal socialismo uma arma contra o movimento operário radical. Segundo Döblin, "não se pode extrair de uma coisa nada que já não esteja nela; de uma luta de classes homicida pode sair justiça, mas não socialismo". Döblin formula do seguinte modo a recomendação feita a Hocke, por essas razões e outras semelhantes: "Seu sim de princípio ao combate (do proletariado) só terá validade se, meu caro Senhor, se o Senhor não se alistar em suas fileiras. O Senhor deve contentar-se em aprovar esse combate, com emoção e tristeza, mas se fizesse mais do que isso, deixa ria vaga uma posição de enorme importância...: a posição do comunismo primitivo, que se resume na liberdade individual do homem, na solidariedade espontânea, na fraternidade dos homens... Essa posição, prezado Senhor, é a única que lhe compete". Vemos aqui aonde conduz à concepção do "intelectual" como um tipo definido por suas opiniões, convicções e disposições, e não por sua posição no processo produtivo. Com diz Döblin, ele deve encontrar seu lugar ao lado do proletariado. Que lugar é esse? O lugar de um protetor, de um mecenas ideológico. Um lugar impossível. E assim voltamos à tese inicial: o lugar do intelectual na luta de classes só pode ser determinado, ou escolhido, em função de sua posição no processo produtivo.
Brecht criou o conceito de "refuncionalização" para caracterizar a transformação de formas e instrumentos de produção por uma inteligência progressista e, portanto, interessada na liberação dos meios de produção, a serviço da luta de classes. Brecht foi o primeiro a confrontar o intelectual com a exigência fundamental: não abastecer o aparelho de produção, sem o modificar, na medida do possível, num sentido socialista. No prefácio de Versuche (Ensaios), esclarece Brecht: "a publicação deste texto ocorre num momento em que certos trabalhos não devem mais corresponder a experiências individuais, com o caráter de obras, e sim visar a utilização (reestruturação) de certos institutos e instituições". O que se pro põe são inovações técnicas, e não uma renovação espiritual, como proclamam os fascistas. Voltarei mais adiante a essas inovações técnicas. Limito-me aqui a aludir à diferença essencial que existe entre abastecer um aparelho produtivo e modificá-lo. E gostaria, ao iniciar minhas reflexões sobre a "Nova Objetividade", de afirmar que abastecer um aparelho produtivo sem ao mesmo tempo modificá-lo, na medida do possível, seria um procedimento altamente questionável mesmo que os materiais fornecidos tivessem uma aparência revolucionaria. Sabemos, e isso foi abundantemente demonstrado nos últimos dez anos, na Alemanha, que o aparelho burguês de produção e publicação pode assimilar uma surpreendente quantidade de temas revolucionários, e até mesmo propagá-los, sem colocar seriamente em risco sua própria existência e a existência das classes que o controlam. Isso continuará sendo verdade enquanto esse aparelho for abastecido por escritores rotineiros, ainda que socialistas. Defino o escritor rotineiro como o homem que renuncia por princípio a modificar o aparelho produtivo a fim de romper sua ligação com a classe dominante, em benefício do socialismo. Afirmo ainda que uma parcela substancial da chamada literatura de esquerda não exerceu outra função social que a de extrair da situação política novos efeitos, para entreter o público. Isso me traz ao tema da "Nova Objetividade". Ela lançou a moda da reportagem. A questão é a seguinte: a quem serviu essa técnica?
Para maior clareza, coloco em primeiro plano a forma fotográfica dessa técnica. O que for válido para ela pode ser transposto para a forma literária. Ambas devem seu ímpeto excepcional à técnica da publicação: o rádio e a imprensa ilustrada. Pense-se no dadaísmo. A força revolucionária do dadaísmo estava em sua capacidade de submeter a arte à prova da autenticidade. Os autores compunham naturezas-mortas com o auxílio de bilhetes, carretéis, pontas de cigarro, aos quais se associavam elementos pictóricos. O conjunto era posto numa moldura. O objeto era então mostrado ao público: vejam, a moldura faz explodir o tempo; o menor fragmento autêntico da vida diária diz mais que a pintura. Do mesmo modo, a impressão digital ensanguentada de um assassino, na página de um livro, diz mais que o texto. A fotomontagem preservou muitos desses conteúdos revolucionários. Basta pensar nos trabalhos de John Heartfield, cuja técnica trans formou as capas de livros em instrumentos políticos. Mas acompanhemos um pouco mais longe a trajetória da fotografia. Que vemos? Ela se torna cada vez mais matizada, cada vez mais moderna, e o resultado é que ela não pode mais fotografar cortiços ou montes de lixo sem transfigurá-los. Ela não pode dizer, de uma barragem ou de uma fábrica de cabos, outra coisa senão: o mundo é belo. Este é o título do conhecido livro de imagens de Renger-Patsch, que representa a fotografia da "Nova Objetividade" em seu apogeu. Em outras palavras, ela conseguiu transformar a própria miséria em objeto de fruição, ao captá-la segundo os modismos mais aperfeiçoados. Porque, se uma das funções econômicas da foto grafia é alimentar as massas com certos conteúdos que antes ela estava proibida de consumir - a primavera, personalidades eminentes, países estrangeiros — através de uma elaboração baseada na moda, uma de suas funções políticas é a de renovar, de dentro, o mundo como ele é -- em outras palavras, segundo os critérios da moda.
