A direita contemporânea herdou dois impulsos aparentemente contraditórios da era neoliberal: a política antidemocrática e uma ética pessoal libertária. Wendy Brown, autora de Nas ruínas do neoliberalismo, aborda esse assunto na entrevista abaixo.
Rafael Khachaturian entrevista Wendy Brown, Nueva Sociedad, Maio/2022. A tradução é do Cepat.
Grande parte de seu trabalho recente se concentrou em analisar o neoliberalismo como uma forma específica de razão normativa e de governo, um resultado da modernidade capitalista que não pode ser reduzido a ela. O que considera que mudou na ordem neoliberal, desde que você publicou ‘Undoing the Demos’? As atuais crises sociais, ambientais e políticas tornaram mais evidentes quais elementos da vida social se integraram plenamente à lógica do neoliberalismo e quais elementos não?
Sabemos que o neoliberalismo tem a ver com o desmantelamento do Estado social, a desregulamentação, a privatização, os impostos regressivos e a desconfiança em relação aos bens públicos, em prol de empreendimentos empresariais, privatizados e com fins lucrativos. No entanto, há duas outras coisas que quero mencionar.
Foucault, entre outros, nos ensinou a pensar no neoliberalismo como algo que ultrapassa um conjunto de políticas, muito mais como uma forma de razão governamental. Com isso, referia-se a uma forma de razão que molda nosso comportamento em todas as dimensões da vida, da educação ao atendimento à saúde, forma como pensamos o ócio, aposentadoria e mera sobrevivência.
Por exemplo, entendemos a educação como um bem orientado para a construção da democracia ou como um investimento feito por um indivíduo para melhorar seu capital humano? Ao conceber o neoliberalismo como forma de razão governamental, podemos compreender como orienta os indivíduos como sujeitos que investem em si mesmos.
Mas o neoliberalismo também refaz o Estado e a sociedade. Uma de suas características cruciais como forma de razão é a sua ideia do Estado como facilitador e sustentador da economia. O neoliberalismo muitas vezes é entendido como antiestatal, mas ao que se opõe é ao Estado regulador. O Estado é usado o tempo todo para sustentar ou criar mercados em determinados campos.
Isso está perfeitamente legitimado em uma ordem de coisas neoliberal. Mas é mais um Estado “desdemocratizado” do que um Estado representativo, um Estado onde a igualdade política entre os cidadãos se organiza em instituições e práticas através das quais nos governamos. O Estado é um administrador da vida econômica e do que, atualmente, costumamos chamar de vida biopolítica.
O neoliberalismo, como na célebre formulação de Margaret Thatcher (parafraseando Hayek), busca desintegrar a noção de sociedade ou de social. A famosa frase de Thatcher é: “A sociedade como tal não existe. Existem homens e mulheres individuais e existem famílias”. Em outras palavras, somos reduzidos a unidades individuais não ligadas, nem conectadas socialmente, seja em termos de ser responsáveis diante dos associados ou de enfrentar os poderes da sociedade (sejam eles os poderes do capital, raça, gênero e sexualidade). Só existem indivíduos, e nossa liberdade está em podermos fazer o que quisermos como indivíduos.
Aqui, existem duas coisas importantes para dizer sobre as mudanças mais recentes. Uma é o surgimento de formações e regimes de extrema direita, associados a personagens como Donald Trump, Recep Tayyip Erdoğan, Narendra Modi, Viktor Orbán e Jair Bolsonaro. Também vemos essas formações em mobilizações e partidos políticos no Norte e no Sul globais, mesmo onde não alcançaram o status de regimes governantes.
Essas formações populistas e nacionalistas são muitas vezes interpretadas como uma reação frente ao neoliberalismo porque se opõem à globalização e ao livre comércio e defendem o etnonacionalismo. Apresentam-se como opositores ao ideal imaginado pelo neoliberalismo: o fluxo absolutamente livre de bens, mão de obra e capital em todo o mundo.
Quero rebater essa ideia. William Callison e Quinn Slobodian afirmaram com razão que é um erro terrível ver esses regimes de direita como abertamente antineoliberais, como opostos a uma forma do que eles chamam de “neoliberalismo mutante”. Em Nas ruínas do neoliberalismo, argumento que é necessário compreender a força antidemocrática desses regimes de direita. Como mobilizações políticas, nascem em grande medida da racionalidade neoliberal. O que os distingue do fascismo clássico é que são autoritários no político e libertários no civil e pessoal.
