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Ensino jurídico antirracista

28 de junho de 2024

Natasha Karenina De Sousa Rego

Quais relações possíveis entre o ensino jurídico e as práticas antirracistas? É possível serem os professores, estudantes, advogados e outros profissionais do Direito, em seu dia a dia pessoal e profissional, antirracistas? O que é antirracismo? Por meio das trajetórias de Esperança Garcia e Maria Sueli Rodrigues de Sousa, duas juristas negras piauienses, apresento pedagogias jurídicas antirracistas para ampliar o debate de ensino jurídico e localizá-lo além dos espaços de docência.

Por pedagogias entendo "estratégicas, práticas e metodologias” (WALSH,2013, p.25), em específico, são fazeres atravessados pelo Direito produzidos dentro e fora da sala de aula. Como leciona Angela Davis, intelectual negra estadunidense: “Numa sociedade racista não basta não ser racista. É necessário ser antirracista". Assim, antirracismo são práticas e que se opõem ao racismo enquanto tecnologias de subjugação, inferiorização e desumanização de corpos, modos de vida, saberes e territórios em virtude da raça, marca que identifica e classifica um corpo a partir de uma leitura histórica no espaço-tempo no qual está situado, para retomar a intelectual negra brasileira Lélia Gonzalez (1988).

Sou professora e pesquisadora deDireito no ensino superior, de ancestralidade africana e indígena, piauiense, das margens do Brasil. Vivo e trabalho nas encruzilhadas do Direito e (anti)racismo pelo meu corpo-território ser marcado pela raça. Quando chego na sala de aula e quaisquer outros espaços, sou uma mulher negra, de cor, não branca, na cruza de africanos e indígenas, povos cuja raça é justificativa, desde a colonização, para genocídios e epistemicídios.

Faço parte dos 24,7% de professores que se declararam negros ou pardos nas instituições de ensino superior públicas do País, em 2020 (MOREIRA, 2022). Vale lembrar que a maioria da população é negra ou parda (56,1 %) e feminina (51,1%) (IBGE, 2022). Ensinar, educar e (re)aprender práticas jurídicas antirracistas e desaprender as racistas parte também por nos questionarmos quem ensina Direito no Brasil e como/ a partir de que perspectivas o faz. Afinal como infere a intelectual negra piauiense e professora de Direito Maria Sueli Rodrigues de Sousa:

Aqui reside o problema-chave do direito enquanto racionalidade ocidental que erigiu sob os desígnios da raça. A condição de livres e coassociados estruturou-se nas nações colonizadas e até nas colonizadoras, nos casos de migração, pela inferiorização dos não brancos, que foram escravizados ou dizimados. Após muitos anos e por meio de muitas lutas, os não brancos ganharam formalmente a condição de iguais coassociados, porém, a condição não se materializa em razão do obstáculo estruturante da racialização em forma de imaginário coletivo, que se expressa nas estatísticas sociais, na ocupação de poder, nas hierarquias sociais, na produção de conhecimento. (SOUSA, 2021, p.283)

 

A racionalidade ocidental e o direito que informam o ensino jurídico e dogmática jurídica fundamentam-se no racismo e na mercadoria mesmo com os processos de independência nacional, descolonização, abolição da escravatura e consequentes mudanças legislativas. Persiste no imaginário coletivo que corpos e territórios não brancos não são sujeitos de
direito e não detém humanidade. As resistências contracoloniais e antirracistas permanecem e insistem em recontar as histórias de lutas por direitos.

Escrevo do Estado do Piauí, terra de Esperança Garcia, mulher negra escravizada no séc. XVIII, que foi reconhecida simbolicamente como primeira advogada piauiense (2017) e a brasileira (2022) pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), secção Piauí e Nacional, respectivamente, por meio do trabalho da Comissão da Verdade da Escravidão Negra da OAB-PI (2016-2018). Em 1770, Esperança denunciou, de forma escrita, em carta endereçada ao governador da capitania de São José do Piauí, os maus tratos sofridos por seus filhos e suas companheiras, a separação do marido e os obstáculos ao batismo do filho. Segue o conteúdo da carta:

Eu sou uma escrava de Vossa Senhoria da administração do Capitão Antônio Vieira do Couto, casada. Desde que o capitão lá foi administrar que metirou da fazenda algodões, onde vivia com o meu marido, para ser cozinheira da sua casa, ainda nela passo muito mal. A primeira é que há grandes trovoadas de pancadas em um filho meu sendo uma criança que lhe fez extrair sangue pela boca, em mim não posso explicar que sou um colchão de pancadas, tanto que caí uma vez do sobrado abaixo peiada; por misericórdia de Deus escapei. A segunda, estou eu e mais minhas parceiras por confessar há três anos. E uma criança minha e duas mais por batizar. Peço a Vossa Senhoria pelo amor de Deus ponha aos olhos em mim ordenando digo mandar ao procurador que mande para a fazenda de onde me tirou para eu viver com meu marido e batizar minha filha (GARCIA, 2019, online).

 

A Comissão, presidida por Maria Sueli Rodrigues de Sousa, no Projeto Esperança Garcia, identificou que a carta possui natureza jurídica: “a partir do levantamento historiográfico do contexto em que foi produzida, dos sentidos da carta como memória da escravidão e como
resistência pelo autorreconhecimento e peticionamento como sujeito constitucional” (SOUSA ET AL, 2017, p.130). Identificou-se que Esperança, em sua carta-petição, pleiteou direitos seus e de sua comunidade, em instrumento cabível e endereçamento correto. Além de saber escrever, habilidade negada, em regra, para escravizados, a piauiense soube ler e interpretar a realidade na qual estava inserida para acionar o poder, formular seu pedido de justiça e mobilizar sua comunidade em prol do peticionamento. Assim:

O ato de Esperança Garcia expressa a personalização da pessoa escravizada, o que localiza o seu feito dentre as lutas contra a escravidão a partir do direito, como um fazer de um sujeito de direitos que pleiteava, na institucionalidade, ou pelo menos lutava por direitos aproveitando as poucas garantias que havia em atitude própria de membro da comunidade política; portanto a de sujeito constitucional submetido ao direito, mas com garantias com o diferencial da sociedade escravocrata (SOUSA ET AL, 2017,p.132)

 

As práticas de Esperança Garcia são pedagogias, que na relação de ensino aprendizagem, envolvem a si mesma e a sua comunidade na luta por direitos e garantias das pessoas escravizadas enquanto seres humanos, não apenas mercadoria. Para que a carta-petição fosse escrita e enviada ao seu destinatário imagina-se que diversas práticas e estratégias tenham sido desenvolvidas. O engajamento e o convencimento comunitários são essenciais para que os direitos de todos sejam pleiteados e alcançados.

A escravidão colonial objetifica, subjulga e lucra com a pessoa escravizada a partir da raça. A abolição da escravatura não rompeu com esta lógica na medida em que não reparou as violências coloniais e não garantiu que as pessoas libertas e suas descendentes tivessem condições materiais de existência. Maria Sueli Rodrigues de Sousa aponta que:

Ocorre que a desigualdade racial e a exploração das condições naturais fazem parte do imaginário coletivo de nação como natural. Para as garantias serem acionadas com sucesso precisava haver um imaginário antirracista por parte do pretenso requerente e do intérprete do direito, seja como gestor público, seja como aplicador. E isso só ocorre com mudanças culturais favorecidas pela atuação do Estado, pelos processos de comunicação que formem e alterem a memória coletiva (SOUSA, 2021, p. 283)

 

Quando imaginamos um advogado ou profissional do direito ele é um homem, cis, heterossexual, branco, adulto, trajado de terno. A primeira advogada brasileira é uma mulher negra escravizada. Destaca-se nesta luta por reconhecimento e reparação, Maria Sueli de Sousa Rodrigues (1964-2022), advogada popular, intelectual negra e professora de direito, de trajetória epistêmica desobediente (VARÃO, REGO, CARVALHO NETO, 2023), em que as atuações dentro e fora da sala de aula expressavam pedagogias jurídicas antirracistas.