Temos aqui um exemplo extremo do que significa abas tecer um aparelho produtivo sem modificá-lo. Modificá-lo significaria derrubar uma daquelas barreiras, superar uma daquelas contradições que acorrentam o trabalho produtivo da inteligência. Nesse caso, trata-se da barreira entre a escrita e a imagem. Temos que exigir dos fotógrafos a capacidade de co locar em suas imagens legendas explicativas que as liberem da moda e lhes confiram um valor de uso revolucionário. Mas só poderemos formular convincentemente essa exigência quando nós, escritores, começarmos a fotografar. Também aqui, para o autor como produtor o progresso técnico é um fundamento do seu progresso político. Em outros termos: somente a superação daquelas esferas compartimentalizadas de competência no processo da produção intelectual, que a concepção burguesa considera fundamentais, transforma essa produção em algo de politicamente válido; além disso, as barreiras de competência entre as duas forças produtivas — a material e a intelectual -, erigidas para separá-las, precisam ser derrubadas conjuntamente. O autor como produtor, ao mesmo tempo que se sente solidário com o proletariado, sente-se solidário, igual mente, com certos outros produtores, com os quais antes não parecia ter grande coisa em comum. Mencionei a fotografia; acrescentarei agora uma palavra sobre a música, baseada num depoimento de Eisler. “Também na evolução musical, tanto na esfera da produção como da reprodução, temos que reconhecer um processo de racionalização cada vez mais rápido... O disco, o cinema sonoro, o automático musical, podem... fazer circular obras-primas da música em conserva, como mercadorias. Esse processo de racionalização tem como consequência que a produção musical.se limita a grupos cada vez menores, mas também cada vez mais qualificados. A crise da música de concerto é a crise de uma forma produtiva obsoleta, superada por novas invenções técnicas." A tarefa consistia, portanto, em refuncionalizar a forma-concerto, mediante duas condições: primeiro, eliminar a oposição entre intérprete e ouvinte, e segundo, eliminar a oposição entre técnica e conteúdo. A esse respeito, Eisler faz a instrutiva observação: **Devemos guardar-nos de sobrevalorizar a música orquestral, considerando-a a única arte elevada. Somente no capitalismo a música sem palavras teve tanta significação e conheceu uma difusão tão ampla". Ou seja, a tarefa de trans formar o concerto não é possível sem a cooperação da palavra. Somente ela, como diz Eisler, pode transformar um concerto num comício político. Brecht e Eisler provaram, com a peça didática Die Massnahme (As medidas), que essa transformação pressupõe um altíssimo nível da técnica musical e literária.
Se voltarmos agora ao processo de fusão das formas literárias, mencionado no início, veremos como a fotografia, a música e outros elementos, que não conhecemos ainda, mergulham naquela massa líquida incandescente com a qual serão fundidas as novas formas. Somente a literalização de todas as relações vitais permite dar uma ideia exata do alcance desse processo de fusão, do mesmo modo que é o nível da luta de classes que determina a temperatura na qual se dá a fusão, de modo mais ou menos completo.