Classifico isto como uma forma de liberalismo autoritário, que para muitas pessoas é uma contradição em termos. No entanto, penso que devemos vê-los como uma forma de liberalismo antidemocrático que valoriza as liberdades e os direitos individuais quase ilimitados, seja o direito a recusar obrigações sanitárias, o direito a comprar qualquer tipo de objeto que se almeje, independentemente da forma como destrua a Terra, e o direito de dizer o que se queira, sem se importar com o quão violento e prejudicial pode ser.
Essa herança libertária nos vem do neoliberalismo. Esses regimes de direita têm uma fé absoluta no capitalismo e um antissocialismo feroz, e subscrevem um estatismo autoritário herdado do ataque neoliberal à soberania popular e ao Estado democrático representativo.
Obviamente, a pandemia desafiou as premissas do que devem ser “o Estado” e “a economia” em uma ordem neoliberal. Em todos os lugares, apelou-se aos Estados, sejam de direita ou de esquerda, para que respondessem à pandemia, realizaram testes de saúde, forneceram vacinas etc. Nem os antivacinas se opõem radicalmente ao fornecimento pelo Estado. A pandemia forjou uma mistura de desencontrados desafios ao neoliberalismo. Contudo, não considero que tenha acabado com o neoliberalismo.
Por outro lado, temos o surgimento de movimentos sociais de esquerda que se opõem muito explicitamente à privatização e despolitização neoliberal. Por exemplo, nas eleições mais recentes no Chile, Gabriel Boric apresentou um programa antineoliberal e um referendo de 2020 estabeleceu a necessidade de uma nova Constituição dedicada a apagar o legado neoliberal da era Pinochet.
Em ‘Nas ruínas do neoliberalismo’, você caracteriza o neoliberalismo como facilitador da criação de um poder estatal antidemocrático vindo de cima e de uma cultura política antidemocrática vinda de baixo. Como esses dois processos se potencializam entre si e que contradições existem entre eles? Parece que esses novos movimentos de direita consideram correto utilizar o poder estatal para fins repressivos, sempre e quando seu poder não esteja direcionado a pessoas como eles, os membros da comunidade política e social supostamente autêntica, mas, sim, para o outro interno.
Eu diria que é um erro responsabilizar o neoliberalismo por tudo o que associamos à direita. Uma análise abrangente que sugira que o neoliberalismo está na raiz de todos os problemas sociais não nos ajudará a pensar sobre nossos dilemas atuais, das mudanças climáticas à política externa dos Estados Unidos, a ascensão da China, o apoio contínuo estadunidense à ocupação da Palestina etc.
Mas também é um erro não entender a estrutura ou o marco neoliberal de uma série de posições de direita, da atualidade, ou excluir completamente o neoliberalismo de nossa ideia de que, por exemplo, nos Estados Unidos está tudo bem fazer rondas contra os imigrantes, usar a brutalidade policial contra aqueles que não são brancos, usar a força do Estado de todas as formas para limpar cidades e bairros, e regular os corpos das mulheres. A questão é como esse traço antidemocrático do neoliberalismo, tanto no plano do Estado como do cidadão, condiciona a estrutura e a energia da direita.
Parece-me bastante significativo que, atualmente, quando o jornalismo fala em cidadania e eleição, na maioria das vezes utiliza a linguagem do eleitorado, em vez da linguagem do cidadão. É uma linguagem de eleitores que devem ser organizados, administrados, dirigidos, manipulados, criados e orientados, em vez de educados.
Penso que a deseducação da democracia neste momento crucial é fundamental para entender como se produz a desintegração da sociedade. Uma vez que a educação abandona a tarefa de criar uma democracia educada e se transforma em um investimento individual para se ter uma renda e um futuro, começa a perder a capacidade de educar os cidadãos para a cidadania. Em vez disso, produz-se a capacidade do poder – poder econômico, poder político, poder tecnológico, poder financeiro – para manipular, administrar e organizar aqueles que são considerados incapazes de ser cidadãos.
Agimos como se o voto – o direito ao voto e à legalidade – fosse o que constitui a cidadania. O que torna a cidadania valiosa em uma ordem democrática é que ela seja suficientemente reflexiva, deliberativa e educada para poder decidir com outras pessoas com quem devemos estar juntos e o que devemos fazer.
Devo acrescentar que hoje falamos de neoliberalismo e financeirização sem desarticulá-los. Está cada vez mais claro que, mesmo que o neoliberalismo fosse totalmente rejeitado por nações inteiras ou partes do mundo, não só como política econômica, mas como uma forma de governo da razão, ainda estaríamos lidando com as feras que soltou, entre elas, a desregulamentação do dinheiro e dos bancos.