Foi responsável por, no campo jurídico e na sociedade civil, pautar a história e as práticas jurídicas antirracistas de Esperança Garcia e outros sujeitos desconstitucionalizados (SOUSA, 2021), o que visibiliza suas experiências, intelectualidades, humanidades e condição de sujeitas de direitos. Colaborou para a disputa do imaginário coletivo informado pelo racismo. Imaginar e saber Esperança Garcia advogada é pedagogia jurídica antirracista.

A Comissão e o projeto Esperança Garcia realizaram pedagogias jurídicas antirracistas com a comunidade jurídica e a sociedade civil, que disputaram o imaginário coletivo, uma vez que Esperança Garcia nomeia um Memorial, uma Especialização, Centros Acadêmico, Grupos de Estudos e Movimentos Sociais, todos ferramentas de educação informal jurídica. Nomear é medida de reparação. As ações de reparação à escravidão e aos genocídios negros e indígenas podem ter uma dimensão simbólica que opera no imaginário coletivo, que no caso de países com histórico de colonização, escravidão e racismo, segue colonizado por imagens e representações desumanizadoras ligadas à pessoas afro-descendentes e indígenas.

Ao contar e recontar a história de Esperança Garcia e Maria Sueli Rodrigues exemplificamos as lutas e disputas do direito. Trazemos vivências de mulheres que além de viver o direito educaram suas comunidades por eles de forma a centralizar os sujeitos de direitos desumanizados, negros e desconstitucionalizados. Centralizar duas mulheres negras no debate de ensino jurídico é ensinar a imaginar, (re)aprender e praticar o antirracismo e desaprender o racismo. Ensino e pratico ao fazer: conto suas histórias e de suas lutas por direitos. Fecundo a imaginação de quem lê com sujeitas de direito negras atuantes em seus territórios por meio do direito. Apresentar suas trajetórias para tratar do fenômeno jurídico é uma pedagogia jurídica antirracista.

Referências:

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE).Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua. Características gerais dos moradores2020-2021. 2022. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101957_informativo.pdf. Acesso em 4 abr 2023.

GARCIA, Esperança. A Carta. Instituto Esperança Garcia. 2019. Disponível em: https://esperancagarcia.org/a-carta/. Acesso em 27 jan 2023

GONZALEZ, Lélia. A categoria político- cultural de amefricanidade. Tempo Brasileiro nº 92/93(jan/jun). Rio de Janeiro 1988 p.69-82. Disponível em: https://negrasoulblog.files.wordpress.com/2016/04/a-categoria-polc3adtico-cultural-deamefricanidade-lelia-gonzales1.pdf Acesso em: 4 abr 2023.

SOUSA, Maria SueliRodrigues de. Vivências constituintes: sujeitos desconstitucionalizados. Teresina: Avant Garde,2021

SOUSA, Maria Sueli Rodriguesde et. al. Dossiê Esperança Garcia: símbolos de resistência na luta pelo Direito.Teresina: ADUFPI, 2017.

VARÃO, Lorena LimaMoura; REGO, Natasha Karenina de Sousa; CARVALHO NETO, Lourival Ferreira de Maria Sueli Rodrigues de Sousa: a trajetória de um pensamento desobediente. Abya Yala. Revista Sobre Acesso À JustiçaE Direitos Nas Américas. Brasília, v.6, n.2, ago./dez. 2022, ISSN2526-6675

WALSH,Catherine. Lo pedagógico y lo decolonial. Entretejiendo caminos. In WALSH,
Catherine (ed). Pedagogías decoloniales. Práticas insurgentes de resistir, (re) existir y (re)vivir. Ecuador: Ediciones Abya-Yala, 2013. Tomo I. p.23-68

*Publicado originalmente em Terra, Bibiana(org). Dicionário feminista brasileiro: conceitospara a compreensão dos feminismos.São Paulo: Editora Dialética, 2024.

 

1 Professora de Direito da Universidade Estadual do Piauí (UESPI), campus dra Josefina Demes. Doutoranda em Políticas Públicas na Universidade Federal do Piauí (UFPI). Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Especialista em Movimentos Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Bacharela em Direito pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). Email: nkaresr@frn.uespi.br