Aludi ao procedimento de um certo modismo fotográfico, que faz da miséria um objeto de consumo. Comentando agora a "Nova Objetividade" como movimento literário, darei um novo passo, dizendo que ela transformou em objeto de consumo a luta contra a miséria. De fato, em muitos casos sua significação política esgotou-se na transformação de reflexos revolucionários, assim que eles afloravam na burguesia, em objetos de diversão, de distração, facilmente absorvíveis pelos cabarés das grandes cidades. O que caracteriza essa literatura é a metamorfose da luta política, de vontade de decidir em objeto de prazer contemplativo, de meio de produção em artigo de consumo. Um crítico perspicaz ilustrou esse fenômeno tomando como exemplo Erich Kästner: "Essa inteligência radical de esquerda nada tem a ver com o movimento operário. Como sintoma de desagregação burguesa, ela é a contrapartida da mímica feudal, que o Império admirou no tenente de reserva. Os publicistas radicais de esquerda, do gênero de um Kästner, Mehring ou Tucholsky, são a mímica proletária da burguesia decadente. Sua função política é gerar cliques, e não partidos, sua função literária é gerar modas, e não escolas, sua função econômica é gerar intermediários, e não produtores. Intermediários ou profissionais da rotina, fazendo despesas extravagantes com sua pobreza e transformando numa festa sua vacuidade abissal. Nunca ninguém se acomodou tão confortavelmente numa situação tão inconfortável".
Essa escola, como disse, fez despesas extravagantes com sua pobreza. Ela se esquivou, com isso, à tarefa mais urgente do escritor moderno: chegar à consciência de quão pobre ele é e de quanto precisa ser pobre para poder começar de novo. Porque é disso que se trata. O Estado soviético não expulsará os poetas, como o platônico, mas lhes atribuirá tarefas – e por isso mencionei no início a República de Platão - incompatíveis com o projeto de ostentar em novas "obras-primas" a pseudo-riqueza da personalidade criadora. Esperar uma renovação no sentido de tais personalidades e tais obras é um privilégio do fascismo, capaz de formulações estúpidas como aquelas com que Günther Gründel conclui sua rubrica literária, em Missão das jovens gerações: "Podemos terminar... essa visão panorâmica com a observação de que o Wilhelm Meister e o Grüne Heinrich de nossa geração até hoje não foram escritos". O autor consciente das condições da produção intelectual contemporânea está muito longe de esperar o advento de tais obras, ou de desejá-lo. Seu trabalho não visa nunca a fabricação exclusiva de produtos, mas sempre, ao mesmo tempo, a dos meios de produção. Em outras palavras: seus produtos, lado a lado com seu caráter de obras, devem ter, antes de mais nada, urna função organizadora. Sua utilidade organizacional não precisa de modo algum limitar-se à propaganda. A tendência, em si, não basta. O excelente Lichtenberg já o disse: não importam as opiniões que temos, e sim o que essas opiniões fazem de nós. E verdade que as opiniões são importantes, mas as melhores não têm nenhuma utilidade quando não tornam úteis aqueles que as defendem. A melhor tendência é falsa quando não prescreve a atitude que o escritor deve adotar para concretizar essa tendência. E o escritor só pode prescrever essa atitude em seu próprio trabalho: escrevendo. A tendência é uma condição necessária, mas não suficiente, para o desempenho da função organizatória da obra. Esta exige, além disso, um comportamento prescritivo, pedagógico, por parte do escritor. Essa exigência é hoje mais imperiosa que nunca. Um escritor que não ensina outros escritores não ensina ninguém. O caráter modelar da produção - é, portanto, decisivo: em primeiro lugar, ela deve orientar outros produtores em sua produção e, em segundo lugar, precisa colocar à disposição deles um aparelho mais perfeito. Esse aparelho é tanto melhor quanto mais conduz consumidores à esfera da produção, ou seja, quanto maior for sua capacidade de transformar em colaboradores os leitores ou espectadores. Já possuímos um modelo desse gênero, do qual só posso falar aqui rapidamente. É o teatro épico de Brecht.
As tragédias e óperas continuam sendo escritas e parecem ter à sua disposição um aparelho teatral de eficácia com provada, quando na verdade essas obras nada mais fazem que abastecer um aparelho que se torna cada dia mais vulnerável. “Essa falta de clareza sobre sua situação", diz Brecht, "que hoje predomina entre músicos, escritores e críticos, acarreta consequências graves, que não são suficientemente considera das. Acreditando possuir um aparelho que na realidade os possui, eles defendem esse aparelho, sobre o qual não dispõem de qualquer controle e que não é mais, como supõem, um instrumento a serviço do produtor, e sim um instrumento contra o produtor." Esse teatro de máquinas complicadas, com inúmeros figurantes, com efeitos refinados, transformou-se em instrumento contra o produtor, entre outras razões, porque tenta induzir os produtores a empenhar-se numa concorrência inútil com o cinema e o rádio. Esse teatro, seja o que está a serviço da cultura, seja o que está a serviço da diversão - eles são complementares — é o de uma camada social saturada, que transforma em excitações tudo o que toca. Sua causa é uma causa perdida. Não assim um teatro que, em vez de competir com esses novos instrumentos de difusão, procura aplicá-los e aprender com eles, em suma, confronta-se com esses veículos. O teatro épico transformou esse confronto em coisa sua. É o verdadeiro teatro do nosso tempo, pois está à altura do nível de desenvolvimento hoje alcançado pelo cinema e pelo rádio.