A financeirização é tanto uma ordem dominante como uma forma de razão neoliberal, e que não foi prevista por Hayek, nem por qualquer um dos arquitetos neoliberais da Sociedade Mont Pèlerin. Mas é algo que nossa época pode ver claramente. The Asset Economy, de Lisa Adkins, Melinda Cooper e Martijn Konings, oferece a melhor discussão sobre esse assunto. É o melhor livro introdutório sobre como o capital financeiro está estruturando a política, a desigualdade e o futuro para o mundo todo.
Em que medida a direita teve sucesso em garantir um espaço autônomo a partir da lógica neoliberal predominante? Permanece fundada na mesma racionalidade social do neoliberalismo, embora com um outro registro?
Hoje, quando falamos de direita e esquerda, é extremamente importante vermos que ambas estão em total desordem. Pode parecer que a direita tem um projeto coerente porque o está desempenhando terrivelmente bem. Nós, na esquerda, perguntamos: com uma base demográfica cada vez menor e com esses idiotas em suas margens, como obteve tanto sucesso nas alavancas do poder: poder econômico, poder social, poder político?
Não pode ser só a Igreja evangélica, porque isso não nos ajuda a explicar outros casos, como a direita muçulmana ou a direita hindu, ou seja, a ascensão da direita para além dos Estados Unidos. E não pode ser apenas o neoliberalismo, porque o neoliberalismo rachou de diversas formas: a crise financeira, a pandemia e as contínuas recessões ressaltaram a necessidade óbvia do Estado.
É importante ver que não apenas a direita não é coerente, mas que existe uma incrível flutuação entre o investimento em canais globais de poder, especialmente o poder financeiro, e o nacionalismo apaixonado. Trump, como empresário de bens de raiz que transformou dívida e falência em riqueza, buscou construir um nacionalismo a partir do capital financeiro. Então, onde se localiza a direita em relação à globalização e à financeirização? Está buscando avançar no projeto de reafirmar os interesses nacionais e jogar duro por esses interesses.
Ao mesmo tempo, as melhores mentes da direita estão buscando se manter atualizadas sobre as formas como funcionam as finanças e outras forças internacionais e transnacionais. Não têm ilusões de poder voltar a colocar o gênio da globalização na lâmpada. O racismo e o etnonacionalismo fervoroso são uma forma de mobilizar uma base, mas os plutocratas da direita se movem entre um reavivamento nacionalista da política de poder, no cenário mundial, e um ajuste de contas com Davos como o futuro.
Em seu ensaio ‘We Are All Democrats Now’ [Agora somos todos democratas], destacou que um dos efeitos do neoliberalismo foi a cooptação e dissolução da linguagem da democracia. Agora, é um significante que pode ser usado para uma série de projetos políticos incompatíveis. Como as condições da emergência pandêmica e climática influenciaram suas reflexões sobre este assunto? A “democracia” - ou, nesse caso, termos relacionados como soberania popular, socialismo e comunismo - pode ser recuperada em favor de um projeto político emancipador ou estamos no ponto em que o legado desses termos se esgotou e precisamos de um novo vocabulário político?
Se renunciarmos à democracia, renunciamos ao anseio pela democracia, o anseio de nos governarmos. Democracia significa sempre a possibilidade de que o povo governe a si mesmo (inclusive se suas diversas formas dificultam essa possibilidade), em vez de ser governado por outro, seja por meio do colonialismo, da tirania, do despotismo ou da dominação. Também não é o mesmo que ser governados pelo que os neoliberais sonharam: as forças do mercado e a moral tradicional, essas “ordens espontâneas” que têm suas próprias hierarquias e formas de dominação, mas que, segundo Hayek, nos dão liberdade porque o Estado não nos obriga a concordar com elas.
Portanto, resisto em renunciar à linguagem ou a luta pela democracia, mas não sou tão fetichista a ponto de pensar que tem que ser a palavra operacional. Em muitos lugares do mundo, a democracia equivale à hipocrisia do imperialismo do Norte global, racismo, exploração e vários tipos de pilhagem.
Compreendo a razão pela qual os mais jovens a recebem com resignação. E não tenho apego ao que convencionalmente chamamos de democracia constitucional ou liberal. Eu a critico há muito tempo. Mas, sim, acredito que vale a pena se apegar e continuar lutando pelo anseio de que as pessoas governem a si mesmas.
