I.A crise ecológica já é uma realidade e se tornará cada vez mais, nos próximos meses e anos, a questão social e política mais importante do século XXI. O futuro do planeta e da humanidade será decidido nas próximas décadas. Os cálculos de alguns cientistas sobre cenários para o ano 2100 não são muito úteis, por duas razões: (a) científica: considerando todos os efeitos retroativos que são impossíveis de calcular, as projeções para um século são muito incertas; (b) política: no final do século todos nós, os nossos filhos e netos, teremos partido, então que interesse temos neste debate?
II.A crise ecológica tem vários aspectos de consequências perigosas, mas a questão climática é, sem dúvida, a ameaça mais dramática. Como o IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) explica, se a temperatura média subir mais de 1,5 grau acima do período pré-industrial, existe o risco de que seja desencadeado um processo irreversível de mudança climática. Quais seriam as consequências? Alguns exemplos: a multiplicação de megaincêndios como o da Austrália; o desaparecimento de rios e a desertificação do solo; o degelo e a desintegração das geleiras polares, e a elevação do nível do mar que pode alcançar dezenas de metros – sendo que, com menos de dois metros de elevação do nível do mar vastas regiões de Bangladesh, Índia e Tailândia, bem como das principais cidades da civilização humana – Hong Kong, Calcutá, Veneza, Amsterdam, Xangai, Londres, Nova Iorque, Rio de Janeiro – desaparecerão debaixo do mar. Até quanto a temperatura pode subir? A partir de que temperatura a vida humana está ameaçada neste planeta? Ninguém sabe responder a essas perguntas…
III. Estes são riscos de catástrofe sem precedentes na história da humanidade. Teríamos que voltar ao Plioceno, há alguns milhões de anos, para encontrar uma condição climática semelhante à que poderá ocorrer no futuro como resultado da mudança climática. A maioria dos geólogos acredita que entramos numa nova era geológica, o Antropoceno, na qual as condições do planeta foram modificadas pela ação humana. Que ação? A mudança climática começou com a Revolução Industrial do século XVIII, mas foi depois de 1945, com a globalização neoliberal, que ela deu um salto qualitativo. Ou seja, é a civilização industrial capitalista moderna a responsável pela acumulação de CO2 na atmosfera e, portanto, pelo aquecimento global.
IV. A responsabilidade do sistema capitalista pelo desastre iminente é amplamente reconhecida. O Papa Francisco, na Encíclica Laudato Si, sem pronunciar a palavra “capitalismo”, denunciou um sistema de “relações comerciais e de propriedade estruturalmente perverso”, exclusivamente baseado no “princípio da maximização do lucro”, como responsável pela injustiça social e pela destruição da nossa Casa Comum, a natureza. Uma palavra-de-ordem universalmente coroada em manifestações ecológicas pelo mundo é: “Mude o sistema, não o clima!” A atitude dos principais representantes deste sistema, defensores do business as usual – milionários, banqueiros, experts, oligarcas, políticos – pode ser resumida na frase atribuída a Luís XIV: “Depois de mim, o dilúvio”.
V. O caráter sistêmico do problema é ilustrada cruelmente pelo comportamento de todos os governos (com raríssimas exceções) a serviço da acumulação do capital, das multinacionais, da oligarquia fóssil, da mercantilização geral e do livre comércio. Alguns – Donald Trump, Jair Bolsonaro, Scott Morrison (Austrália) – são abertamente ecocidas e negacionistas climáticos. Os outros, os razoáveis, dão o tom nas reuniões anuais da COP (Conferências das Partes ou Circos Periodicamente Organizados?), que se caracterizam por uma vaga retórica “verde” e uma completa inércia. A mais bem-sucedida foi a COP 21, em Paris, que foi concluída com promessas solenes de redução de emissões por todos os governos participantes – não cumpridas, exceto por algumas ilhas do Pacífico; se tivessem sido cumpridas, os cientistas calculam que a temperatura poderia ainda assim subir até 3,3°.
VI. O “capitalismo verde”, “mercados de crédito de emissões”, “mecanismos de compensação” e outras manipulações da chamada “economia de mercado sustentável” se revelaram completamente ineficazes. Enquanto se “enverdecem” a torto e a direito, as emissões disparam e a catástrofe está se aproximando rapidamente. Não há solução para a crise ecológica no marco do capitalismo, um sistema inteiramente dedicado ao produtivismo, ao consumismo, à luta feroz pelo mercado, à acumulação de capital e à maximização do lucro. Sua lógica intrinsecamente perversa conduz, inevitavelmente, à ruptura dos equilíbrios ecológicos e à destruição dos ecossistemas.
VII. As únicas alternativas efetivas, capazes de evitar a catástrofe, são alternativas radicais. “Radical” significa atacar as raízes do mal. Se a raiz é o sistema capitalista, são necessárias alternativas antissistêmicas, ou seja, anticapitalistas – como o ecossocialismo, um socialismo ecológico à altura dos desafios do século XXI. Outras alternativas radicais, como o ecofeminismo, a ecologia social (Murray Bookchin), a ecologia política de André Gorz ou o decrescimento anticapitalista têm muito em comum com o ecossocialismo: nos últimos anos se desenvolveram relações de influência recíprocas.
