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Compreender o projeto de Trump e resistir sob novas condições históricas

24 de janeiro de 2025

Editorial da Executiva Nacional da Insurgência

O discurso de Donald Trump na cerimônia de sua posse como presidente dos EUA marcou não só a inauguração de seu governo, mas também o que pode ser o início de um novo período histórico a nível mundial. Parte do seu conteúdo já havia sido sistematizada no chamado Projeto 2025, elaborado dois anos antes pela ultra-reacionária Heritage Foundation, documento que já anunciava boa parte das medidas que aparecem em seu discurso, e que defende uma reorientação global do papel e linha dos EUA para o mundo. De toda forma, se antes o que havia era um projeto, o discurso de Trump e suas primeiras medidas como presidente dão início concreto a uma série de transformações e mudanças políticas e econômicas na principal potência imperialista do planeta. Seus impactos são em alguma medida ainda imprevistos, mas seu alcance mundial é certo.

Compõem ainda o cenário a inconteste maioria eleitoraldos Republicanos – tendo vencido não apenas no apodrecido sistema de delegados nas eleições no país, mas também no voto popular, e garantido maioria simples na Câmara e no Senado, além do alinhamento do Judiciário com seu projeto – e o mais recentemente explícito apoio e participação direta de todas as alas mais poderosas das empresas de tecnologia dos EUA, as Big Techs, que já colocaram todos os meios ao seu alcance a serviço do novo governo.

Assim, a tendência mais provável agora é que estejamos entrando em um momento de intensas e rápidas mudanças no cenário internacional. Essa é, ao menos, a orientação programática nitidamente reafirmada no último dia 20. As condições em que lutaremos em cada país do mundo deverão se alterar: há um novo programa em desenvolvimento no centro do imperialismo.

Para a esquerda e as forças populares, ainda que em muitos aspectos a forma e o conteúdo da cerimônia de posse de Trump sejam chocantes, compreender o projeto de transformações históricas que orienta o novo governo dos EUA é a primeira condição para resistir. Esse documento se dedica a uma primeira sistematização das tendências em curso, além de levantar algumas hipóteses sobre as tarefas que temos no curto e médio prazo diante de nós.

Projeto 2025: uma cartilha neofascista para reposicionar os EUA no mundo

O último ciclo de grandes transformações históricas nessas dimensões se deu entre o fim dos anos 1970 e início dos 1990, com a vitória do neoliberalismo sobre o planeta e o fim da URSS, abrindo um período de 30 anos de hegemonia inconteste dos EUA sobre o mundo. Na época, as alas mais reacionárias do Partido Republicano identificavam uma “deriva estratégica” dos EUA diante do que caracterizavam como “ameaças existenciais” à sua hegemonia. A Heritage Foundation nasceu naquele momento para elaborar e apresentar um programa que reorientava toda a política e a economia do país. Segundo o instituto, 60% de suas propostas foram aplicadas já no primeiro ano do governo Reagan, em 1981. Assim teve início a hegemonia neoliberal, e restante da história, trágico, já conhecemos.

Identificando em 2022 uma situação semelhante, o mesmo instituto elaborou o Projeto 2025. A experiência anterior, bem como as diversas referências ao texto no discurso de posse de Trump, sugerem que é um programa que deve ser levado a sério e conhecido pela esquerda, se quisermos ao menos saber quais propostas estão e estarão em disputa nos próximos dias, meses e anos.

Acompanhado de outras três iniciativas do projeto – recrutamento de quadros para atuação no governo, treinamento de quadros para funções políticas e um manual para os primeiros 180 dias de governo –, o programa em si se divide em 4 eixos.

O primeiro, “reestabelecera família como peça central da vida americana e proteger nossas crianças” – onde figuram as propostas, algumas já enunciadas ou adotadas por Trump, de banir termos como “identidade de gênero e orientação sexual, diversidade, equidade, inclusão, gênero, igualdade de gênero, consciência de gênero, aborto, saúde reprodutiva, direitos reprodutivos” de qualquer utilização em documentos oficiais ou instituições públicas. Também é proposta a proibição de disciplinas que envolvam “teoria crítica da raça e ideologia de gênero” em instituições públicas. Como dito por Trump em seu discurso, o texto defende ainda que a humanidade existe apenas “como homem e mulher”. Por fim, defendem ainda mais restrições ao direito ao aborto nos estados, inclusive com a “utilização dos poderes federais”. Em resumo, um condensado de todas as obsessões ideológicas que atravessam o conjunto da extrema-direita mundialmente, orientadas para dividir a classe trabalhadora e intensificar a exploração de seus setores estruturalmente mais oprimidos.