Há muitas perguntas difíceis: Com qual nível? Em que lugar? Como a democracia pode ser operacionalizada em um mundo globalizado? A experiência da União Europeia demonstra a contradição de chamar este fórum transnacional de democrático. Não é. Mesmo no plano do Estado-nação, as limitações são enormes.
A democracia funciona melhor em pequenas ordens de proximidade. Percebemos isso quando nos sentamos em uma sala, seja em uma sala de aula, um local de trabalho ou em uma cooperativa coletiva, e decidimos juntos como tomaremos decisões e como viveremos respeitando-as. Essa foi a concepção de Rousseau.
Tal ordem de coisas pode ser ampliada de forma modesta ou conectada a outras formas democráticas? Podemos ter muitas cápsulas democráticas conectadas entre si, que nos permitam um controle honesto das condições, termos e princípios, e das regras que conferimos a nós mesmos e, ao mesmo tempo, lidar com um mundo verdadeiramente globalizado?
Isso é extraordinariamente importante para enfrentar a crise climática. Leviatán climático, de Geoff Mann e Joel Wainwright, tenta expor diversos dilemas para refletir sobre a democracia no contexto das mudanças climáticas. As probabilidades de que exista uma resposta democrática para eles são bastante baixas. Mas algumas das respostas mais interessantes e promissoras à crise climática estão acontecendo em nível local.
Sim, precisamos de padrões transnacionais e acordos sérios para parar as emissões de carbono, deixar os combustíveis fósseis no solo e pensar em fontes de energia renováveis às quais possamos recorrer de forma que não haja uma nova pilhagem do Sul global. Mas também precisamos de modos de vida sustentáveis, dos quais as pessoas possam participar com alegria e entusiasmo, sem ódios reacionários.
Os novos modelos para tais coisas são lugares menores, como Costa Rica, ou partes de Montana ou Califórnia, ou lugares do Caribe que lutam para proteger seus ecossistemas. Não quero que digamos que a democracia é incompatível com os padrões transnacionais exigidos para as emissões. Contudo, a maior parte da tarefa que temos pela frente na crise climática vai além.
Você demonstrou profunda preocupação com a teoria e a política feministas em praticamente todo o seu trabalho. Como enxerga sua relação com a teoria feminista agora? Qual é o futuro da política e do ativismo feministas, particularmente dada a capacidade dos Estados e as corporações de cooptar a linguagem feminista e os marcadores de identidade para fins neoliberais, e o caráter diverso e heterogêneo das lutas feministas?
Nenhum desses dilemas – a diversidade e talvez até o antagonismo entre diferentes lutas feministas, e a suscetibilidade de ser cooptado – é novo para o feminismo. Os perigos da cooptação e a dificuldade de gerar um movimento feminista “unificado” já foram debatidos interminavelmente pelas primeiras feministas da segunda onda.
Do direito das meninas à educação e libertação da violência sexual à luta renovada neste país pelo direito de controlar nossa vida reprodutiva, todas podem existir em suas respectivas realidades locais sem precisar estar integradas a um movimento feminista unificado. Haverá antagonismos, como existem hoje, entre certas lutas feministas e certo anseio queer e trans em repensar ou renomear o que algumas dessas lutas feministas deveriam estar fazendo ou enfatizando. Isso faz parte da política de esquerda.
Espero que não tenhamos que reinventar a roda toda vez que enfrentarmos tais dificuldades, mas também acabei aceitando que provavelmente assim será. Agora, compreendo melhor do que quando tinha 20 anos o motivo pelo qual a velha esquerda estava tão irritada com a nova esquerda.
Pensávamos que estávamos fazendo uma forma de política emancipadora, igualitária, socialista democrática, feminista, ecológica. Os que eram da velha esquerda pensavam que já tinham feito isso, e nós acreditávamos que eram um bando de velhos leninistas, stalinistas e patriarcas brancos. Era um erro, havia mais coisas aí, e nós estávamos reinventando a roda. Mas isso faz parte do que os movimentos sociais fazem.
Considero apaixonante o que está acontecendo agora com o gênero e a sexualidade nos movimentos sociais. A maioria dos atuais movimentos feministas, do #MeToo às lutas no Afeganistão e na Turquia e, de fato, no mundo todo, pertence a uma geração mais jovem. Provavelmente, temos a maior mobilização feminista da história do mundo nos países latino-americanos, com o movimento Ni Una Menos e todas as suas linhagens, que obviamente estão lutando consigo mesmos e passando por lutas internas.