VIII. O que é o socialismo? Para muitos marxistas é a transformação das relações de produção – via a apropriação coletiva dos meios de produção – para permitir o livre desenvolvimento das forças produtivas. O ecossocialismo reivindica Marx, mas rompe de forma explícita com este modelo produtivista. Certamente, a apropriação coletiva é indispensável, mas é também necessário transformar radicalmente as mesmas forças produtivas: (a) mudando suas fontes de energia (renováveis ao invés de combustíveis fósseis); (b) reduzindo o consumo global de energia; (c) reduzindo (“decrescimento”) a produção de bens e eliminando atividades inúteis (publicidade) e prejudiciais (pesticidas, armas de guerra); (d) pondo um fim à obsolescência programada. O socialismo implica também na transformação dos padrões de consumo, dos meios de transporte, do planejamento urbano, do modo de vida. Em suma, é muito mais do que uma mudança nas formas de propriedade: se trata de uma mudança civilizatória, baseada em valores de solidariedade, igualdade e liberdade e respeito pela natureza. A civilização ecossocialista rompe com o produtivismo e o consumismo para privilegiar a redução do tempo de trabalho e, portanto, a extensão do tempo livre dedicado a atividades sociais, políticas, lúdicas, artísticas, eróticas, etc., etc. Marx designava este objetivo com o termo “Reino da liberdade”.
IX. Para cumprir a transição para o ecossocialismo é necessário um planejamento democrático, orientado por dois critérios: a satisfação das verdadeiras necessidades e o respeito aos equilíbrios ecológicos do planeta. É a mesma população – uma vez livres do bombardeiro publicitário e da obsessão consumista fabricadas pelo mercado capitalista – que decidirá, democraticamente, quais são as verdadeiras necessidades. O ecossocialismo é uma aposta pela racionalidade democrática das classes populares.
X. Para concretizar o projeto ecossocialista não bastam reformas parciais. Seria necessária uma verdadeira revolução social. Como deve ser definida esta revolução? Pode-se referir a uma nota de Walter Benjamin, de dua tese Sobre o conceito de história (1940): “Marx disse que as revoluções são a locomotiva da história mundial. Talvez as coisas se apresentem de outra forma. Pode ser que as revoluções sejam o ato pelo qual a humanidade que viaja em um trem puxa os freios de emergência”. Traduzido em palavras do século XXI: todas e todos nós somos passageiros de um trem suicida, que se chama Civilização Capitalista Industrial Moderna. Este trem se aproxima, a uma velocidade crescente, de um abismo catastrófico: as mudanças climáticas. A ação revolucionária tem por objetivo detê-lo, antes que seja tarde demais.
XI. O ecossocialismo é tanto um projeto para o futuro como uma estratégia para a luta aqui e agora. Não se trata de esperar até que “as condições estejam maduras”: temos que promover a convergência entre as lutas sociais e ecológicas e combater as iniciativas mais destrutivas dos poderes a serviço do capital. Isto é o que Naomi Klein chamou de Blockadia. É dentro de mobilizações deste tipo que podem emergir, nas lutas, a consciência anticapitalista e o interesse pelo ecossocialismo. As propostas como o Green New Deal fazem parte dessa luta, em suas formas radicais, que exigem o abandono efetivo dos combustíveis fósseis, mas não naquelas que se limitam a reciclar o “capitalismo verde”.
XII. Qual é o sujeito desta luta? O paradigma do operário industrial do passado não é mais atual. As forças que hoje estão na dianteira do enfrentamento são os jovens, as mulheres, os povos indígenas, os camponeses. As mulheres estão muito presentes na formidável levante da juventude lançada pelo chamado de Greta Thunberg, uma das grandes fontes de esperança para o futuro. Como explicam as ecofeministas, esta participação maciça das mulheres nas mobilizações é pelo fato de que elas são as primeiras vítimas dos danos ecológicos do sistema. Os sindicatos começam, também, aqui e ali, a se comprometer. Isto é importante porque, em última análise, o sistema não pode ser derrotado sem a participação ativa dos trabalhadores e das trabalhadoras das cidades e do campo, que constituem a maioria da população. A primeira condição é, em cada movimento, combinar objetivos ecológicos (fechamento de minas de carvão ou poços de petróleo, ou centrais termoelétricas etc.) com a garantia de emprego para os trabalhadores e as trabalhadoras afetados/as.
XIII. Temos chance de ganhar esta batalha antes que seja tarde demais? Ao contrário dos pretensos “colapssólogos”, que proclamam em alto e bom som que a catástrofe é inevitável e que qualquer resistência é inútil, acreditamos que o futuro está em aberto. Não há nenhuma garantia de que este futuro seja ecossocialista: é objeto de uma aposta no sentido pascaliano, em que todas as forças se comprometem, num trabalho que é incerto. Mas, como disse, com grande e simples prudência, Bertolt Brecht: “Aquele que luta pode perder. Aquele que não luta já perdeu”.
Michael Lowy é diretor de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique e autor, entre outros livros, de O que é o ecossocialismo (Cortez). Artigo traduzido por Jordana Dias. Originalmente publicado em Viento Sur.