O segundo eixo é intitulado “desmantelar o Estado Administrativo e devolver a auto-governança ao povo americano”, onde Estado Administrativo é descrito como o trabalho “feito pelas burocracias de todos os ministérios, agências e milhões de funcionários do governo”, “aparentemente indemitíveis” e “não eleitos” – isto é, o serviço público nas instituições do Estado. O texto diz ainda que “quase todo centro de poder da esquerda” seria sustentado ou apoiado, de uma maneira ou de outra, por financiamento do governo por meio dessa burocracia. Para combater a esquerda, portanto, e já indicando mudanças a nível de regime, o novo governo deverá não só utilizar os meios legais já ao seu alcance, como alterar a legislação para ampliar a participação de funcionários comissionados naquilo que hoje é o serviço público. Tarefa que não parece difícil diante de sua já mencionada maioria nas instituições do regime.

Finalmente, o texto propõe ainda que a presidência “restabeleça o lutar guerras como única missão” dos militares e que “derrotar a ameaça do Partido Comunista Chinês seja sua mais alta prioridade”.

O terceiro eixo, “defender a soberania, fronteiras e riquezas de nossa nação contra ameaças globais”, faz uma dura crítica às “elites globalistas da esquerda”, defensoras de “fronteiras abertas” para reduzir salários a nível doméstico, e de um “extremismo ambiental” para impor leis que “jamais seriam aprovadas” nos EUA, sacrificando seu potencial competitivo e autonomia da indústria do país em benefício da “ordem global”. Dessa forma, prejudicariam a disputa dos EUA contra a China, reconhecida como o maior desafio estratégico da história estadunidense. Dessa maneira, a proposta é que o governo rompa com todos os acordos multilaterais ambientais possíveis e reorganize todas suas cadeias produtivas, fortalecendo sua indústria nacional e “enfrentando os interesses da China na América do Sul, África e Pacífico”.

Por fim, o quarto eixo, “assegurar nosso direito individual, oferecido por deus, de gozar ‘as bençãos da liberdade’”, dedica-se exclusivamente ao combate à esquerda esuas ideias. Embora esse aspecto atravesse o conjunto do texto, o capítulo faz toda uma enumeração contra o socialismo, identificando inclusive o Partido Democrata como parte desse campo. Para que não restem dúvidas sobre o caráter neofascista do Projeto 2025, o diretor da Heritage Foundation e autor da introdução do programa, Kevin Roberts, resumiu-o da seguinte forma, em entrevista de julho de 2024: “Estamos no processo da Segunda Revolução Americana, que permanecerá sem derramamento de sangue se a esquerda assim
permitir”.

Em resumo, o neofascismo linha-dura do projeto político-programático que orienta o novo governo dos EUA se baseia em a) mudanças no regime político do país, tendo como eixo a ampliação dos poderes presidenciais, e o combate, inclusive físico, à esquerda e mesmo setores burgueses “globalistas” que se oponham ao seu desenvolvimento; b) um reposicionamento dos EUA a nível mundial, distanciando-se do ordenamento construído pelo próprio país nos últimos 30 anos, rompendo com algumas premissas do “livre mercado global”, renegociando bilateralmente e reorganizando suas cadeias de valor, e acelerando o confronto contra a ameaça representada pelo crescimento da China; c) uma aceleração das contradições da crise climática, intensificando a exploração dos recursos naturais em benefício dos EUA e em detrimento do restante do planeta; e d) uma agenda de retrocessos brutais nas posições conquistadas pelos movimentos de combate às opressões nas últimas décadas.

Tudo isso, em Trump e no Projeto 2025, atravessado por uma retórica “nacional” de mobilização “popular” contra a esquerda e as “elites globais”, inimigos internos e externos. Por formulações que buscam justificar a maior concentração de poder no Executivo como maior exercício da democracia. Pela preparação militar contra a China e pela ofensiva imperialista contra países que buscará ampliar a subordinação. Um projeto neofascista, que tem a esquerda como principal inimigo, e que busca abertamente um reordenamento global tendo o imperialismo dos EUA como centro gravitacional.

