Em 25 de fevereiro de 2022 Putin lançou um apelo às forças armadas ucranianas para convidá-las a tomar o poder e derrubar o presidente Zelensky, afirmando que assim "seria mais fácil para nós fazer acordos com você" em relação "aquele bando de drogados e neonazistas" (o governo ucraniano) que "tomou todo o povo ucraniano como refém".
Slavoj Zizek, La Stampa, 28 de fevereiro de 2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Deveríamos também notar como a Rússia militariza imediatamente quaisquer contramedidas: quando os estados ocidentais consideraram a opção de excluir a Rússia do Swift (o sistema de intermediação para as transações financeiras), Moscou respondeu que isso equivaleria a um ato de guerra.
Por quê, a Rússia já não deu início a uma verdadeira guerra em grande escala? Outro exemplo arrepiante: "Qualquer um que estiver tomando em consideração a ideia de interferir de fora saiba que, se o fizer, enfrentará consequências mais pesadas do que qualquer outra vivida no passado", disse Putin em 24 de fevereiro, quando anunciou a intervenção militar na Ucrânia.
Vamos tentar levar realmente a sério esta declaração: "interferir de fora" pode significar muitas coisas, incluindo enviar armas e equipamentos defensivos para a Ucrânia; com "consequências mais pesadas do que qualquer outra na história", no entanto, o que quer dizer? Os países europeus já travaram duas guerras mundiais que resultaram em milhões de mortes. Assim, uma consequência mais pesada só poderia significar um extermínio nuclear. Essa radicalização (não apenas retórica) é o que realmente deveria nos preocupar: a maioria de nós esperava que a Rússia ocupasse apenas as duas repúblicas controladas pelos separatistas ou, na pior das hipóteses, toda a área de Donbass. Ninguém realmente esperava uma invasão total da Ucrânia.
Aqueles que estão do lado da Rússia, ou pelo menos mostram alguma compreensão por suas ações, são, no entanto, estranhos companheiros de cama. Talvez a parte mais triste dessa história seja que poucos na esquerda liberal pensavam que a crise fosse apenas uma espécie de blefe, porque ambos os lados sabem que não podem se permitir uma guerra. A sua mensagem, portanto, era essencialmente a seguinte: "Não se irritem, não percam a calma e nada acontecerá". Infelizmente, devemos admitir que Biden estava certo quando, dez dias atrás, disse que Putin havia tomado a decisão de invadir a Ucrânia.
Após a agressão russa, alguns da esquerda estão culpando o Ocidente. Bem se sabe o porquê: a OTAN estava lentamente estrangulando e desestabilizando a Rússia, cercando-a militarmente, fomentando revoluções, ignorando os temores bastante racionais da Rússia. Lembremos que a Rússia já atacou o Ocidente duas vezes no século passado. Claro, há um elemento de verdade nessa história, mas limitar-se a dizer isso é como justificar Hitler imputando toda culpa ao injusto Tratado de Versalhes que asfixiou a economia alemã.
Significa também que as grandes potências têm o direito de controlar suas respectivas esferas de influência, sacrificando a autonomia das pequenas nações no altar da estabilidade global. Putin afirmou repetidamente que foi forçado a intervir militarmente porque não lhe restava outra escolha: em certo sentido isso é verdade, mas aqui devemos nos fazer uma pergunta crucial. A intervenção militar aparece como uma falta de alternativas (denominada com a sigla TINA de there is no alternative, ndr) somente se aceitarmos a priori sua visão global da política como uma luta entre grandes potências para defender e expandir as respectivas esferas de influência.
E o que dizer das acusações de Putin ao fascismo ucraniano? Seria muito melhor, portanto, inverter a pergunta e apresentá-la ao próprio Putin: todos aqueles que alimentaram quaisquer ilusões a seu respeito deveriam perceber que ele se elevou ao posto de seu filósofo de referência, Ivan Ilin, um teólogo político russo que, depois de ser expulso da União Soviética no início da década de 1920, no famoso "barco a vapor filosófico" se manifestou contra o bolchevismo e o liberalismo ocidental promovendo a sua versão do fascismo russo, segundo o qual por Estado se entende uma comunidade orgânica liderada por um monarca paterno. Para Ilin, a democracia é um ritual: “Votamos para afirmar o nosso apoio coletivo ao nosso líder. O líder não é legitimado pelos nossos votos nem escolhido por eles”. Não é assim que se desenrolaram as eleições russas das últimas décadas? Não é coincidência que as obras de Ilin sejam reimpressas em grande número na Rússia e que cópias gratuitas sejam distribuídas aos burocratas e aos recrutas das forças armadas. Aleksander Dugin, o filósofo da corte de Putin, segue de perto os passos de Ilin, acrescentando apenas um efeito pós-moderno de relativismo historicizante: “A pós-modernidade demonstra que qualquer suposta verdade é apenas uma questão do que se acredita. Assim nós acreditamos no que fazemos, acreditamos no que dizemos. E esta é a única maneira de definir a verdade”.
A pergunta é: mas os povos da Síria e da Ucrânia? Eles também podem escolher sua verdade/ideia de princípio ou são apenas um playground para os big boss e suas batalhas? Não surpreende que sua intervenção militar na Ucrânia tenha sido saudada por Trump e outros como o gesto de um gênio.
Além disso, quando Putin fala sobre desnazificação, deveríamos ter em mente que é o próprio Putin que apoiou Marine Le Pen na França, a Liga na Itália e outros autênticos movimentos neofascistas. Não há nada para se surpreender: esqueçam a verdade russa. Trata-se apenas de um cômodo mito para legitimar o poder de alguém, e Putin agora age como uma cópia póstuma do expansionismo imperialista ocidental.
Então, para realmente combatê-lo, teríamos que construir pontes e firmar relações com os países do Terceiro Mundo, muitos dos quais têm uma longa lista de reclamações plenamente justificadas contra a colonização e a exploração de parte do Ocidente. Não basta defender a Europa: nossa verdadeira tarefa é convencer os países do Terceiro Mundo de que, para enfrentar nossos problemas globais, podemos oferecer-lhes uma opção melhor do que a Rússia ou a China. Estamos prontos para fazê-lo? Eu duvido