Essas lutas podem destruir essa onda, mas ela continua sendo algo que, em parte pelas redes sociais, gerou ações e mobilizações semelhantes em todo o mundo e conseguiu unir causas como os direitos reprodutivos, a libertação da violência sexual e os Direitos LGBTQ com uma agenda antineoliberal e socialista. Provavelmente, não terá êxito amanhã, mas não é uma mobilização feminista de esquerda pequena.
Sua abordagem sobre as diferenças geracionais também é relevante para o renascimento da esquerda estadunidense na última década, que surgiu em consequência de uma perda de conhecimento institucional, político e organizacional. Perdemos muito conhecimento teórico e prático, desde o declínio da nova esquerda, no final dos anos 1970, até a primeira década do século XXI. Conforme os movimentos e organizações iam se desfazendo, essa perda de memória institucional também criou uma brecha geracional.
Essa perda teve coisas a favor e contra. A desvantagem é que quando você tem entre 20 e 30 anos, geralmente não sabe tanto como deveria sobre como o mundo e os movimentos sociais funcionam. Notei isso no Occupy Wall Street. As pessoas não conseguiam acreditar que o movimento evaporava, após ter sido considerado uma força revolucionária que iria transformar o mundo. As pessoas experientes estavam menos surpresas porque tinham visto como funcionam os movimentos espontâneos não institucionalizados e contavam com argumentos para explicar essa evaporação que não apelavam à cooptação, ao inverno rigoroso ou ao esgotamento produzido por muitas reuniões deliberativas.
Por outro lado, há grande energia, criatividade e inventividade nas gerações que estão gerando movimentos sociais, do Movement for Black Lives aos movimentos indígenas e feministas, Extinction Rebellion e, claro, os Socialistas Democráticos dos Estados Unidos. Há uma explosão de energia e determinação política da esquerda. E, em parte, deve-se a muitas pessoas de 20 a 30 anos que não veem um futuro econômico ou ecológico. Para elas, só resta lutar por um mundo diferente. A única forma de acabar com esse desespero é por meio da atividade política.
No entanto, como você disse, houve um período nos anos 1980 e 1990 que se perdeu, o que faz parecer que a era da digitalização sempre esteve aqui, como se fosse o chão que pisamos e o ar que respiramos. Sabemos que não desaparecerá, mas essa forma de sermos humanos juntos é muito nova e não nos permite ver outras formas como poderíamos viver, trabalhar e cuidar uns dos outros. Ter perdido essas décadas anteriores trouxe algo perverso ao pensamento político contemporâneo.
A educação superior tem sido uma das instituições mais afetadas pela neoliberalização da vida social. Olhando para trás, quanto do seu ponto de vista em ‘Undoing the Demos’ se baseou na sua experiência na educação superior? Considera que a atual mobilização de estudantes da pós-graduação e professores não titulares para ser reconhecidos como trabalhadores acadêmicos talvez esteja fazendo da universidade um lugar de luta social contra a racionalidade neoliberal?
Meu pensamento sobre o neoliberalismo se viu muito afetado ao observar a neoliberalização quase total de uma grande universidade pública, a saber, a Universidade da Califórnia, em Berkeley, e o sistema da Universidade da Califórnia em seu todo.
O sistema de educação superior da Universidade da Califórnia foi algo incrível. Chegou até nós através do chamado Plano Diretor, em início dos anos 1960, que ofereceria uma educação absolutamente gratuita a todos os estudantes do ensino médio do estado que a desejassem.
Isso se daria por meio de um plano em três níveis de universidades comunitárias, universidades estaduais e a Universidade da Califórnia. Era possível transitar com fluidez entre eles. E seria uma infraestrutura inteiramente pública, paga pelos contribuintes da Califórnia.
Funcionou brilhantemente até que o neoliberalismo começou a desmantelá-lo. Precarizou a força de trabalho, tanto de professores, catedráticos e estudantes de pós-graduação, por um lado, como de todos os outros trabalhadores da universidade, que perderam empregos seguros com todos os benefícios, já que esses empregos foram subcontratados e realizados em tempo parcial.
O desinvestimento público substituiu o investimento, o custo das matrículas dos estudantes aumentou, aumentou, e isso mudou a orientação dos estudantes à educação. Tornaram-se consumidores e depois investidores. O que esperavam e imaginavam que fosse a educação também se transformou: de tornar-se uma pessoa com habilidades mais diversificadas a ganhar mais dinheiro (e estar disposto a se endividar para isso). Assuntos como negócios, economia, engenharia e outros campos STEM [Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática, no acrônimo em inglês] se tornaram mais desejáveis, ao passo que as humanidades, artes e outras foram banalizadas.