A reorganização da “ordem global” imperialista unifica a burguesia dos EUA

Embora boa parte de seu programa se dedique a isolar e desmoralizar a ala Democrata da burguesia estadunidense, parte dessa agenda dá continuidade a iniciativas econômicas adotadas também pelo governo Biden – caso da política tarifária e de recomposição da indústria a nível nacional. O mesmo vale para a dimensão estratégica atribuída ao embate contra a China e a proposta de reorganização das cadeias produtivas e tecnológicas do país. Na sabatina feita pelo Senado dos EUA em que o novo chefe do Departamento de Estado foi aprovado por unanimidade na casa, sinalizando essa unidade, Marco Rubio assim resumiu o cenário:

“Do triunfalismo surgido do fim da longa Guerra Fria, emergiu um consenso bipartidário. (...) De que havíamos alcançado o fim da História, que todas as nações do mundo seriam membras da comunidade Ocidental, que nossa política externa do interesse nacional poderia ser agora substituída por outra a serviço da ordem mundial liberal. (...) Isso não era apenas uma fantasia. Sabemos agora que era uma ilusão perigosa. (...) A ordem global do pós-guerra não está apenas obsoleta. Ela é uma arma usada contra nós. (...) Oito décadas depois, somos novamente chamados a criar um mundo livre diante do caos (...) e isso será impossível sem uma América forte e confiante, engajada no mundo e colocando nossos interesses nacionais centrais novamente acima de tudo. (...) Desde o surgimento dos Estados nacionais modernos, dois séculos atrás, países agindo com base no que percebem como seus interesses nacionais centrais tem sido a norma, não a exceção”.


Desse ponto de vista, a hipótese que já vínhamos trabalhando, de que o ordenamento da globalização neoliberal enfrentava uma crise e caminhava para transformações estruturais, ganha nova dimensão. Para que fique nítido: não se trata de um fim do neoliberalismo em si – particularmente se considerarmos os países subordinados ao imperialismo, em que a dinâmica neoliberal pode inclusive se intensificar, como se observa na Argentina de Milei –, mas da divisão internacional do trabalho e as “regras do jogo” da competição inter-imperialista como as conhecemos nos últimos 30 anos.

Resta ainda acompanhar quais movimentações buscará a União Europeia para solucionar sua própria crise existencial – se Alemanha e França conseguirão ampliar sua hegemonia sobre o
bloco, ou se o mesmo desenvolvimento nacional-imperialista será vitorioso nesses países com Le Pen e a AfD, cenário este que, lamentavelmente, parece nos próximos anos cada vez mais próximo.

No mesmo sentido, para os países do Sul Global abre-se uma disjuntiva: ou suas classes dominantes buscarão uma associação cada vez mais direta e subordinada ao imperialismo dos EUA, ou, se pressionados à esquerda pelas forças populares – e apenas nessa hipótese –, poderão buscar caminhos próprios e soberanos diante do novo cenário histórico que parece se abrir. Como demonstra a pressão de Trump sobre o Canal do Panamá, a tendência hoje é uma intensificação da ofensiva imperialista dos EUA, particularmente na América Latina. Uma agenda anti-imperialista, portanto, deve ganhar cada vez mais centralidade para a esquerda e as forças populares, a começar pelo combate às Big Techs e sua condição estruturalmente agressiva contra a soberania dos países do Sul Global.

Compreender a nova realidade e combater os inimigos dos povos
Este é apenas um primeiro esforço de sistematização. É preciso ter nítido que, se antes de 20 de janeiro a extrema-direita já era há anos o inimigo central a ser derrotado, essa tarefa cresce em importância. Conhecer seu programa é o primeiro passo.

Como já dissemos, mas também como a extrema-direita mundial vem anunciando abertamente, a tendência é que passemos por mudanças intensas na forma histórica em que o capitalismo se desenvolverá. As disputas e conflitos inter-imperialistas continuarão se intensificando, o comércio mundial se dará sobre outros parâmetros, os organismos internacionais dos últimos 80 anos tendem a completar sua desmoralização e obsolescência, como já visto diante do genocídio em Gaza. Os povos e setores oprimidos da classe trabalhadora, em seus respectivos países e mundialmente, devem sofrer uma nova onda violenta contra seus já reduzidos direitos sociais, econômicos e políticos. A emergência climática, já em estado crítico, deve se agudizar rapidamente, atacando as condições materiais de produção e reprodução da vida para a classe trabalhadora em todo o planeta. Desse ponto de vista, políticas de frente única devem ter ainda mais centralidade em nossos esforços, como uma tática de longo prazo para os embates no período, ideia que já discutimos em outra oportunidade.

Mas também é preciso tirar algumas conclusões que possam minimamente orientar as resistências populares contra a extrema-direita, e dar início a uma atualização programática em nosso campo diante do novo momento histórico – tarefa que não cabe a uma ou outra organização específica, mas às gerações da esquerda que travarão essas lutas de conjunto. A primeira é a centralidade que deverá ter, de um ponto de vista internacionalista, o anti-imperialismo. Mas esse programa de esquerda para o novo cenário deve também tirar as devidas conclusões sobre as tendências em curso, em que o arranjo neoliberal que prevaleceu nos últimos 30 anos muda de figura.