Para os fins desse confronto, Brecht limitou-se aos elementos mais primitivos do teatro. Num certo sentido, contentou-se com uma tribuna. Renunciou a ações complexas. Conseguiu, assim, modificar a relação funcional entre o palco e o público, entre o texto e a representação, entre o diretor e os atores. O teatro épico, disse ele, não se propõe desenvolver ações. Mas representar condições. Ele atinge essas condições, como veremos mais tarde, na medida em que interrompe a ação. Recordem-se as canções, cuja principal tarefa é interromper a ação. Com o princípio da interrupção, o teatro épico adota um procedimento que se tornou familiar para nós, nos últimos anos, com o desenvolvimento do cinema e do rádio, da imprensa e da fotografia. Refiro-me ao procedimento da montagem: pois o material montado interrompe o contexto no qual é montado. Peço-vos licença para mostrar que esse procedimento tem aqui uma justificativa especial, e mesmo uma justificativa perfeita.
A interrupção da ação, que levou Brecht a caracterizar seu teatro como épico, combate sistematicamente qualquer ilusão por parte do público. Essa ilusão é inutilizável para um teatro que se propõe tratar os elementos da realidade no sentido de um ordenamento experimental. Porém as condições surgem no fim dessa experiência, e não no começo. De uma ou de outra forma, tais condições são sempre as nossas. Elas não são trazidas para perto do espectador, mas afastadas dele. Ele as reconhece como condições reais, não com arrogância, como no teatro naturalista, mas com assombro. O teatro épico, portanto, não reproduz as condições, ele as descobre. A descoberta das condições se efetua por meio da interrupção das sequências. Mas a interrupção não se destina a provocar uma excitação, e sim a exercer uma função organizadora. Ela imobiliza os acontecimentos e com isso obriga o espectador a tomar uma posição quanto à ação, e o ator, a tomar uma posição quanto ao seu papel. Mostrarei, com um exemplo, como em sua seleção e tratamento dos gestos Brecht limita-se a transpor os métodos da montagem, decisivos para o rádio e para o cinema, transformando um artifício frequentemente condicionado pela moda em um processo puramente humano. Imaginemos uma cena de família: a mulher está segurando um objeto de bronze, para jogá-lo em sua filha; o pai está abrindo a janela, para pedir socorro. Nesse momento, entra um estranho. A sequência é interrompida; o que aparece em seu lugar é a situação com que se depara o olhar do estranho: fisionomias transtornadas, janela aberta, mobiliário destruí do. Mas existe um olhar diante do qual mesmo as cenas mais habituais da vida contemporânea têm esse aspecto. E o olhar do dramaturgo épico.
Ele opõe ao drama baseado no conceito da obra de arte total o laboratório dramático. Recorre, de uma nova maneira, ao velho privilégio do teatro - o privilégio de expor os presentes. O homem está no centro de suas experiências. O homem contemporâneo: reduzido, conservado em gelo num ambiente glacial. Porém como é o único à nossa disposição, temos interesse em conhecê-lo. Ele é sujeito a provas e a exames periciais. O resultado é o seguinte: o acontecimento não é transformável em seus momentos altos, pela virtude e pela decisão, mas unicamente em seu fluxo rigorosamente habitual, pela razão e pela prática. O sentido do teatro épico é construir o que a dramaturgia aristotélica chama de "ação" a partir dos elementos mais minúsculos do comportamento. Seus meios e seus fins são mais modestos que os do teatro tradicional. Seu objetivo não é tanto alimentar o público com sentimentos, ainda que sejam de revolta, quanto aliená-lo sistematicamente, pelo pensamento, das situações em que vive. Observe-se de passagem que não há melhor ponto de partida para o pensamento que o riso. As vibrações físicas produzidas pelo riso oferecem melhores ocasiões para o pensamento que as vibrações da alma. O teatro épico só é luxuriante nas ocasiões que oferece para o riso.