Todos conhecemos a história, mas eu vivi esses anos: lecionei na Universidade da Califórnia, em Santa Cruz, nos anos 1990, e em Berkeley, nos anos 2000 e 2010. Havia uma indiferença geral dos professores a esse fenômeno, apesar de que nós, que participávamos da associação dos primeiros sindicatos de professores, estivéssemos constantemente buscando alertar as pessoas a esse respeito.
As pessoas começaram a se preocupar cada vez mais com seu próprio status, pontuação e remuneração. Minha perspectiva se viu afetada ao presenciar como a linguagem neoliberal e como o desinvestimento repassavam a responsabilidade de sobreviver aos departamentos.
Também acrescentarei um detalhe pessoal: venho de um ambiente de classe média baixa do centro da Califórnia. Meus pais estavam divorciados e eram incapazes de negociar entre si. Se a educação não tivesse sido gratuita quando entrei na universidade, não teria conseguido frequentar e ter acesso à universidade e à vocação que, felizmente, tenho. Ao longo de minha carreira docente na Universidade da Califórnia, estive muito consciente da diferença entre a educação essencialmente gratuita, que tive acesso nos anos 1970, e a extremamente cara, superlotada e degradada de hoje.
Mesmo assim, a universidade é um lugar de luta social. É muito importante que lutemos por salários e condições para aqueles que estão na parte inferior da hierarquia e para proteger o que resta das universidades públicas, mesmo em um momento em que estão, em sua maioria, totalmente privatizadas.
Contudo, também considero muito importante pensar no que a universidade poderia ser em termos de educação para a democracia, e isso nem sempre significa se dedicar a ensinar o que se quer ou se interessa, ou o que é inovador. É o momento da esquerda se unir ao centro para pensar qual é o lugar das universidades no trabalho de educar para o futuro, e não apenas através da especialização e nos campos STEM, não apenas através da proteção dos campos sob coerção, como as línguas especiais e a poesia.
Tudo isso é importante, mas temos que levar em conta o que realmente consideramos que os estudantes universitários precisam saber, e como podemos nos sentar à mesa para definir os limites curriculares e de especialização para esse projeto, mais do que nos limitarmos a ficar na defensiva sobre nossa liberdade acadêmica, nossa liberdade de expressão e nosso direito a dar as aulas que queremos. Temos que ver a degradação da educação superior como um problema nosso.
Levando em consideração os desafios que enfrentamos como cidadãos, sociedades e espécies, qual deveria ser a missão e o propósito da teoria crítica? Como poderia moldar as lutas sociais atuais e como essas mesmas lutas podem permanecer abertas para aprender de suas ideias?
A teoria crítica, como eu a entendo, é qualquer trabalho teórico que não considera as relações de poder existentes – social, econômico, político, psicológico – como dadas, mas que as entende como contingentes, históricas e maleáveis. Sua tarefa é diagnosticar os perigos e danos desses poderes, e descrever as possibilidades inerentes a tais que poderiam nos levar para outro lugar.
É muito tentador nos círculos de teoria crítica, e eu mesma me incluo, conversar entre nós. Lemos mais ou menos os mesmos livros, temos os mesmos fundamentos e nos guiamos pelas mesmas estrelas. É tentador, assim como em todos os nichos acadêmicos, permanecer dentro dessa ordem linguística e disciplinar, mas é muito importante sairmos dela. Precisamos fazer isso para que possamos pensar melhor o que os estudantes, aqueles para quem escrevemos e ensinamos, podem precisar aprender ou saber para ter uma incidência neste mundo.
Também é importante não ficar dentro de nossos pequenos círculos porque a maioria das tradições de teoria política que herdamos, incluída a teoria crítica, contém em seu seio o masculinismo, a questão branca, o colonialismo e, sobretudo, o antropocentrismo, que nos levaram a nossos dilemas atuais com o racismo, com a crise planetária, com a democracia e com o gênero, que continua sempre sendo uma consideração secundária. Precisamos ter encontros profundos com as obras e movimentos que pressionam contra essas coisas para nos desprendermos dessas tradições.
A teoria crítica é uma órbita da academia que resiste ao positivismo predominante na mesma, mas quero que seja uma órbita que não patrulhe suas fronteiras, que permaneça porosa e se distancie de seu centro o tempo todo e aprenda com outros tipos de debates.