Talvez a mais importante delas seja que, nesse cenário de crise e transição incerta, a insistência de parte da esquerda em programas inspirados na “terceira via” de Tony Blair – combinando as premissas da globalização neoliberal com políticas redistributivas, normalmente via inclusão pelo acesso ao consumo no lugar de acesso a direitos –, se já não encontrava, encontrará cada vez menos espaço na realidade histórica concreta. O programa do “centro” político das últimas décadas será cada vez mais incapaz de sobreviver, porque, nas palavras de Marco Rubio, o consenso na classe dominante acabou. A ala da extrema-direita tem um programa e segue em franca ascensão política. A ala “liberal-democrática” das classes dominantes, a rigor, não tem um programa para a situação concreta e vive, no centro do imperialismo, uma de suas maiores crises históricas. E as forças populares, se quiserem ter capacidade de disputar o novo cenário em seu favor, precisarão também ter seu próprio projeto alternativo para o ciclo que se abre.

Desse ponto de vista, a esquerda tem diante de si duas tarefas que só poderão ser cumpridas se combinadas uma à outra. De um lado, é preciso compreender, estudar a nova realidade e elaborar um programa para o novo tempo histórico, partindo do fato de que o arcabouço da globalização neoliberal dos últimos 30 anos tende a não sobreviver. Esse programa precisará responder material e ideologicamente aos ataques em curso – contra a limitada democracia liberal que conhecemos, contra as condições climáticas de reprodução da vida, contra parcelas relevantes e, em muitos casos, majoritárias da classe trabalhadora. É preciso interromper e impedir os deslocamentos de setores populares em direção ao neofascismo, sem jamais abandonar o esforço de reconstrução da classe trabalhadora em sua pluralidade realmente existente: racializada, migrante, com gênero e identidade sexual. Ora, se a estratégia é a combinação das táticas em nome do objetivo político, é preciso uma atualização do programa que possa produzir esse resultado, em novas condições de luta.

Esse é um esforço que será possível apenas se combinado ao exercício prático da resistência social e política. Nesse aspecto, a extrema-direita absorveu uma lição central que pertence originalmente à esquerda: é preciso mobilização permanente para romper os consensos dos últimos 30 anos e estabelecer outro futuro – no caso deles, um futuro distópico. E é apenas do embate, do enfrentamento ideológico e da mobilização das forças populares contra a extrema-direita e o neofascismo, dos testes práticos sobre a realidade, que poderá se conformar um programa e um campo social e político à altura de nossos desafios. Assim, embora a desvantagem de nosso campo se amplie com a eleição e início do governo Trump, um dos maiores riscos para a esquerda seria a prostração, a paralisia diante das dificuldades ou derrotas. Será preciso lutar, de cabeça erguida. A esquerda e a classe trabalhadora, no Brasil e no mundo, já derrotaram ditaduras sanguinárias e venceram situações até mais adversas que a atual, nos oferecendo exemplos heroicos ao longo da História.

Nesse sentido, no Brasil há importantes iniciativas nas quais podemos nos apoiar. A luta contra a jornada 6x1 e pela taxação das grandes fortunas, se conduzida de forma unitária pelas forças populares, aponta um caminho para a luta ideológica e prática pela reorganização e fortalecimento da classe trabalhadora em nosso país. Os esforços em curso por novas sínteses entre a esquerda socialista são outro exemplo de coerência estratégica contra as dificuldades históricas que enfrentamos. Da mesma maneira, todas iniciativas de mobilização e disputa de consciência feita nos movimentos sociais serão chave para a recomposição de nossas forças contra o neoliberalismo decadente e o imperialismo. E aqui há já importantes agendas apontadas para essa construção no ano que se inicia – pelo movimento de mulheres, pelo movimento estudantil com o Congresso da UNE, pelo movimento negro nos 10 anos da Marcha das Mulheres Negras.

O ano de 2025 começou mais difícil do que 2024 terminou. Mas não há defensiva que seja eterna, definitiva. Nosso desafio, mais do que resistir nas posições defensivas, é saber transformá-las em iniciativas que desorganizem o inimigo e alterem em nosso favor a relação atual de forças, ainda que seja necessário tempo. Os esforços, desse ponto de vista, precisam se concentrar nas iniciativas práticas que elencamos acima, ao mesmo tempo em que devemos transformar essas experiências concretas de luta em um programa capaz de coesionar um bloco à altura de, mais uma vez na História, derrotar a extrema-direita. Só seremos definitivamente derrotados se abandonarmos essa luta, hipótese que está e estará fora de cogitação.

Executiva Nacional da Insurgência

24 de janeiro de 2025