Talvez tenha chamado vossa atenção o fato de que as observações que estou a ponto de concluir só imponham ao escritor uma exigência, que é a reflexão: refletir sobre sua posição no processo produtivo. Podemos ter certeza de que essa reflexão levará os escritores importantes, isto é, os melhores técnicos do ramo, cedo ou tarde, a manifestar sua solidariedade com o proletariado do modo mais sóbrio possível. Gostaria de documentar essa afirmação com um exemplo atual, extraído de uma pequena passagem do jornal francês Commune. O jornal organizou um inquérito em torno do tema: "Para quem V. escreve?". Cito a resposta de René Maublanc, assim como o comentário de Aragon, a seguir. "Sem dúvida", diz Maublanc, "escrevo quase exclusivamente para o público burguês. Em primeiro lugar, porque tenho que fazê-lo (aqui Maublanc se refere a suas obrigações como professor de ginásio) e, em segundo lugar, porque sou de origem burguesa, de educação burguesa e venho de um meio burguês, e, por isso, tenho uma tendência natural a dirigir-me à classe a que pertenço, que conheço melhor e que posso entender melhor. Mas isso não significa que escrevo para agradar a essa classe, ou para apoiá-la. Estou convencido, por um lado, de que a revolução proletária é necessária e desejável, e por outro lado de que ela será tanto mais fácil, bem-sucedida e incruenta quanto mais fraca for a resistência da burguesia... O proletariado precisa hoje de aliados no campo da burguesia do mesmo modo que no século XVIII a burguesia precisava de aliados no campo feudal. Gostaria de estar entre esses aliados."
Aragon comenta esse trecho: "Nosso camarada alude aqui a um fato que diz respeito a grande número de escritores contemporâneos. Nem todos têm a mesma coragem de olhar de frente esse fato... São raros os que têm tanta clareza sobre sua situação como René Maublanc. Mas é justamente desses escritores que devemos exigir mais... Não basta enfraquecer a burguesia de dentro, é necessário combatê-la junto com o proletariado... René Maublanc e muitos dos nossos amigos escritores, que ainda hesitam, têm à sua frente o exemplo dos escritores soviéticos, que se originaram da burguesia russa e que, no entanto, se tornaram pioneiros da construção socialista".
São as palavras de Aragon. Mas como esses escritores se tornaram pioneiros? Não sem lutas amargas, não sem conflitos extremamente difíceis. As reflexões que vos apresentei tentam tirar uma lição dessa experiência. Elas se baseiam no conceito que contribuiu decisivamente para esclarecer o debate em torno da atitude dos intelectuais russos: o conceito do especialista. A solidariedade do especialista com o proletariado - e é aqui que deve começar esse processo de esclarecimento - não pode deixar de ser altamente mediatizada. Os ativistas e os partidários da "Nova Objetividade" podem dizer o que quiserem: não podem ignorar o fato de que mesmo a proletarização do intelectual quase nunca faz dele um proletário. Por quê? Porque a classe burguesa pôs à sua disposição, sob a forma da educação, um meio de produção que o torna solidário com essa classe e, mais ainda, que torna essa classe solidária com ele devido ao privilégio educacional. Por isso, Aragon tem razão quando afirma, em outro contexto: "o intelectual revolucionário aparece, antes de mais nada, como um trai dor à sua classe de origem". No escritor, essa traição consiste num comportamento que o transforma de fornecedor do aparelho de produção intelectual em engenheiro que vê sua tarefa na adaptação desse aparelho aos fins da revolução proletária. Sua ação é assim de caráter mediador, mas ela libera o intelectual daquela tarefa puramente destrutiva a que Maublanc muitos dos seus companheiros acham necessário confiná-lo. Consegue promover a socialização dos meios de produção intelectual? Vislumbra caminhos para organizar os trabalhadores no próprio processo produtivo? Tem propostas para a refuncionalização do romance, do drama, da poesia? Quanto mais completamente o intelectual orientar sua atividade em função dessas tarefas, mais correta será a tendência, e mais elevada, necessariamente, será a qualidade técnica do seu trabalho. Por outro lado, quanto mais exatamente conhecer sua posição no processo produtivo, menos se sentirá tentado a apresentar se como intelectual puro (Geistiger). A inteligência que fala em nome do fascismo deve desaparecer. A inteligência que o enfrenta, confiante em suas próprias forças miraculosas, há de desaparecer. Porque a luta revolucionária não se trava entre o capitalismo e a inteligência, mas entre o capitalismo e o proletariado.
1934
* Trata-se de conquistar os intelectuais para a classe trabalhadora, fazendo-os tomarem consciência da identidade de suas abordagens espirituais e de sua condição de produtores.